ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA

COORDENAÇÃO-GERAL DE DEFESA AGROPECUÁRIA, POLÍTICA AGRÍCOLA E INOVAÇÃO​
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INFORMAÇÃO JURÍDICA REFERENCIAL n. 00007/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU

 

NUP: 00727.001118/2023-64

INTERESSADOS: PROCURADORIA-GERAL DA UNIÃO (PGU/AGU); CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU/AGU); E ​SECRETARIA DE DEFESA AGROPECUÁRIA (SDA/MAPA).

ASSUNTOS: INFORMAÇÃO JURÍDICA REFERENCIAL (IJR). FORNECIMENTO DE SUBSÍDIOS DE DIREITO. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 772, DE 29 DE MARÇO DE 2017. EFEITOS PERSISTENTES PARA REGRAR AS RELAÇÕES JURÍDICAS CONSTITUÍDAS OU DECORRENTES DOS FATOS GERADORES DE AUTUAÇÃO OCORRIDOS ENTRE 30/03/2017 E 08/08/2017 E ENTRE 07/12/2017 E 08/12/2017.

 

EMENTA: INFORMAÇÃO JURÍDICA REFERENCIAL. AÇÕES JUDICIAIS. FORNECIMENTO DE SUBSÍDIOS DE DEFESA DA UNIÃO. 
I - Informação Jurídica Referencial (IJR). Portaria Normativa CGU/AGU nº 5, de 31 de março de 2022.
II - Prestação de subsídios jurídicos para a defesa da União em ações judiciais que tratam da aplicabilidade das multas durante a vigência da medida Provisória nº 772/2017. Validade das multas entre os períodos de 30/03/2017 a 08/08/2017 e de 07/12/2017 a 08/12/2017. Afastada as alegações de primariedade e de bis in idem.
III - Não aplicabilidade da tese de retroatividade da norma, bem como da norma mais benéfica. Princípios da proporcionalidade e razoabilidade respeitados. Da ausência do reformatio in pejus. Tutela de urgência afastada por ausência de probabilidade do direito.
IV - Elevado número de processos que versam sobre matérias idênticas.
V - ​Dispensa do fornecimento de subsídios de direito de forma individualizada nas hipóteses e termos delimitados nesta manifestação.
VI. Prazo de validade: 2 (dois) anos a partir da aprovação desta Informação Jurídica Referencial.
  

1. RELATÓRIO

 

Com a edição da Portaria Normativa CGU/AGU nº 5, de 31 de março de 2022, instituiu-se a figura da Informação Jurídica Referencial - IJR, manifestação que propõe a padronização e fixação de teses jurídicas a serem utilizadas como subsídios para a defesa da União.

 

Para fins de se conferir objetividade ao presente relatório, convém citar os artigos 8º e 9º da mencionada Portaria Normativa:

 

Art. 8º Informação Jurídica Referencial é a manifestação jurídica produzida para padronizar a prestação de subsídios para a defesa da União ou de autoridade pública.
§1º A IJR objetiva otimizar a tramitação dos pedidos e a prestação de subsídios no âmbito das Consultorias e Assessorias Jurídicas da Administração Direta no Distrito Federal, a partir da fixação de tese jurídica que possa ser utilizada uniformemente pelos órgãos de execução da Procuradoria-Geral da União.
§2º É requisito para a elaboração da IJR a efetiva ou potencial existência de pedido de subsídios de matéria idêntica e recorrente, que possa justificadamente impactar a atuação do órgão consultivo ou a celeridade dos serviços administrativos.
 
Art. 9º A IJR deverá conter as seguintes informações:
I - em sede de ementa: informação de que se trata de IJR com a inserção do número do processo administrativo que lhe deu origem, órgão ou setor a que se destina e prazo de validade;
II - em sede de preliminar: demonstração de que o elevado volume de processos que tratam de matéria idêntica possa prejudicar a celeridade das atividades desenvolvidas pelo órgão consultivo ou pelo órgão assessorado;
III - em sede de conclusão:
a) o prazo de validade com informação sobre data de exaurimento ou evento a partir do qual não produzirá mais efeitos;
b) encaminhamento do processo à Procuradoria-Geral da União e a seu órgão de execução que solicitou os subsídios, com registro de que se trata de IJR; e
c) encaminhamento do processo ao Departamento de Informações Jurídico-Estratégicas.
(grifou-se)

 

Desse modo, em conformidade com a mencionada Normativa, objetiva-se com a presente manifestação fixar e apresentar as teses jurídicas elaboradas e reiteradas por esta CONJUR-MAPA em resposta às diversas solicitações de subsídios em defesa da União nas ações judiciais relativas às multas infligidas com base nos valores previstos pela Medida Provisória nº 772, de 2017.

 

É o que importa relatar.

 

2. PRELIMINAR: Apresentação das premissas metodológicas e atendimento aos requisitos que justificam a emissão da IJR 

 

Conforme determina o art. 8º, § 2º, c/c art. 9º, inciso II, cumpre justificar a utilização de IJR a partir da existência de elevado volume de processos que tratam de matéria idêntica, a qual possa prejudicar a celeridade das atividades desenvolvidas pelo órgão consultivo ou pelo órgão assessorado.

 

Pois bem. Melhor delimitando o tema recorrentemente tratado nas ações judiciais em perspectiva, tem-se que todas se dedicam ao mesmo: a questionar a constitucionalidade da Medida Provisória nº 772, de 2017, centrando esforços especialmente no sentido de controverter que os seus efeitos (de majoração do valor de multa previsto originalmente pelo art. 2º, inciso I, da Lei nº 7.889, de 1989) devam persistir mesmo nos casos em que o fato gerador da autuação e consequente inflição de multa tenha se verificado no período de vigência da Medida Provisória nº 772, de 2017.

 

De forma contumaz, a fim de buscar a redução do valor das multas que lhes foram infligidas, pretextam a suposta inconstitucionalidade da Medida Provisória, aos argumentos de que o valor da multa do art. 2º, inciso II, da Lei nº 7.889, de 1989, majorado pela MPV nº 772, de 2017, teria provocado a desproporcionalidade da aludida sanção administrativa e que a norma mais benéfica deveria retroagir para favorecer os infratores na seara administrativa sancionadora (tal como ocorre na seara penal). Para mais, argui-se que a não primariedade das Empresas infratoras é sobreavaliada no ato administrativo punitivo, de forma a afrontar a proibição de bis in idem e que não se deveria admitir a reformatio in pejus nos recursos administrativos.

 

Em suma, os subsídios prestados pela CONJUR-MAPA constituem-se reiteração de teses idênticas desenvolvidas ao longo de anos, as quais, em apertada síntese, i) sustentam que os efeitos da MPV nº 772, de 2017 devem persistir para regrar as relações jurídicas constituídas ou decorrentes dos fatos geradores de autuação ocorridos entre 30/03/2017 e 08/08/2017 e entre 07/12/2017 e 08/12/2017; ii) tornam claro o porquê da inaplicabilidade da tese de retroatividade da norma administrativa supostamente “mais benéfica”; iii) demonstram a razoabilidade e proporcionalidade do valor da multa majorada pela MPV nº 772, de 2017; iv) afastam as alegações de que a não primariedade das infratoras esteja sendo superestimada, em suposta afronta ao ne bis in idem; e v) convencem, com apoio na legislação e jurisprudência pátrias, o descabimento da tese de que o princípio da reformatio in pejus se aplica de forma irrestrita nos processos administrativos.

