ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA

 


PARECER nº 38/2023/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.003111/2023-22

INTERESSADA: Ministra de Estado da Cultura

ASSUNTO: Ato administrativo normativo a ser editado por Ministra de Estado.

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. INCENTIVOS FISCAIS. REGULAMENTAÇÃO.
I - Fomento à cultura. Incentivos fiscais. Programa Nacional de Incentivo à Cultura – Pronac. Minuta de portaria ministerial que regulamenta os procedimentos apresentação, aprovação, fiscalização e prestação de contas de projetos culturais beneficiários do mecanismo de Incentivo a Projetos Culturais da Lei nº 8.313/1991.
II - Competência da Ministra de Estado da Cultura. Minuta em consonância com as disposições da Lei nº 8.313/1991 e do Decreto nº 11.453/2023.
III - Cumprimento dos requisitos formais do Decreto nº 9.191/2017, do Decreto nº 10.139/2019, e do Decreto 10.411/2020. Parecer favorável

 

Sra. Consultora Jurídica,

 

Cuidam os presentes autos de minuta de instrução normativa que estabelece procedimentos relativos à apresentação, à recepção, à seleção, à análise, à aprovação, ao acompanhamento, ao monitoramento, à prestação de contas e à avaliação de resultados dos programas, dos projetos culturais beneficiários do mecanismo de Incentivo a Projetos Culturais do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), instituído pela Lei nº 8.313/1991 (Lei Rouanet), e atualmente regulamentado pelo Decreto nº 11.453/2023.

A proposta teve origem na Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural (SEFC) do Ministério da Cultura e resulta de um processo de uma série de consultas internas realizadas entre a referida secretaria, a Secretaria-Executiva, a Secretaria do Audiovisual, a Assessoria Especial de Controle Interno e a Consultoria Jurídica deste ministério, tendo sido formalmente encaminhada para análise e parecer jurídico por meio da Nota Técnica nº 6/2023, do Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural (doc. SEI/MinC 1108097).

Minuta do ato normativo em questão, e respectivos anexos, encontra-se juntado aos autos nos docs. SEI/MinC 1108017110805111080601108068110807911080841108086 e 1108091.

Conforme destacado na Nota Técnica nº 6/2023, o objetivo da proposta é adequar os normativos internos do ministério às disposições do novo decreto regulamentador dos mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura – o Decreto nº 11.453/2023 – que abrange o mecanismo de incentivos fiscais da Lei Rouanet, ora em exame.

É o breve relato do necessário. Passo à análise.

No que tange ao processo de elaboração normativa, observo que a minuta atende aos requisitos do Decreto nº 10.139/2019, que dispõe sobre a revisão e consolidação de atos normativos inferiores a decreto, estando o texto adequado à espécie normativa de instrução normativa, tendo em vista que, embora não se destine apenas ao público interno do Ministério da Cultura, trata-se de nomenclatura utilizada pelo regulamento da Lei Rouanet para os atos normativos de competência da Ministra de Estado da Cultura, conforme art. 80 do Decreto nº 11.453/2023. Importante ressaltar que, devido à reorganização administrativa que resultou na divisão do Ministério do turismo para recriação do Ministério da Cultura, admite-se que a numeração da presente instrução normativa seja estabelecida a partir do reinício da sequência numérica de atos normativos que emanem do novo Ministério da Cultura, com amparo no § 1º do art. 3º do Decreto nº 10.139/2019, observando-se a necessidade de dar sequência às numerações de futuras instruções normativas ministeriais sem reinício anual, em face das novas regras do referido decreto sobre o tema.

