ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA NO MINISTÉRIO DA CULTURA

 

 

PARECER nº 5/2023/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.001500/2023-13

INTERESSADO: Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural

ASSUNTO: Ato administrativo. Validade. Integridade. Apuração de irregularidades.

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEVIDO PROCESSO LEGAL.
I - Programa Nacional de Apoio à Cultura - Pronac. Comissão Nacional de Incentivo à Cultura - CNIC.
II - Inconsistências identificadas no processo de aprovação de projetos culturais no mecanismo de incentivos fiscais do Pronac. Rotinas no Sistema da Apoio à Lei de Incentivo à Cultura (SALIC) que resultaram em supressão de fase processual de consulta à CNIC e distribuição de processos a membros já desligados da comissão.
III - Possibilidade de convalidação dos atos de aprovação de projetos, desde que supridas as fases processuais exigidas nos termos da regulamentação vigente.
IV - Recomendação de apuração de responsabilidades pelo risco ao devido processo legal e à integridade das decisões no âmbito do Pronac.

 

Sra. Consultora Jurídica,

 

Cuidam os presentes autos de consulta da Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural formulada por meio da Nota Informativa nº 2/2023/MinC (doc. SEI 0893693), e encaminhada a esta Consultoria Jurídica por meio de despacho do Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural.

No citado documento, relatam-se inconsistências identificadas pela nova gestão da Secretaria, sucessora da extinta Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, relacionadas à utilização do Sistema SALIC (Sistema de Apoio à Lei de Incentivo à Cultura), no qual se processam os projetos culturais beneficiados no mecanismo de incentivos fiscais da Lei nº 8.313/1991, desde sua apresentação até a conclusão de sua prestação de contas; e solicita-se manifestação quanto às providências cabíveis em relação a tais inconsistências.

Conforme informado na referida nota, não foi tempestivamente realizado o descadastramento de membros da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) no sistema quando do encerramento de seus mandatos em 18/03/2021, o que resultou na distribuição automática de projetos a estes ex-membros, que, sem conhecimento de tal situação, deixavam transcorrer em branco o prazo para manifestação da comissão.

Considerando o fato de não ter havido recomposição da CNIC até 10/01/2022, bem como o fato de que até o advento do Decreto nº 10.755/2021, em 26/07/2021, a manifestação da CNIC era etapa obrigatória do processo de aprovação, conclui a área técnica que ao menos entre 18/03/2021 e 25/07/2021 houve aprovação irregular dos projetos culturais apresentados ao Pronac:

"4.5. Entre 18/03/2021 a 25/07/2021, ainda na vigência do Decreto nº 5.761, de 2006, os projetos passaram a ser aprovados para captação inicial com impropriedades, uma vez que os antigos comissários eram chamados a se pronunciar de forma equivocada e automática, pelo sistema SALIC, na etapa inicial de aprovação da proposta. Como esses membros não se manifestavam pois não tinham mais mandato e sequer sabiam que não haviam sido descredenciados, o SALIC registrava “Ausência de manifestação do comissário no prazo estabelecido na IN 5/2017”, uma tentativa de fazer cumprir o que previa o inciso I do Art. 38 do Decreto nº 5.761/2006  e o Art. 24  da IN nº 2, de 23 de abril de 2019 (...).
4.6. Essa inconsistência está registrada no SALIC em todos os projetos que foram aprovados nesse período, considerando que os membros da CNIC não se pronunciaram e a aprovação aconteceu de forma tácita, como mostra o exemplo no Anexo SEI 0893691.
4.7. Nessa situação, segundo relação em ANEXO II, foram aprovados 261 projetos entre 18/03/2021 e 25/07/2021 (dia anterior ao do novo decreto) para captação inicial como se a CNIC tivesse sido consultada, mas, de fato, tratava-se de AD REFERENDUM do Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura."

Informa-se ainda que, embora o Decreto nº 10.755/2021 tivesse deixado de exigir o pronunciamento da CNIC previamente à aprovação das propostas culturais, tal exigência permaneceu vigente por força da Instrução Normativa nº 2/2019, até sua revogação, em 8/02/2022, pela Instrução Normativa nº 1/2022, que definitivamente deixou de exigir manifestação da CNIC em tal fase processual. Neste período, informa a Secretaria que foram irregularmente aprovados 1247 projetos, sob a chancela da aprovação tácita de ex-membros da CNIC que sequer tomaram ciência da situação.