 

No que diz respeito ao volume de demandas, com apoio em dados levantados pela Coordenação-Geral de Apoio Jurídico e Contencioso Extrajudicial - CGAJUR, verifica-se que, nesta Coordenação-Geral, as peças de informações envolvendo o tema supra delimitado, no ano de 2023, constituíram 244 (duzentos e quarenta e quatro) manifestações de natureza idêntica - isto é, de manifestações de cunho jurídico para subsidiar a defesa da União (informações, informações em mandado de segurança, informações em controle de constitucionalidade). Ainda com relação às demandas judiciais relativas ao ano de 2023, sabe-se que essas peças representaram elevado percentual do total de manifestações de efeitos amplos desenvolvidas por esta CGDPI.

 

De outra parte, em se cotejando as mencionadas peças de informação com o total de manifestações de efeitos amplos, o total de manifestações de efeitos restritos e o total de informações judiciais que esta Coordenação-Geral elaborou em 2023, constata-se que elas representaram um elevado percentual desse total.

 

Assim, os números acima sistematizados avultam o elevado potencial de demandas judiciais de elaboração de subsídios jurídicos em processos relacionados ao tema em tela desvirtuarem o fluxo de trabalho usual deste órgão de assessoramento jurídico, de caráter eminentemente consultivo.

 

Para além disso, considerando que a dinâmica atribuída a ações judiciais atrai a necessidade de respostas ágeis – seja para que o cumprimento de eventuais decisões proferidas nos autos ocorra o quanto antes, seja para que a elaboração de subsídios possa ser apresentada a tempo de se efetivamente auxiliar as Procuradorias da União requisitantes –, sopesa-se, inclusive, se o número de demandas judiciais sobre esse mesmo tema não acabam por afetar o andamento de outras demandas, consultivas ou não, desta Especializada.

 

Diante desse cenário, reputa-se que a elaboração de subsídios em processos judiciais envolvendo a alegação de perda total e irrestrita de eficácia da MPV n. 772/2017 representa impacto negativo à celeridade e eficiência das atividades realizadas por esta Coordenação, sendo que a utilização de IJR para esses casos permitirá não apenas que a CONJUR-MAPA possa priorizar outras demandas internas - as quais não admitem aplicação de manifestações padronizadas -, como também reduzirá eventual tempo de resposta aos Órgãos de representação judicial da União.

 

3. SUBSÍDIOS DE DIREITO 

 

Demonstrados os requisitos que justificam a elaboração desta IJR, é devido esclarecer, inicialmente (3.1), sobre o contexto normativo fundado pela Medida Provisória nº 772, de 2017, e o regime jurídico das Medidas Provisórias no ordenamento pátrio, com especial ênfase àquelas não convertidas em lei, como a que presentemente se analisa.

 

Em seguida (3.2), sistematizaremos as teses de defesa da União aplicáveis ao tema.

 

3.1. Contornos jurídicos da MPV nº 772/2017

3.1.1 Contexto Normativo fundado pela MPV nº 772/2017

 

Em relação à aplicação da sanção de multa valorada com base na MPV nº 772, cabe lembrar que, em 30/03/2017, foi publicado o Decreto nº 9.013/2017, que dispõe sobre o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de produtos de Origem Animal (RIISPOA), o qual revogou o Decreto nº 30.691, de 1952.

 

No mesmo dia, foi publicada e entrou em vigor a Medida Provisória nº 772/2017 (DOU, Seção 1, nº 62, de 30/03/2017, páginas 03 e 31), que alterou a Lei nº 7.889, de 23 de novembro de 1989, a qual estabelece as sanções acarretadas quando da prática de infrações à legislação referente aos produtos de origem animal. Por sua obra, o valor máximo da penalidade de multa foi majorado de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) para R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais):

 
Art. 1 º A Lei n º 7.889, de 23 de novembro de 1989, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 2 º (...)
II - multa, de até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), nos casos não compreendidos no inciso I;
 

Como se sabe, nos termos do art. 62, §§ 3º, 4º e 7º, da Constituição da República, as Medidas Provisórias possuem prazo de vigência de 60 (sessenta) dias, prorrogáveis uma única vez por igual período, até sua conversão definitiva em lei pelo Congresso Nacional:

 
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
(...)
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
§ 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional.
§ 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional.
(...)
 

No caso da MPV nº 772/2017 e considerando o período de recesso legislativo ocorrido à época, ela deveria ter sido convertida em lei até o dia 10 de agosto de 2017.

 

Não obstante, antes de ser oportunamente votada, a referida Medida Provisória foi revogada, no dia 09 de agosto 2017, pela MPV nº 794/2017 (DOU, Seção 1, Edição Extra, de 09/08/2017, página 1), o que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, resultou na suspensão do prazo para sua apreciação pelas Casas Legislativas federais:

 
MEDIDA PROVISÓRIA. REVOGAÇÃO. POSSIBILIDADE. EFEITOS. SUSPENSÃO DA TRAMITAÇÃO PERANTE A CASA LEGISLATIVA. IMPOSSIBILIDADE DE RETIRADA DE MP DA APRECIAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 32. IMPOSSIBILIDADE DE REEDIÇÃO DE MP REVOGADA. 
1. Porque possui força de lei e eficácia imediata a partir de sua publicação, a Medida Provisória não pode ser "retirada" pelo Presidente da República à apreciação do Congresso Nacional. Precedentes. 
2. Como qualquer outro ato legislativo, a Medida Provisória é passível de ab-rogação mediante diploma de igual ou superior hierarquia. Precedentes. 
3. A revogação da MP por outra MP apenas suspende a eficácia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada a MP ab-rogante
4. Consequentemente, o ato revocatório não subtrai ao Congresso Nacional o exame da matéria contida na MP revogada. 
5. O sistema instituído pela EC nº 32 leva à impossibilidade - sob pena de fraude à Constituição - de reedição da MP revogada, cuja matéria somente poderá voltar a ser tratada por meio de projeto de lei. 
6. Medida cautelar indeferida.
(ADI 2.984-MC, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 04/09/2003, DJ de 14/05/2004)

 

Assim, observando que a vigência da MPV nº 794/2017 caducou no dia 06 de dezembro de 2017, a MPV nº 772/2017 voltou a vigorar no dia 07 de dezembro 2017. É certo, contudo, que somente lhe restavam dois dias de vigência para que a matéria fosse votada pelas duas Casas do Congresso Nacional, tendo a MPV nº 772/2017 perdido sua eficácia no dia 08 de dezembro de 2017, tal como anunciado no Ato Declaratório do Presidente da Mesa do Congresso Nacional publicado no DOU nº 237, de 12/12/2017, Seção 1, página 2.

 

Dessa feita, portanto, é seguro dizer que a MPV nº 772/2017, vigorou de 30/03/2017 a 08/08/2017 e de 07/12/2017 a 08/12/2017.

 

Entretanto, sobre os efeitos gerados pelo referido normativo ao longo de sua vigência, a matéria é ligeiramente mais complexa, o que reclama o escólio a seguir.