No que tange especificamente à data de publicação, conforme bem apontado na Nota Técnica nº 6/2023, trata-se de matéria que exige urgência na aprovação, tendo em vista não apenas o exíguo prazo de 30 dias do supracitado art. 80, mas também e principalmente pela urgente necessidade de reabertura do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (SALIC), que deveria estar aberto para o cadastramento de propostas culturais desde fevereiro de 2023, porém permaneceu fechado para o acesso público a fim de que somente pudesse ser reaberto após as necessárias adequações dos regulamentos do ministério às novas disposições do Decreto nº 11.453/2023. Logo, afigura-se plenamente justificada a hipótese do parágrafo único do art. 4º do Decreto nº 10.139/2019, que autoriza a publicação imediata de atos normativos inferiores a decreto quando haja justificada urgência no expediente administrativo.

No que tange aos requisitos formais e redacionais do Decreto nº 9.191/2017 a que se sujeita a presente minuta na forma do art. 3º-A do Decreto nº 10.139/2019, observa-se a necessidade dos pequenos ajustes a seguir:

  1. ajuste de pontuação (supressão de vírgula) no inciso II do § 3º do art. 2º da minuta;
  2. enumeração por incisos no § 1º do art. 8º da minuta; 
  3. utilização de negrito nos vocábulos em latim e outros idiomas estrangeiros; 
  4. mencionar a Secretaria-Executiva juntamente às demais autoridades citadas no § 9º do art. 2º da minuta, no que tange à distribuição interna de competências de sua alçada.

No que se refere ao conteúdo da minuta, é importante contextualizar a proposta no bojo das importantes inovações normativas trazidas com a revogação do Decreto nº 10.755/2021 pelo Decreto nº 11.453/2023, que restabeleceu uma série de competências e diretrizes de governança vigentes no mecanismo de incentivos fiscais do Pronac antes do advento do decreto revogado, mas também inovou nas diretrizes da política cultural do governo federal, com ênfase em ações afirmativas, de reconhecimento da diversidade cultural e de integração entre educação e cultura, visando melhor atender às finalidades e objetivos do programa previstos na Lei nº 8.313/1991.

Entre as principais inovações, destaca-se o restabelecimento da possibilidade de apresentação de projetos no formato de planos anuais e plurianuais de atividades, por instituições culturais sem fins lucrativos, em atendimento ao art. 54 do Decreto nº 11.453/2023. O modelo atende aos pressupostos jurídicos da Lei de Incentivo à Cultura e permite um melhor planejamento destas instituições com relação a suas atividades, uma vez que, em tal categoria, de projeto, a instituição deixa de apresentar projetos isolados e trata toda a sua programação anual de atividades como um único projeto a receber incentivos fiscais, permitida ainda a utilização de recursos em despesas de manutenção da instituição, dentro de determinados limites. Ademais, com a possibilidade não apenas da anualização destes projetos, mas também sua extensão plurianual, reduz-se a burocracia do processo de aprovação, exigindo-se apenas a renovação anual da autorização para captação dos recursos de renúncia fiscal. 

Entretanto, a fim de manter maior aderência ao texto do art. 54 do Decreto nº 11.453/2023, recomenda-se a seguinte redação para o caput do art. 6º da minuta:

Art. 6º Pessoas jurídicas sem fins lucrativos poderão apresentar propostas culturais na forma de plano anual ou plurianual de atividades, conforme o art. 54 do Decreto nº 11.453, de 2023, de modo a contemplar:
I - a manutenção:
a) de instituição cultural, incluídas suas atividades de caráter permanente e continuado e demais ações constantes do seu planejamento;
b) de espaços culturais, incluídos sua programação de atividades, ações de comunicação, aquisição de móveis, aquisição de equipamentos e soluções tecnológicas, serviços de reforma ou construção e serviços para garantia de acessibilidade, entre outras necessidades de funcionamento; ou
c) de corpos artísticos estáveis ou outros grupos culturais com execução contínua de atividades; ou
II - a realização de eventos periódicos e continuados, como festivais, mostras, seminários, bienais, feiras e outros tipos de ação cultural realizada em edições recorrentes.