Segundo relatado na nota informativa, o fluxo de aprovação tácita fictícia por ex-membros da CNIC continuou sendo realizado até o início do presente ano, mesmo depois de já ter sido empossada uma nova composição da CNIC desde janeiro/2022, embora, neste período, a manifestação da CNIC já não fosse mais obrigatória, seja por força de decreto ou por força de instrução normativa. 

Adicionalmente, o documento informa que a gestão anterior procurou suprimir a atuação da CNIC nos processos de aprovação de projetos culturais por meio de decisões do Secretário Nacional de fomento e Incentivo à Cultura tomadas ad referendum da comissão, medida que somente foi concretizada em 28/04/2021, por meio da Portaria nº 12/2021/MTUR, tendo em vista orientação da Consultoria Jurídica, manifestada por meio dos Pareceres nº 162/2021/Conjur-MTUR/CGU/AGU e nº 195/2021/Conjur-MTUR/CGU/AGU, no sentido da necessidade de ato específico de delegação de competência. Posteriormente, com o advento do Decreto nº 10.755/2021 (art. 39), a presidência da CNIC passou a ser diretamente exercida pelo Secretário Especial de Cultura, o qual a delegou diretamente ao Secretário Nacional de Fomento e Incentivo por meio da Portaria nº 41/2021/SECULT/MTUR, convalidando, no mesmo ato, as decisões tomadas ad referendum antes da primeira delegação supracitada, alcançando assim todas as decisões em que houvera aprovação tácita fictícia por ex-membros da CNIC não devidamente descadastrados do Salic.

A referenda da CNIC sobre tais projetos, todavia, jamais foi levada a efeito.

É o relatório. Passo à análise.

Conforme muito bem apontado nos Pareceres nº 162/2021/Conjur-MTUR/CGU/AGU e nº 195/2021/Conjur-MTUR/CGU/AGU, embora as decisões da CNIC tenham caráter predominantemente consultivo, sua manifestação prévia à aprovação de projetos culturais no âmbito do mecanismo de incentivos fiscais do Pronac sempre foi uma exigência de garantia da integridade das decisões do Ministro de Estado da Cultura, ou autoridade sucessora, ou autoridade delegatária.

Neste sentido, a prerrogativa de aprovação pela autoridade competente ad referendum do colegiado – ainda que tal autoridade constitua instância decisória não vinculada às deliberações da CNIC – não suprime a necessidade de manifestação do colegiado, por meio de referenda, somente sendo admissível tal procedimento em situações excepcionais devidamente justificadas.

Apenas com a revogação da Instrução Normativa nº 2/2019 pela Instrução Normativa nº 1/2022, em 08/02/2022, é que a CNIC deixou de possuir tal competência, e somente a partir de tal momento é que suas manifestações prévias, ainda que de caráter opinativo, deixaram de ser objetivamente exigidas como condição de integridade dos atos de aprovação de projetos culturais. A propósito, é de se anotar que tal decisão política de supressão das competências da CNIC encontra-se em processo revisão no bojo de uma nova governança que vem sendo discutida internamente pela nova gestão do atual Ministério da Cultura, com o propósito de restabelecer instâncias de participação social – entre elas a CNIC. Seja como for, o fato é que, objetivamente, até 07/02/2022 a manifestação da CNIC era obrigatória e somente em caráter excepcional poderia ser postergada por decisões ad referendum.

No caso em exame, a solução de continuidade das atividades da CNIC pelo expressivo período de 18/03/2021 a 11/01/2022 constitui relevante justificativa para que, evitando maiores prejuízos aos proponentes interessados nos benefícios fiscais da Lei Rouanet e ao próprio funcionamento do Pronac, se adotassem os procedimentos de aprovação ad referendum de projetos pela autoridade competente para tanto. Com isso, parecem-me passíveis de convalidação os atos de aprovação de todos os projetos que tenham sido indevidamente aprovados por decisão ad referendum, desde que, porém, sejam submetidos à CNIC para que a exigência de sua manifestação seja cumprida.