 

3.1.2 Das Peculiaridades do Regime Jurídico das Medidas Provisórias

 

A medida provisória é espécie normativa com eficácia inovadora do ordenamento jurídico e dotada de “força de lei” (arts. 59, inciso V c/c art. 62 da CF/1988), muito embora essencialmente precária, quer dizer, dependente, para efeito de sua definitiva incorporação ao sistema normativo, de ulterior conversão em lei, não se revelando apta a operar a imediata revogação do ato legislativo por ela afetado (STF - ADI 2621 MC, Relator: Min. CELSO DE MELLO, julgado em 01/08/2002, publicado em DJ 08/08/2002).

 

A respeito da eficácia imediata da medida provisória ainda pendente de aprovação pelo Congresso Nacional, já há bastante tempo, o Supremo Tribunal Federal bem definiu os efeitos na ordem jurídica desses atos normativos (STF- ADI 293-MC, Relator Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 06/06/1990, DJ 16-04-1993), a saber:

 

a. o primeiro efeito, de ordem normativa: a medida provisória inova a ordem jurídica;
 
b. o segundo efeito, de natureza ritual: a publicação da medida provisória atua como verdadeira "provocatio ad agendum", estimulando o Congresso Nacional a instaurar o adequado procedimento de conversão em lei.
 
 

Tão relevante é a produção de efeitos imediatos pela medida provisória que não se permite confundir esta espécie normativa com mero projeto de lei. Por isso, se o Presidente da República pode retirar de tramitação no Congresso Nacional projeto de lei de sua iniciativa, não detém a mesma prerrogativa com relação à medida provisória, podendo, isto sim, se quiser, editar nova Medida Provisória que revogue a primeira (STF – ADI-MC 2984 MC, Relatora Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2003, RTJ 191/488).

 

A exata compreensão dessa espécie normativa diferenciada conduz à escorreita conclusão de que, uma vez editada uma medida provisória, apenas o Congresso Nacional pode torná-la efetivamente sem efeitos. Sigamos explicando.

 

Quando uma medida provisória é aprovada sem ressalvas pelo Congresso Nacional, a lei de aprovação possui eficácia retroativa (“ex tunc”), sem solução de continuidade, preservada a identidade originária do seu conteúdo normativo (STF - ADI 691 MC, Relator:  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, TRIBUNAL PLENO, julgado em 22/04/1992, RTJ 140/797).

 

Isso porque a conversão da medida provisória em lei opera uma novação de fontes que produz dois efeitos básicos. Em primeiro lugar, converte em disposição de lei a norma constante da medida provisória, que passa a vigorar para o futuro; em segundo lugar, convalida a medida provisória que vigorara até aquele momento[1].

 

A questão que se impõe refletir e é o cerne do presente estudo diz respeito a não conversão da medida provisória em lei e quais os efeitos no que atine às relações jurídicas nascidas no período de sua vigência – como já salientado, a Medida Provisória nº 772, de 2017, não foi convertida em lei no prazo constitucional.

 

A medida provisória não convertida em lei, em princípio, perde sua eficácia, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes. Diz-se “em princípio”, pois a dicção do próprio § 3º do art. 62 da Constituição Federal de 1988 enuncia textualmente que:

 
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
(grifou-se)

 

Translúcido, portanto, que o § 3º não pode ser lido de maneira descontextualizada, sem que se considere seriamente, ao menos, o teor dos §§ 11 e 12 do mesmo art. 62 da Carta Magna, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 32, de 2001, do qual se extrai, in verbis:

 
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas
§ 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto.
(grifou-se)

 

Para os fins deste estudo, nos interessa mais a prescrição do § 11 do art. 62, afinal não foi editado o decreto legislativo que disciplinaria as relações jurídicas inauguradas ou derivadas durante o período de vigência da MPV nº 772, de 2017.

 

Como categoricamente previsto no § 11 do art. 62 da Constituição Federal, o Congresso Nacional (CN) detinha a prerrogativa de disciplinar, no prazo de 60 (sessenta) dias, por decreto legislativo, as relações jurídicas constituídas ou decorrentes da edição da MPV não convertida em lei. Aliás, nos termos do art. 11, § 1º, da Resolução nº 1/2002-CN, há um prazo de 15 (quinze) dias, para a apresentação do mencionado projeto de decreto legislativo, a ser apreciado por uma Comissão Mista. Em não sendo editado o multicitado decreto legislativo – como não o foi, no caso da MPV nº 772 –, as aludidas relações jurídicas fundadas durante a sua vigência serão conservadas.

 

Nessa esteira, bem explica José Levi Mello do Amaral Júnior, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a vigência da medida provisória rejeitada ou caduca por decurso de prazo conservam-se por ela regidas, ressalvada a possibilidade de o Congresso Nacional discipliná-las de modo diverso em decreto legislativo editado no prazo de sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia, conforme determina o art. 62, §§ 3° e 11, da Constituição do Brasil, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001[2].

 

Importante realçar o que, em continuação, o professor José Levi Mello do Amaral Júnior anota: o novo modelo, estatuído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001, traz vantagem em relação ao originário. No anterior, a medida rejeitada ou caduca desconstituía-se, sem ressalva das relações jurídicas firmadas com base nela (retroatividade máxima, com atropelo, inclusive, de eventuais direitos adquiridos). Para que assim não fosse, era necessário editar decreto legislativo, o que somente ocorreu em raríssimos casos. A nova sistemática inverteu esta lógica. A regra é a manutenção das relações jurídicas firmadas, salvo se o decreto legislativo dispuser de modo diverso e no prazo de sessenta dias.[3]   

 

Pertinente registrar que o Supremo Tribunal Federal interpretou o § 11 do art. 62 da Constituição do Brasil no sentido de que a medida provisória rejeitada ou caduca não pode ter seus efeitos postergados indefinidamente, devendo incidir somente nas relações jurídicas que efetivamente nasceram na vigência da norma caduca, não se estendendo para períodos posteriores, nem para atos que não foram praticados nesse período.

 

A ratio decidendi extraível da ADPF 216 assenta-se na seguinte premissa: “Não havia relação jurídica constituída que tornasse possível a invocação do parágrafo 11 do artigo 62 da Constituição Federal para justificar a aplicação da MP rejeitada após o prazo de sua vigência', Logo, em havendo “relação jurídica constituída” fundada na MPV não convertida em lei, ela deve ser aplicada mesmo após o seu prazo de vigência estar encerrado.

 

Para o STF, o § 11 do art. 62 da Constituição Federal tem por objetivo garantir a segurança jurídica àqueles que praticaram atos embasados em medida provisória rejeitada ou não apreciada, mas isso não pode ensejar a sobreposição da vontade do Chefe do Poder Executivo à vontade do Poder Legislativo, o que ocorrerá, por exemplo, em situações nas quais a preservação dos efeitos de determinada medida provisória rejeitada implicar na manutenção de sua vigência. Interpretação diversa, segundo o STF, ofende a cláusula pétrea constante do art. 2º da Constituição, que preconiza a separação entre os Poderes (STF - ADPF 216, Relatora: CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 14/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-068 DIVULG 20-03-2020 PUBLIC 23-03-2020).

 

Dessa forma, enquanto não for ou se não for – como no caso da MPV nº 772 não foi – editado o decreto legislativo para regular de modo diverso as relações jurídicas decorrentes da medida provisória não convertida em lei, continuam em vigor as regras da medida provisória extinta, por força do § 11 do art. 62 da Constituição, para reger as relações jurídicas geradas durante o período de sua vigência, repita-se.