Outra importante inovação é o aprimoramento dos critérios para garantir o respeito ao princípio da não-concentração do § 8º do art. 19 da Lei Rouanet, em atendimento às diretrizes do art. 50 do Decreto nº 11.453/2023. Tais critérios encontram-se definidos no Capítulo III da minuta, ao estabelecer limites de captação por carteira de projetos de proponentes, bem como no Capítulo IV, quando trata de medidas de democratização do acesso à cultura. Não obstante os regramentos a serem implementados por meio da presente instrução normativa, outros critérios de regionalização e descentralização poderão ainda vir a ser estabelecidos no âmbito do Plano Anual do Pronac, a ser editado em portaria específica.

No que se refere às atribuições da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a minuta e seus anexos foram totalmente readequados às competências restabelecidas no art. 71 do Decreto nº 11.453/2023, bem como seus ritos de funcionamento em torno dos segmentos culturais estabelecidos no art. 73 do referido decreto, agora aderentes às disposições da Lei Rouanet relativas à composição do colegiado e sua segmentação cultural. Desta forma, recupera-se a integridade de todo o fluxo processual de aprovação de projetos e de suas prestações de contas, tanto no aspecto material como no aspecto procedimental, inclusive de recursos à Ministra de Estado da Cultura.

De igual importância são as inovações da instrução normativa na adoção de um novo paradigma de prestação de contas e avaliação de resultados dos projetos culturais aprovados no mecanismo de incentivos fiscais do fomento indireto da Lei Rouanet.

Seguindo uma tendência já estabelecida para diversos instrumentos do fomento direto hoje regulados no Decreto nº 11.453/2023 e por tal decreto agora também estendidas ao fomento indireto, as prestações de contas de tais projetos tornam-se mais simplificadas, uma vez que voltadas mais para o cumprimento do objeto pactuado e menos para sua execução financeira, a qual passa a ter relevância secundária como mecanismo de controle apenas para projetos de grande porte ou na apuração de desvios e irregularidades de projetos em geral. 

Conforme já defendido por esta Consultoria Jurídica no Parecer nº 2/2023/CONJUR-MinC/CGU/AGU (Processo nº 01400.001268/2023-13), não há óbice legal à aplicação deste modelo de controle ao mecanismo de incentivos fiscais do fomento indireto, uma vez que a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991) não traz disposições específicas quanto à metodologia a ser utilizada nas prestações de contas de projetos incentivados com recursos de renúncia fiscal. Conforme previsto no art. 19 da lei, os projetos devem ser apresentados acompanhados de orçamentos analíticos, o que sinaliza no sentido de uma execução financeira detalhadamente auditável pelo Ministério da Cultura. Porém, não impede que o ministério estabeleça metas e indicadores que, associados a métricas de análise claras e bem parametrizadas, permitam aferir o adequado cumprimento de objeto sem a necessidade de um exame detalhado de toda a execução financeira, especialmente considerando a inexistência de diferenças substanciais entre projetos executados pelo fomento direto e pelo fomento indireto, senão pela forma de financiamento em si. 

Desta forma, parece-me natural que a consolidação da mudança de paradigma vislumbrada nos mecanismos e modalidades de fomento direto possa repercutir na instrução normativa que regula o mecanismo de incentivo fiscal do fomento indireto, uma vez que não haja vedação expressa de lei neste sentido, bastando-lhe a autorização agora dada pelo Decreto nº 11.453/2023. Em última análise, este novo paradigma vai ao encontro do novo marco teórico de “abordagem gerencial” da administração pública, que, em oposição à “abordagem burocrática”, parte do pressuposto de que “os Estados democráticos contemporâneos não são simples instrumentos para garantir a propriedade e os contratos, mas formulam e implementam políticas públicas estratégicas para suas respectivas sociedades tanto na área social quanto na científica e tecnológica”[1], e, por isso, orienta-se primordialmente para o cidadão e para a obtenção de resultados, servindo-se de mecanismos de descentralização e incentivo à inovação.