Neste sentido, afigura-se-me incabível a convalidação em bloco de atos administrativos procedida por meio da Portaria nº 41/2021/SECULT/MTUR, tendo em vista que tal ato do então Secretário Especial de Cultura não teria o condão de suprir as competências da CNIC que deveriam ter sido exercidas antes do advento do Decreto nº 10.755/2021. Além disso, a convalidação de atos administrativos pressupõe que o defeito do ato possa ser adequadamente suprido no presente com efeitos retroativos, não acarretando lesão a terceiros ou violação à lei, o que, no caso em exame, consubstancia-se por meio da análise caso-a-caso de cada ato de aprovação, até porque não se trata de mero vício de competência sanável por delegação, mas de supressão de etapa processual obrigatória de análise dos requisitos de propostas culturais para habilitação aos incentivos fiscais da Lei Rouanet.[1]

Apesar de, durante este período, ter-se modificado o regime jurídico de aprovação de projetos para suprimir a atuação da CNIC, não se pode ignorar (i) que durante todo o período de vacância dos mandados da CNIC havia exigência normativa de sua manifestação, quer por decreto, quer por instrução normativa, e (ii) que mesmo após a investidura dos novos membros da comissão, em 11/01/2022, a comissão continuou suprimida no processo de análise, sem receber distribuição de propostas culturais, uma vez que somente em 08/02/2022 é que tal competência realmente deixou de ser exigida, quer por decreto, quer instrução normativa.

Tais circunstâncias de supressão de uma instância capacitada para analisar adequadamente o cumprimento das exigências para a boa condução da política pública, em que o próprio período de vacância de mandatos parece ter sido deliberadamente provocado para eliminar a participação social da governança do Pronac, somada às circunstâncias envolvendo as medidas adotadas pelas autoridades superiores responsáveis pela condução do Pronac para buscar dar validade, a posteriori, a atos administrativos praticados com defeitos que supostamente seriam de fácil convalidação pela simples submissão de suas decisões à referenda da CNIC, mas que, ao invés disso, tiveram aprovações colegiadas tácitas falseadas dentro do sistema Salic para evitar esta ratificação posterior, caracterizam, a meu ver, sério risco para a integridade dos objetivos institucionais e de toda a governança do mecanismo de incentivos fiscais do Pronac, nos termos do Decreto nº 10.756/2021 e do Decreto nº 9.203/2017.

Diante de todo o exposto, em atendimento à solicitação formulada na Nota Informativa nº 2/2023/MinC (doc. SEI 0893693), recomenda-se:

  1. o encaminhamento à CNIC dos 1.508 projetos aprovados entre 18/3/2021 e 7/2/2022, a fim de que se pronuncie em caráter consultivo acerca da regularidade de cada ato de aprovação e possibilidade de sua convalidação, submetendo seu parecer à apreciação da atual Ministra de Estado da Cultura ou autoridade por ela delegada para tal competência, nos termos do § 13 desta manifestação.
  2. avaliação da oportunidade e conveniência de se submeter a rotinas especiais de monitoramento e fiscalização os projetos culturais que tenham sido aprovados a partir de 8/2/2022 com aprovação tácita de ex-membros da CNIC, tendo em vista que, apesar de formalmente dispensada tal oitiva, o procedimento foi realizado à revelia dos atuais membros devidamente investidos da função, com possibilidade de quebra de integridade do processo decisório.
  3. instauração de sindicância para apuração das responsabilidades decorrentes das irregularidades detectadas, especialmente diante das circunstâncias descritas nos §§ 14, 15 e 16 do presente parecer.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 15 de fevereiro de 2023.

 

 

(assinado eletronicamente)

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Advogado da União

Siape nº 1341151

 


Processo disponível em https://supersapiens.agu.gov.br por meio do NUP 01400001500202313 e da chave de acesso f1bbdba3

Notas

  1. ^ Neste sentido, vide o art. 55 da Lei nº 9.784/1999, segundo o qual apenas os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela administração, o que pressupõe ausência de prejuízo a terceiros e ausência de lesão ao interesse público.



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