 

Noutros termos, os efeitos da medida provisória prolongam-se no tempo, continuando a abranger as relações jurídicas constituídas ou decorrentes dos atos praticados sob a sua égide.

 

3.1.3 A aplicação da MPV nº 772/2017 às relações jurídicas encetadas durante a sua vigência

 

Pois bem. No caso em estudo, o prazo para a apresentação do decreto legislativo que disciplinaria as relações jurídicas decorrentes da MPV nº 772/2017 se encerrou no dia 2 de fevereiro de 2018. Por consequência, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência permanecerão por ela regidas, nos termos do § 11 do artigo 62 da Constituição Federal, in verbis:

 
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
(...)
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
(grifou-se)

 

Conforme já delineado na presente manifestação, a "relação jurídica constituída" ou “relação jurídica decorrente de ato praticado”, durante a vigência da MPV nº 772/2017, é aquela que se perfez quando o fiscal agropecuário (AFFA), no exercício do regular poder de polícia agropecuária, autuou empresa por irregularidade capitulada no artigo 496 do Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, Decreto nº 9.013 de 29 de março de 2017.

 

Isso é, o fato gerador da infração de que trata o Decreto nº 9.013, de 2017, e, última análise, a Lei nº 7.889, de 1989, decorre de uma ação de fiscalização do MAPA, que atrai, como seu desdobramento lógico, as sanções legalmente previstas como defluentes da prática do ilícito administrativo, por exemplo, a multa.

 

Quanto à data em si do fato gerador da infração, o Decreto nº 10.468, de 18 de agosto de 2020, incluiu no Decreto nº 9.013 o ora disposto no parágrafo único do art. 521, tornando explícito o que já era sabido:

 
Parágrafo único.  Para fins de apuração administrativa de infrações à legislação referente aos produtos de origem animal e aplicação de penalidades, será considerada como data do fato gerador da infração a data em que foi iniciada a ação fiscalizatória que permitiu a detecção da irregularidade, da seguinte forma: (Incluído pelo Decreto nº 10.468, de 2020)
I- a data da fiscalização, no caso de infrações constatadas em inspeções, fiscalizações ou auditorias realizadas nos estabelecimentos ou na análise de documentação ou informações constantes nos sistemas eletrônicos oficiais; ou (Incluído pelo Decreto nº 10.468, de 2020)
II - a data da coleta, no caso de produtos submetidos a análises laboratoriais. (Incluído pelo Decreto nº 10.468, de 2020)
(grifou-se)

 

Por tudo isso, é também incensurável o entendimento da Consultoria Jurídica junto a este Ministério, contido no PARECER n. 01105/2017/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, segundo o qual mesmo o Decreto nº 30.691, de 1952, continua aplicável, digo, regrando as relações jurídicas que tenham sido constituídas ou sejam decorrentes do período da sua vigência. Veja-se:

 
(...) o Decreto nº 30.691/52 continua aplicável aos processos que tenham como gênese fatos que redundaram em autos de infração lavrados na época em que vigorava essa norma e que o Decreto nº 9.013/17 somente será aplicável aos fatos geradores que ensejarem fiscalização dessa pasta a partir da sua publicação no DOU; não podendo afetar os processos finalizados nem retroagir, para alcançar situações pendentes que tiveram a sua origem na época da norma revogada.

 

Dessarte, não tendo sido publicado o decreto legislativo relativo à MPV nº 772/2017 e tendo em conta as relações jurídicas encetadas durante a sua vigência, com fulcro no § 11 do art. 62 da Constituição Federal de 1988, encarrilha-se que:

 
a) para o caso de infrações administrativas ao RIISPOA cujos fatos geradores tenham ocorrido durante o período de vigência da MP nº 772/2017 (de 30/03/2017 a 08/08/2017 ou de 07/12/2017 a 08/12/2017), aplica-se o valor da multa previsto pela MP nº 772/2017; e
 
b) para o caso de infrações administrativas ao RIISPOA cujos fatos geradores tenham ocorrido fora do período de vigência da MP nº 772/2017, vigora a redação original do art. 2º, II, da Lei nº 7.889/89.
 

Registre-se, por oportuno, que essa tese, aliás, tem sido acolhida pelo Poder Judiciário, sendo possível citar, entre outros exemplos, as sentenças favoráveis à União proferidas na Ação nº 1040909-86.2020.4.01.3400, que tramitou na 9ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, e na Ação nº 1069382 -12.2021.4.01. 3800, que tramitou na 7ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte.

 

3.2 Das Teses de Defesa da União Aplicáveis ao Tema

 

Relativamente às teses de Defesa da União aplicáveis ao tema, apresentam-se as quatro seguintes, sendo as duas primeiras especificamente relacionadas à MPV nº 772/2017 e as duas seguintes fundadas em outros normativos associáveis ao tema em perspectiva. Vejamos:​

 

3.2.1 Irretroatividade da Lei "mais benéfica" em matéria de direito administrativo

 

Com respeito à recorrente alegação de que "a lei ‘mais benigna’ deve ser aplicada de forma retroativa", com vistas a que os limites para quantificação do valor da multa previstos na década de 1980 – no caso, pela Lei n° 7.889, de 1989 – prevaleçam sobre outros limites, previstos contemporaneamente pela MPV nº 772, de 2017, não encerra plausibilidade.

 

Ora, como é cediço, a irretroatividade da norma, em nosso sistema jurídico, é a regra, do que decorre logicamente, a contrario sensu, que a retroatividade da norma é exceção.

 

Daí, se a Constituição Federal, é verdade, estabeleceu, em caráter pontual e excepcional, a retroatividade da norma penal mais benigna, essa exceção não pode ser interpretada de forma ampliativa, como que se criando, por “analogia”, uma nova exceção à regra da irretroatividade da norma, uma exceção que o próprio legislador Constituinte preferiu não criar.

 

Isso porque, conforme galvanizada regra da hermenêutica jurídica, as regras de exceção são interpretadas restritivamente. Nos dizeres de Carlos Maximiliano, “a lei que abre exceção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que especifica. E continua: “As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente[4].

 

Além disso, no âmbito do direito administrativo, a atenção ao princípio da legalidade estrita, que também tem foro constitucional, demandaria, no mínimo, que a retroação da norma mais benigna fosse determinada expressamente pela lei – tal como estabelecido no âmbito fiscal, pelo art. 106 do Código Tributário Nacional –, para ter força de elidir a máxima de que o administrador público aplica o acervo normativo vigente ao tempo da infração.

 

Esse entendimento, aliás, é o que atualmente tem orientado a atuação da Advocacia-Geral da União na análise de processos administrativos sancionadores, especialmente a partir do Parecer nº 45/2020/DECOR/CGU/AGU (NUP: 50306.002039/2015-90), aprovado pelo Advogado-Geral da União.

 

Enfim, retomando o aspecto da excepcionalidade, cuja previsão constitucional, como se demonstrou, restringe-se à esfera penal (art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988), não podemos esquecer que o direito penal tutela bem jurídico distinto do direito administrativo.