A opção por um modelo de administração pública de abordagem gerencial respalda-se no “consenso quanto ao fato de que as demandas de eficiência e efetividade feitas ao Estado com relação a seus papéis internos e externos extrapolam o escopo tradicional das práticas burocráticas”, como já apontava Bresser Pereira ao discorrer sobre a reforma administrativa da década de 1990: 

Aprofundar a profissionalização da administração pública e a criação de burocracias competentes e relativamente autônomas continua a ser uma prioridade, mas essas burocracias não podem tentar voltar ao modelo racional-legal de administração, baseado na centralização e no controle formal de procedimentos. Há processos de reforma em marcha em todos os países [...], alguns procurando facilitar uma abordagem gerencial, outros ainda se limitando a profissionalizar a administração pública. No geral, porém, são claros os sinais de uma profunda modificação na orientação das tarefas do Estado e no reconhecimento de que as burocracias devem deixar de ser autocentradas, como ocorre no modelo burocrático clássico, e s orientarem para o atendimento do cidadão.[2]

Ao trazer este tipo de controle para os instrumentos à disposição das políticas culturais, a proposta busca, portanto, efetivar o princípio constitucional da eficiência, mas sem descurar dos controles internos e externos inerentes à administração pública, que continuarão sendo regularmente exercidos pelas autoridades competentes. 

A propósito, é relevante observar que o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) adota metodologias de auditorias focadas mais no desempenho (performance audits) e na qualidade das despesas do que no cumprimento de requisitos formalísticos. Em seu Manual de Auditoria Operacional, o tribunal define tais auditorias como “o exame independente, objetivo e confiável que analisa se empreendimentos, sistemas, operações, programas, atividades ou organizações do governo estão funcionando de acordo com os princípios de economicidade, eficiência, eficácia e efetividade e se há espaço para aperfeiçoamento”[3]. Ao estabelecer um modelo de prestação de contas aplicável de forma sistêmica aos mecanismos de fomento cultural direto e indireto, com foco em metas e indicadores e inspirado em modelos já testados em outros regimes jurídicos, a proposta em exame abre espaço para auditorias operacionais dos órgãos de controle e contribui para o desenvolvimento de um regime jurídico próprio que prioriza o alcance dos resultados esperados da política pública.

Com base em tais premissas, verifica-se que a proposta encontra-se suficientemente detalhada nos procedimentos para as prestações de contas no mecanismo de fomento indireto dos incentivos fiscais no Capítulo VIII da minuta em exame.

Por fim, ainda no Capítulo VIII da minuta, é de grande relevância citar a inovação trazida em seu art. 66 da minuta, que autoriza do Ministério da Cultura reconhecer de ofício a prescrição das ações punitivas e de ressarcimento, nos termos da Lei nº 9.873/1999 e da recente jurisprudência do STF acerca do § 5º do art. 37 da Constituição Federal, colocando tal exame, inclusive, como condição de procedibilidade das análises de prestações de contas dos projetos de que trata a instrução normativa.

A reorientação implementada na presente proposta no que tange ao tratamento a ser dado às hipóteses de dano ao erário, antes consideradas sempre imprescritíveis, respalda-se em  recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 899 da Repercussão Geral da Corte, especialmente no Recurso Extraordinário nº 636.886/AL e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5509Tais entendimentos foram consolidados, mais recentemente, por meio de regulamentação no âmbito do TCU, por meio da Resolução nº 344/2022, e do poder executivo, por meio do art. 79 do Decreto nº 11.453/2023.

Com efeito, esta Consultoria Jurídica possui grande acúmulo de entendimentos proferidos no sentido de que o prazo prescricional quinquenal de que trata a Lei nº 9.873/1999 sempre foi plenamente aplicável às sanções de inabilitação e multa previstas no art. 20, § 1º, e no art. 38 da Lei nº 8.313/1991, respectivamente, tendo em vista que nestes casos, trata-se do exercício da ação punitiva do estado por meio de processo administrativo sancionador. Especificamente nas hipóteses dos crimes de fraude do patrocinador (art. 40, caput) e de inexecução dolosa de projeto com recursos captados (art. 40, § 2º), a prescrição da ação punitiva administrativa regula-se pela prescrição penal, ocorrendo em 3 anos conforme art. 109, VI, do Código Penal.