 

Consoante pontifica Alejandro Nieto, na esfera penal, tem-se em perspectiva os direitos fundamentais do acusado, enquanto na esfera administrativa – aliás, no Direito Público como um todo –, tutora-se bem jurídico multifacetado, a saber, o interesse público amplamente considerado[5]. Dessa feita, a retroatividade da lei mais benéfica em matéria penal teria uma tendência humanitária que absolutamente não se repete no campo administrativo, não justificando igual retroatividade.

 

Some-se a isso o fato de que o direito administrativo lida com uma realidade social muito dinâmica, díspar daquela do direito penal, regulando situações que mudam constantemente. Assim, não aplicar a penalidade administrativa àqueles que praticaram conduta proibida, sob a égide da lei anterior, significaria, sem sombra de dúvida, premiá-los com uma omissão estatal, que iria na contramão do pretendido caráter pedagógico e preventivo da sanção administrativa.

 

A propósito do tema, destaca-se, ainda, posicionamento do Superior Tribunal de Justiça - STJ, que alerta para o indesejado incremento da insegurança jurídica caso fosse adotada a posição que defende a retroação da lei administrativa mais benéfica. Vejamos o que restou consignado no julgamento do RMS nº 33.484/RS, de relatoria do Ministro Herman Benjamin:

 

ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRAZO PRESCRICIONAL. REMISSÕES GENÉRICAS. LEGISLAÇÃO SUPERVENIENTE ESPECÍFICA. PRESCRIÇÃO. IRRETROATIVIDADE.
(...)
6. A diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal permite a transpor com reservas o princípio da retroatividade.
Conforme pondera Fábio Medina Osório, "se no Brasil não há dúvidas quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me prudente sustentar que o Direito Administrativo Sancionador, nesse ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo".
7. No âmbito administrativo, a sedimentação de decisão proferida em PAD que condena servidor faltoso (acusado de falta grave consistente na cobrança de custas em arrolamento em valor aproximadamente mil vezes maior) não pode estar sujeita aos sabores da superveniente legislação sobre prescrição administrativa sem termo ad quem que consolide a situação jurídica. Caso contrário, cria-se hipótese de instabilidade que afronta diretamente o interesse da administração pública em manter em seus quadros apenas os servidores que respeitem as normas constitucionais e infraconstitucionais no exercício de suas funções, respeitadas as garantias do due process.
(...)
(RMS n. 33.484/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/6/2013, DJe de 1/8/2013. Grifou-se)

 

Aliás, no âmbito do STJ, a jurisprudência majoritária é no sentido da inaplicabilidade da retroatividade de norma mais benéfica no âmbito do direito administrativo, conforme infere-se dos julgados abaixo transcritos:

 

ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. SANÇÃO ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA NORMA MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 106 DO CTN. IMPOSSIBILIDADE.
1. "Inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário Nacional, referente à retroatividade de lei mais benéfica (art. 106 do CTN), às multas de natureza administrativa. Precedentes do STJ." (REsp 1.176.900/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 20/4/2010, DJe 3/5/2010).
2. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp n. 1.796.106/PR, Relator Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 25/6/2019, DJe de 1/7/2019. Grifou-se).
 
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - CONSÓRCIOS - FUNCIONAMENTO SEM AUTORIZAÇÃO - MULTA ADMINISTRATIVA - PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA DOS DISPOSITIVOS - FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL - REEXAME DE PROVAS: SÚMULA 7/STJ.
1. Inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário Nacional, referente à retroatividade de lei mais benéfica (art. 106 do CTN), às multas de natureza administrativa. Precedentes do STJ.
2. Não se conhece do recurso especial, no tocante aos dispositivos que não possuem pertinência temática com o fundamento do acórdão recorrido, nem tem comando para infirmar o acórdão recorrido.
3. Inviável a reforma de acórdão, em recurso especial, quanto a fundamento nitidamente constitucional (caráter confiscatório da multa administrativa).
4. É inadmissível o recurso especial se a análise da pretensão da recorrente demanda o reexame de provas.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e provido.
(REsp n. 1.176.900/SP, Relatora Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 20/4/2010, DJe de 3/5/2010. Grifou-se).
 
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMEN TAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. APLICAÇAO DE MULTA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. APLICAÇAO POR ANALOGIA DE REGRAS DOS DIREITOS TRIBUTÁRIO E PENAL. IMPOSSIBILIDADE. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. ARGUMENTO CONSTITUCIONAL DA ORIGEM. RECURSO ESPECIAL VIA INADEQUADA.
1. Em primeiro lugar, a controvérsia foi decidida pela origem com fundamento constitucional (princípio da irretroatividade das leis - art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição da República vigente), motivo pelo qual a competência para apreciar e julgar eventual irresignação é do Supremo Tribunal Federal e o recurso especial é via inadequada para tanto. Preceden te.
2. Em segundo lugar, não são aplicáveis à espécie dispositivos do Código Tributário Nacional e do Código Penal porque, embora o especial tenha sido interposto nos autos de execução fiscal, a multa imposta decorre do exercício do poder de polícia pela Administração Pública - infração administrativa.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp nº 761.191/RS, Relator Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 12/5/2009, DJe de 27/05/2009. Grifou-se).

 

De se lembrar, ainda, que o caso em perspectiva cuida de Medida Provisória que, não convertida em Lei, caducou e cujos efeitos são objeto de regramento constitucional próprio. A esse respeito, repise-se o que dispõe os §§ 3º e 11 do art. 62 da Constituição Federal:

 

Art. 62. (...)
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12, perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
(...)
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
(Grifou-se)

 

Logo, caso remotamente se admitisse a engenhosidade de inovar o ordenamento jurídico, sem lei expressa, para engendrar que a exceção de retroatividade da lei penal mais benéfica se aplicaria também no âmbito do direito administrativo, isso representaria, inclusive, nítida burla aos ditames estabelecidos no art. 62 da Constituição Federal, que regem específica e expressamente os efeitos de Medida Provisória não convertida em Lei.

 

3.2.2. Da segurança jurídica, proporcionalidade e razoabilidade do valor de multa previsto pela MPV n° 772/2017

 

No que tange à observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade das alterações promovidas pela MPV n° 772, de 2017, insta trazer à colação o embasamento ofertado pelo corpo técnico do MAPA quando o Chefe da Administração Pública federal cogitou editar o aludido ato normativo – cf. a NOTA TÉCNICA n° 4/2017/DIPOA-SDA/SDA/MAPA/MAPA, constante do NUP n° 21000.012577/2017-91:

 

A presente Nota Técnica tem por objetivo embasar a sugestão de edição de Medida Provisória (MP) para alteração do disposto no II do art. 2° da Lei n° 7.889, de 23 de novembro de 1989 que fixa hoje o valor máximo de multa em 25.000 BTN (bonus do tesouro nacional). Há duas situações a serem corrigidas, a conversão de BTN para R$ e o valor propriamente dito da multa.
Quanto à conversão de BTN em R$ (real) esclarece-se que a Lei 7.889/89 por fixar valor de multa em BTN e o Decreto n° 30.691/52, que regulamenta esta mesma Lei, estabelecer valores em Cruzeiros em seu art. 880 obriga a administração lançar mão de conversão precária oriunda de cálculo realizado pela 8ª Vara Cível da Justiça Federal, da 1ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo, realizado em 2006.
O valor de 1 BTN corresponde a R$ 0,6259 (seiscentos e vinte e cinco centavos de real), portanto o valor máximo de multa frente aos 25.000 BTN e de R$ 15.648,52 (quinze mil seiscentos e quarenta e oito reais e cinquenta e dois centavo).
Cabe ressaltar que o BTN foi extinto em 1° de fevereiro de 1991, segundo a Lei n° 8.177/91. Não há Lei posterior fixando índice de atualização do mesmo.
A citada conversão precária expõe a administração a frequentes questionamentos no âmbito judicial e administrativo.
Quanto ao valor da multa máxima, ressalta-se seus efeitos, pecuniário e de coibição a infração à legislação, são praticamente nulos provocando inclusive embaraço as atividades de fiscalização.
O setor do agronegócio relaciona-se com as maiores empresas e conglomerados industriais, que representam importante parcela do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Em uma situação de fraude, por exemplo, podem "lucrar" em uma hora o valor máximo da penalidade pecuniária atribuída e em caso de violação de dispositivos quem impliquem risco a Saúde Pública podem atingir parcela expressiva da população devido ao volume de produtos elaborados.
Em contraponto os pequenos produtores já estão protegidos pelo princípio constitucional de razoabilidade (proporcionalidade) sendo aplicadas as penalidades de cunho orientativo ou em casos mais graves adequado ao porte do estabelecimento.
Resta claro, inclusive já considerando os fatos amplamente divulgados na mídia envolvendo infrações a legislação sanitária que motivaram diversas operações policiais, do Ministério Público e do proprio MAPA, como por exemplo: "carne fraca", "ouro branco", "leite compensado", "poseidon" e "abate", a necessidade de reforma do valor pecuniário no sentido de restaurar seu poder de coibição a infração como parte do instrumento da fiscalização executada pela administração.
O valor máximo de multa citado é um dos menores quando comparado com outros órgãos de fiscalização federal (Lei n° 6.437, de 20 de agosto de 1977 - ANVISA/MS, multa de RS 200.000,00 a R$ 1.500.000,00; Lei n° 9.605 de, 12 de fevereiro de 1998 - IBAMA, multa de R$ 50,00 a R$ 50.000.000,00).
Pelo contexto sugerimos que o valor máximo de multa seja reformado de 25.000 BTN (R$ 15.648,52) para R$500.000,00 (quinhentos mil reais).
(Grifou-se)

 

Do esclarecimento técnico acima, resta patente que a Medida Provisória nº 772, de 2017, foi editada com o intento de, isto sim, devolver segurança jurídica, proporcionalidade e razoabilidade ao sistema sancionatório previsto havia quase 30 (trinta) anos pela Lei nº 7.889, de 1989, ao passo que traduz em Real (moeda corrente) o valor a ser imposto aos infratores da Lei nº 7.889, de 1989, tornando-o seguro, além do que restitui ao ato normativo pátrio atinente à inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal sua negligenciada capacidade de inibir a prática reiterada de transgressão às normas proibitivas relacionadas a tão caro tema de saúde pública.

Nesse sentido, é imperioso rememorar que a sanção administrativa “não é um fim em si, mas sim um dos meios (...) para se evitar o descumprimento de uma obrigação jurídica e para viabilizar a consecução das políticas públicas estabelecidas para um determinado setor[6]. Disso decorre, explicite-se, que a cominação de sanção administrativa irrisória é imprestável (destituída de qualquer utilidade), afinal não serve como meio para “evitar o descumprimento de obrigação jurídica” e, nem tampouco, “para viabilizar a consecução de políticas públicas” do setor de defesa agropecuária.

 

Para mais, ainda com apoio na Nota Técnica supracitada, o valor máximo de multa que o MAPA passou a irrogar aos infratores da Lei nº 7.889, de 1989, durante a vigência da MPV nº 772, de 2017, já considerando a majoração que operara (quinhentos mil reais), continuava baixo, quando comparado com outros órgãos de fiscalização federal, como a ANVISA (um milhão e quinhentos mil reais) e o IBAMA (cinquenta milhões de reais).

 

3.2.3. Da dosimetria da pena: da não ocorrência de bis in idem ao considerar a primariedade da Empresa infratora e da reincidência genérica como agravante antes do Decreto nº 10.468/2020

 

Registre-se que as ações sobre o tema em perspectiva, por vezes, questionam também a dosimetria da sanção no caso concreto, sob dois aspectos: ora se alega que a não primariedade da Empresa Autora teria sido considerada duplamente (para não lhe infligir a pena de advertência e para agravar a pena de multa), em suposto desrespeito ao princípio de proibição do bis is idem; ora se sustenta que apenas a reincidência específica seria hábil a agravar a pena de multa então irrogada pela autoridade administrativa no exercício da sua prerrogativa sancionadora.

 

Primeiro, quanto ao argumento relativo à não primariedade da Empresa infratora supostamente sobreavaliada, indispensável colacionar a esta manifestação o teor do art. 508, incisos I e II, e art. 510, § 2º, ambos do Decreto nº 9.013, de 2017, os quais prevêem, in verbis:

Art. 508. Sem prejuízo das responsabilidades civis e penais cabíveis, a infração ao disposto neste Decreto ou em normas complementares referentes aos produtos de origem animal, considerada a sua natureza e a sua gravidade, acarretara, isolada ou cumulativamente, as seguintes sanções:
I - advertência, quando o infrator for primário e não tiver agido com dolo ou má-fé;
II - multa, nos casos não compreendidos no inciso I, tendo como valor máximo o correspondente ao valor fixado em legislação especifica, observadas as seguintes gradações:
(...)
Art. 510. Para efeito da fixação dos valores da multa de que trata o inciso II do caput do art. 508, serão considerados, além da gravidade do fato, em vista de suas consequências para a saúde pública e para os interesses do consumidor, os antecedentes do infrator e as circunstâncias atenuantes e agravantes.
(...)
§ 2º São consideradas circunstâncias agravantes:
I - o infrator ser reincidente;
I - o infrator ser reincidente específico; (Redação dada pelo Decreto nº 10.468, de 2020)
(grifou-se)

 

Como se vê, os dispositivos acima reproduzidos são translúcidos ao prever, de um lado, as condições para enquadramento da adequada sanção administrativa (art. 508, I e II) e, de outro lado, circunstâncias agravantes à sanção de multa (art. 510, § 2º).

 

Perceba-se que a cominação da sanção adequada em um caso de infração às normas relativas à inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal não é ato discricionário do administrador público. Ao contrário, depende de levar à risca as condicionantes dispostas nos incisos I e II do art. 508 do Decreto nº 9.013, de 2017.

 

​Daí, haure-se do texto normativo que, para que uma infração mereça ser sancionada apenas com advertência, segundo o inciso I do aludido art. 508, duas são as condições que precisam ser satisfeitas cumulativamente, uma positiva e outra negativa: a. positiva – o infrator deve ser primário; e também b. negativa – o infrator não deve ter agido com dolo ou má-fé. Já a sanção de multa, hipótese do inciso II do mesmo art. 508, é aplicável, residualmente, “nos casos não compreendidos no inciso I”.

 

À vista disso, em não sendo primária, por exemplo – ou seja, em sendo reincidente, e o ato normativo ora interpretado, neste ponto, não distingue entre reincidência genérica ou específica –, a Empresa infratora não poderá ser apenada com mera advertência, por não atender a uma das condições objetivas dessa branda sanção.