Todavia, no que tange especificamente às ações ressarcitórias da administração, sempre houve cautela na aceitação da tese da prescrição, diante da previsão constitucional de uma imprescritibilidade geral das ações de ressarcimento de dano ao erário, no art. 37, § 5º, da Constituição Federal. 

Mesmo com o início de uma mudança de orientação do STF nesta questão para reconhecer uma imprescritibilidade relativa no Recurso Extraordinário nº 669.069/MG, esta Consultoria Jurídica manteve seu entendimento consolidado no sentido da imprescritibilidade no âmbito dos programas do MinC, uma vez que em tal julgamento havia-se firmado tão-somente a tese da possibilidade de prescrição das ações de ressarcimento relativas a danos decorrentes exclusivamente de ilícito civil não associado a sanções de outras naturezas, especificamente relacionado a responsabilidade civil extracontratual prevista em norma de direito privado. Como nas hipóteses das leis de fomento e incentivo à cultura estamos tratando de responsabilidades outras que importam em violação de norma de direito público associada a sanções administrativas, concluía-se que o art. 37, § 5º, da Constituição, reconhecia a prescrição apenas das sanções cominadas ao ilícito, mas não da pretensão ressarcitória. Este entendimento, contudo, evoluiu na própria esteira da jurisprudência do STF. 

O julgamento do RE nº 669.069/MG havia servido de paradigma para o Tema 666 da Repercussão Geral da Suprema Corte, assentando o entendimento de que ilícitos exclusivamente civis decorrentes de normas de direito privado são prescritíveis. Porém, não havia concluído, a contrario sensu, que apenas ilícitos dolosos ou de improbidade administrativa conduziriam à imprescritibilidade do dano ao erário. Já no julgamento do Tema 897 da Repercussão Geral, o tribunal discutiu sobre a imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos por ato de improbidade administrativa. No leading case (RE 852475/SP), ficou decidido que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”

A jurisprudência formada a partir destes dois julgamentos fornece parâmetros razoáveis para abranger uma grande variedade de hipóteses, firmando orientação no sentido da prescritibilidade nos casos de ilícitos meramente civis e decorrentes de normas de direito privado, e no sentido da imprescritibilidade nos casos de atos de improbidade administrativa, isto é, atos dolosos que resultem em dano ao erário. Contudo, permanecia uma lacuna no que se refere a danos decorrentes de violações não dolosas a normas de direito público, como ocorre ordinariamente nas prestações de contas dos programas, projetos e ações do Ministério da Cultura.

Buscando sanar esta lacuna, o Tema 899 da Repercussão Geral do STF foi debatido no julgamento do leading case do Recurso Extraordinário nº 636.886/AL, resultando no seguinte acórdão:

REPERCUSSÃO GERAL. EXECUÇÃO FUNDADA EM ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRESCRITIBILIDADE.
1. A regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado.
2. Analisando detalhadamente o tema da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”, este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (TEMA 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o TEMA 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública.
3. A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento.
4. A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos reconhecida em acórdão de Tribunal de Contas prescreve na forma da Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal).
5. Recurso Extraordinário DESPROVIDO, mantendo-se a extinção do processo pelo reconhecimento da prescrição. Fixação da seguinte tese para o TEMA 899: “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”. [grifo nosso]

Portanto, a partir de tal jurisprudência, há segurança jurídica para que a administração pública reconheça de ofício a prescrição da pretensão de reparação civil decorrente de quaisquer atos ilícitos, exceto aqueles qualificados como atos dolosos de improbidade administrativa. 