 

​Não é árduo compreender que a norma abrigada no texto do Decreto nº 9.013, de 2017, assim previu tendo em mira satisfazer o princípio constitucional da proporcionalidade e da razoabilidade, norteador de todos os processos sancionadores sobre o qual, aliás, esta manifestação já fez escólio (vide item 3.2.2).

 

​Outra totalmente distinta é a ponderação da não primariedade (da reincidência, por assim dizer) enquanto uma circunstância agravante de pena (art. 510, § 2º, Decreto nº 9.013, de 2017).

 

​Diante disso, é axiomático que eventual alegação no sentido de que levar em consideração a não primariedade (a reincidência) como condicionante de pena e como circunstância agravante configuraria bis in idem não se sustenta, inclusive porque essa interpretação dos arts. 508, I e II, e 510, § 2º, ambos do Decreto nº 9.013, de 2017, esvaziaria de sentido o sistema punitivo da Lei que regulamenta.

 

​​Quer dizer, se a situação de não primariedade fosse hábil apenas para condicionar que a pena de advertência não seria a cabível em uma dada circunstância, mas não fosse hábil para servir como agravante da pena de multa, estar-se-ia a admitir a disfuncionalidade do sistema, afinal seria o mesmo que admitir que os incisos I e II do art. 508 devem ter aplicabilidade enquanto o § 2º do art. 510 do mesmo Decreto nº 9.013, de 2017, por qualquer motivo, não deve.​

 

Uma interpretação tal qual essa acima, como se demonstrou, é inadmissível, ao passo que, escanteando a clássica técnica hermenêutica da interpretação sistemática da norma, desprestigiaria o ordenamento jurídico como um “sistema”, uno e harmônico.

 

Por tudo isso, sabe-se que quem sustenta que a Administração Pública estaria incorrendo em odioso bis in idem ao considerar a não primariedade (a reincidência) da Empresa infratora como condicionante de pena (critério para a incidência de uma ou outra sanção) e como circunstância agravante da pena de multa (critério da sua proporcional valoração) equivoca-se rotundamente.

 

Quanto à alegação de que a reincidência genérica não seria hábil a agravar a pena de multa então irrogada pela autoridade administrativa no exercício da sua prerrogativa sancionadora, antes de mais nada, é preciso atentar-se mais uma vez para o enunciado do inciso I do § 2º do art. 510, tanto na sua redação original, quanto na sua redação após a edição do Decreto nº 10.468, de 18/08/2020 (DOU de 19/08/2020):

 

 

Art. 510. Para efeito da fixação dos valores da multa de que trata o inciso II do caput do art. 508, serão considerados, além da gravidade do fato, em vista de suas consequências para a saúde pública e para os interesses do consumidor, os antecedentes do infrator e as circunstâncias atenuantes e agravantes.
(...)
§ 2º São consideradas circunstâncias agravantes:
I - o infrator ser reincidente;
I - o infrator ser reincidente específico; (Redação dada pelo Decreto nº 10.468, de 2020)
(grifou-se)

 

A leitura acurada do texto normativo acima torna indiscutível que, entre a data desde quando entrou em vigor o Decreto nº 9.013, de 2017, e a data da entrada em vigor do Decreto nº 10.468, de 2020, que alterou a redação do inciso I do § 2º do art. 510, quer dizer, entre 30/03/2017 e 18/08/2020, não importava se o infrator era reincidente genérico ou reincidente específico, a “reincidência”, amplamente falando, era circunstância bastante para agravar a pena de multa.

 

Ora, o Decreto nº 9.013, desde a sua edição, em 29/03/2017, apresenta conceito claro do que se deve compreender por “reincidência” – por sinal, um conceito abrangente ao ponto de hospedar as situações de reincidência genérica e de reincidência específica. A esse respeito, trasladam-se abaixo os §§ 4° e 5º do seu art. 510:

Art. 510. (...)
§ 4º Verifica-se reincidência quando o infrator cometer nova infração depois do trânsito em julgado da decisão administrativa que o tenha condenado pela infração anterior, podendo ser genérica ou específica.
§ 5º A reincidência genérica é caracterizada pelo cometimento de nova infração e a reincidência específica é caracterizada pela repetição de infração já anteriormente cometida.
(Grifou-se)

 

Ou seja, concatenando o disposto no inciso I do § 2º do art. 510 (com a sua redação original) com o disposto no § 4° do mesmo art. 510 do Decreto nº 9.013, de 2017, tem-se que o infrator “reincidente”, leia-se, aquele que cometeu nova infração depois do trânsito em julgado da decisão administrativa que o tenha condenado pela infração anterior, “podendo ser genérica ou específica”, terá sua pena de multa majorada pela circunstância da reincidência.

 

Dessarte, uma dada alegação de que, para os fatos geradores (fiscalizatórios) datados entre 30/03/2017 e 18/08/2020 – período enquanto estava vigente a redação original do inciso I do § 2º do art. 510 do Decreto nº 9.013, de 2017 –, apenas a reincidência específica seria circunstância idônea a agravar a sanção administrativa de multa não resiste sequer à leitura atenta, sistematicamente considerada.

 

3.2.4. Do não rechaço à reformatio in pejus no recurso administrativo

 

Outrossim, é frequente os Autores de ações relativas às multas infligidas com base nos valores previstos pela Medida Provisória nº 772, de 2017, de forma equivocada, defenderem que a decisão administrativa de segunda instância que majora o valor da multa aplicada em primeira instância seria nula de pleno direito, por suposto desrespeito ao princípio regente dos processos criminais, estatuído pelo art. 617 do Código de Processo Penal, da non reformatio in pejus.

 

Ocorre que, de forma totalmente diversa do que ocorre com os processos de índole penal, a Lei regente dos processos administrativos em órgãos/entidades federais, no caso, a Lei n° 9.784, de 1999, não rechaça a reformatio in pejus – digo, a decisão tomada em recurso administrativo que reforma a decisão anterior, dela resultando o agravamento da penalidade antes irrogada.

 

Aliás, para casos tais, a Lei geral dos processos administrativos federais estabelece sistemática diferente, fixada pelo seu art. 64, parágrafo único, in verbis:

 

Artigo 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência.
Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame a situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão.
 

 

Assim, tem-se que é possível – e a praxe nos soletra que também é corriqueiro – que a decisão tomada em nível recursal agrave uma sanção e isso não é repudiado pela sistemática do direito administrativo, bastando que se puder decorrer gravame a situação do recorrente, este seja “cientificado para que formule suas alegações antes da decisão” – é assim que se pronuncia a Lei nº 9.784, de 1999.