É relevante notar, ainda, que o caso paradigmático utilizado no julgamento da repercussão geral e resultou no acórdão supracitado consistia justamente em hipótese de dano ao erário decorrente de reprovação em prestação de contas de convênio celebrado no Ministério da Cultura, como registrado na decisão do tribunal que reconheceu a repercussão geral:

1. Trata-se de recurso extraordinário interposto em ação de execução de acórdão do Tribunal de Contas da União. (...)
2. Com razão o Tribunal de origem ao devolver os autos à apreciação desta Corte. Debate-se, neste recurso extraordinário, a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário determinada pelo Tribunal de Contas da União. Consta que Vanda Maria Menezes Barbosa, na qualidade de presidente da Associação Cultural Zumbi, deixou de prestar contas de recursos recebidos do Ministério da Cultura para fins de aplicação no projeto Educar Quilombo. Por essa razão, o TCU, no julgamento de Tomadas de Conta Especial, a condenou a restituir aos cofres públicos os valores recebidos por meio do Convênio 14/88. Instada a cumprir a obrigação, a parte não a adimpliu, o que ensejou a propositura de execução de título executivo extrajudicial pela União.

Assim sendo, não obstante o disposto no art. 37, § 5º, da Constituição Federal, considerando a jurisprudência consolidada no STF, parece-me não haver mais dúvidas quanto à constitucionalidade da proposta consolidada no art. 79 do Decreto nº 11.453/2023 e agora reproduzida no art. 66 da minuta de instrução normativa em exame para os casos relativos ao mecanismo de incentivos fiscais da Lei Rouanet, não havendo óbices jurídicos ao reconhecimento de ofício, pelo Ministério da Cultura, da prescrição tanto do poder administrativo sancionatório como das pretensões de ressarcimento relacionadas às prestações de contas tratadas na instrução normativa. Em última análise, o reconhecimento ex officio da prescrição no âmbito do Ministério, quando devidamente comprovada, resulta em medida de eficiência administrativa, uma vez que evita a instauração de tomada de contas especial quando não há viabilidade de recuperação do débito, segundo as normas do próprio TCU.

Por fim, destaco que, embora a proposta de ato normativo em exame se sujeite ordinariamente a prévia análise de impacto regulatório nos termos do Decreto nº 10.411/2020, especialmente em virtude do amplo alcance se sua regulamentação a todo o setor cultural beneficiário das políticas de fomento indireto do governo federal, tais procedimentos podem ser excepcionalmente dispensados no caso ora em exame, nos termos do art. 4º, incisos I e II, do referido decreto, tendo em vista (i) a notória urgência na publicação da norma, essencial para operacionalização do Decreto nº 11.453/2023 e abertura e operação do Salic, a fim de que o poder público volte a realizar as finalidades e objetivos da Lei Rouanet, bem como (ii) a notória aderência da maior parte das alterações ora propostas às disposições do próprio Decreto nº 11.453/2023, sem margem técnica ou jurídica a alternativas regulatórias.

E sendo estas as considerações, concluo pela legalidade e técnica legislativa da proposta em apreço, observadas apenas as sugestões e recomendações apontadas nos §§ 8 e 11 do presente parecer, nada obstando o prosseguimento do feito e encaminhamento da proposta à excelentíssima Ministra de Estado da Cultura, autoridade competente, e demais trâmites pertinentes à publicação do ato.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 6 de abril de 2023.

 

 

(assinado eletronicamente)

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Advogado da União

Coordenador-Geral Jurídico de Políticas Culturais

 

 

 


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Notas

  1. ^ Reforma do Estado e administração pública gerencial. Orgs. Luiz Carlos Bresser Pereira e Peter Kevin Spink. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 11.
  2. ^ Idem, p. 20
  3. ^ BRASIL, Tribunal de Contas da União. Manual de auditoria operacional. 4ª ed. Brasília: TCU, Secretaria-Geral de Controle Externo, 2020, p. 14.



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