 

Nesse mesmo sentido, urge ressaltar que não é só a legislação que confere suporte ao ora defendido, mas, muito especialmente, a jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores, conforme se reproduz a seguir:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. ATENDIMENTO BANCÁRIO. REGULAMENTAÇÃO POR NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS LOCAIS. POSSIBILIDADE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PARA RATIFICAR A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE. PROCESSO ADMINISTRATIVO. RECRUDESCIMENTO DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA EM RECURSO DO ADMINISTRADO. PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA. POSSIBILIDADE.
1. Os municípios têm competência para regulamentar o atendimento ao público em instituições bancárias, uma vez que se trata de matéria de interesse local.
2. A jurisprudência da Corte sobre a matéria foi ratificada pelo Plenário desta Corte quando do julgamento do RE 610.221, da Relatoria da E. Min. Ellen Gracie, cuja Repercussão Geral restou reconhecida.
3. A possibilidade da administração pública, em fase de recurso administrativo, anular, modificar ou extinguir os atos administrativos em razão de legalidade, conveniência e oportunidade, é corolário dos princípios da hierarquia e da finalidade, não havendo se falar em reformatio in pejus no âmbito administrativo, desde que seja dada a oportunidade de ampla defesa e o contraditório ao administrado e sejam observados os prazos prescricionais.
4. In casu, o acórdão recorrido assentou:
“ADMINISTRATIVO - FUNCIONAMENTO DOS BANCOS – EXIGÊNCIAS CONTIDAS EM LEI ESTADUAL E MUNICIPAL – LEGALIDADE.
1. A jurisprudência do STF e do STJ reconheceu como possível lei estadual e municipal fazerem exigências quanto ao funcionamento das agências bancárias, em tudo que não houver interferência com a atividade financeira do estabelecimento (precedentes).
2. Leis estadual e municipal cuja argüição de inconstitucionalidade não logrou êxito perante o Tribunal de Justiça do Estado do RJ.
3. Em processo administrativo não se observa o princípio da "non reformatio in pejus" como corolário do poder de auto tutela da administração, traduzido no princípio de que a administração pode anular os seus próprios atos. As exceções devem vir expressas em lei.
4. Recurso ordinário desprovido.”
5. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo a que se nega provimento.
(ARE 641.054-AgR/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 26.6.2012. Grifou-se)

 

Se do ponto de vista doutrinário, não se desconhece, há quem defenda diferentemente [7], fato é que, com amparo constitucional, a Lei geral dos processos administrativos federais escolheu entregar a este ramo do direito tratamento diferente daquele do direito penal e não o fez sem se apoiar em princípios processuais caros, dentre os quais elencamos:

 

(i) o princípio da autotutela, porquanto a administração deve se "autoproteger ou corrigir-se continuamente, afastando, por iniciativa própria, qualquer irregularidade, abuso ou ilegalidade, e até mesmo, substituir procedimentos, praticas ou atos que se mostrem inadequados, ultrapassados ou ineficazes";

(ii) princípio da legalidade, visto que havendo ilegalidade da decisão objeto de recurso, há um dever da Administração (atividade vinculada) de rever o ato praticado em desconformidade com a lei, bem como há autorização legal, nos processos administrativos federais, para o agravamento da sanção, se cientificado o interessado;

(iii) princípio da oficialidade e verdade material, rectius verdade possível, pois a Administração tem o dever de deflagrar e principalmente impulsionar o processo e ainda revê-lo (se necessário), por iniciativa própria, sempre em busca da verdade material dos fatos; e, é claro,

(iv) princípio da segurança jurídica, ao prestigiar-se o ordenamento juridico e as instituições stricto sensu, trazendo estabilidade e confiança as relações jurídico-administrativas.

 

Por fim, apenas por cautela, é devido distinguir a situação em apreço do que o legislador ordinário reservou ao instituto da revisão administrativa.

 

Enquanto, no recurso administrativo, a parte interessada, num mesmo processo, prolonga a discussão quanto ao acerto da decisão perante a autoridade superior, na revisão administrativa, a autoridade, de ofício ou a pedido do agente, pode rever, a qualquer tempo, a sanção administrativa aplicada em processo administrativo encerrado, na restrita hipótese de surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção.

 

Ao lado dessa diferenciação ope legis, o legislador previu, no art. 65 da Lei nº 9.784, de 1999, que, da revisão administrativa, não pode resultar o agravamento da sanção imposta anteriormente, aplicando-se, apenas nessa circunscrita hipótese, a proibição da reforma em prejuízo. Vejamos:

 

Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada.
Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção.

 

Desta feita, patente que a reforma em prejuízo nos recursos administrativos federais possui suporte legal, doutrinário e jurisprudencial, devendo ser rechaçada a alegação de que o ato decisório que, em sede recursal, majorou a multa aplicada seria nula, afinal a proibição da reformatio in pejus não se lhe aplica.

 

4. ARREMATE DO TEMA

 

Ante todo o exposto, arremata-se que:

 

5. CONCLUSÃO

 

Diante de todo exposto, após a aprovação da presente Informação Jurídica Referencial, está deverá ser adotada como parâmetro nas ações judiciais relativas às multas infligidas com base nos valores previstos pela Medida Provisória nº 772, de 2017.

 

Assinale-se, entretanto, que os órgãos de execução da PRU poderão se pronunciar, de ofício ou por provocação, com vistas à retificação, complementação, aperfeiçoamento ou ampliação de posicionamento lançado na presente manifestação jurídica referencial, ou destinado a adaptá-la a inovação normativa, mutação jurisprudencial ou entendimento de órgão de direção superior da Advocacia Geral da União.

 

Ademais, caberá ao órgão assessorado quantificar e indicar a esta Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Agricultura e Pecuária os processos em que foram utilizados a presente Informação Jurídica Referencial.

 

Isto posto, submeto os autos à superior consideração, para, na forma do art. 4º, inciso V, da Portaria CONJUR/MAPA nº 1, de 6 de abril de 2023, aprovar esta IJR e atestar o atendimento dos requisitos constantes da Portaria Normativa CGU/AGU nº 5, de 31 de março de 2022. 

 

Sugere-se, por fim, caso aprovada seja dada ciência desta IJR aos órgãos de execução da Procuradoria-Geral da União - PGU/AGU, por força do art. 12, caput, e à Consultoria-Geral da União - CGU/AGU, na forma do art. 13 da aludida Portaria Normativa CGU/AGU nº 5, de 2002.

 

À consideração superior. 

 

Brasília-DF, 26 de maio de 2023.

 

(Assinado eletronicamente)

ALEXANDRE LEME FRANCO

Advogado da União

Coordenador-Geral de Defesa Agropecuária, Política Agrícola e Inovação​​

 


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Notas

  1. ^  COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 936.
  2. ^ AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Comentário ao artigo 62. In: CANOTILHO, J. J.; MENDES, Gilmar F; SARLET, Ingo W.; STRECK Lenio L. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1153.
  3. ^ Ibidem.
  4. ^ MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 21ª ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 184 e 193.
  5. ^ MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 21ª ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 184 e 193.
  6. ^ MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei n. 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública). Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 105
  7. ^ Sob o ponto de vista doutrinário, há três principais correntes sobre o assunto. A primeira delas, afirma a impossibilidade de agravamento da sanção quando do julgamento do recurso pela autoridade superior, pugnando que o princípio da reformatio in pejus seja considerado princípio geral de direito. Trata-se da posição minoritária. A segunda, liderada pelo professor José dos Santos Carvalho Filho, admite a aplicação da sanção mais grave pela autoridade superior nos casos de ilegalidade estrita da decisão proferida pela autoridade inferior (contrário somente no agravamento por razoes subjetivas). Por último e majoritária, é a corrente doutrinária segundo a qual se permite a reforma em prejuízo, capitaneada pelos professores Hely Meirelles e Odete Medauar.



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