ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA DA UNIÃO ESPECIALIZADA VIRTUAL DE PATRIMÔNIO
NÚCLEO JURÍDICO

PARECER n. 00719/2023/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU

 

NUP: 00416.028983/2023-61

INTERESSADOS: SUPERINTENDÊNCIA DE PATRIMÔNIO DA UNIÃO NO PARANÁ – SPU-PR/MGI

ASSUNTOS: CONSULTA. CESSÃO DE USO GRATUITA. DESCUMPRIMENTO DE ENCARGO

 

EMENTA:
I – Direito Administrativo. Patrimônio imobiliário da União.
II – Manifestação formal em consulta formulada pelas áreas técnicas.
III – Solicitação de orientações com relação ao contrato de cessão sob o regime de aforamento da área denominada Ilha do Mel celebrado com o Estado do Paraná. Procedimentos a serem adotados com relação a irregularidades alegadamente praticadas.
IV – Questões anteriormente analisadas no PARECER n. 0861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU, aprovado pelo DESPACHO n. 00120/2021/COORD/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU (NUP: 00447.000991/2021-14).
V – Devolução ao órgão consulente para ciência e providências cabíveis.

 

 

RELATÓRIO

 

Em cumprimento ao disposto no art. 131 da Constituição da República, no art. 11 da Lei Complementar nº 73/1993, no art. 8º-F da Lei nº 9.028/1995, no art. 19 do Ato Regimental AGU nº 05/2007 e no art. 1º da Portaria Normativa AGU nº 72/2022, a SUPERINTENDÊNCIA DE PATRIMÔNIO DA UNIÃO NO PARANÁ – SPU-PR/MGI encaminha a esta e-CJU/Patrimônio, via SAPIENS, link de acesso ao processo SEI de referência solicitando orientações com relação ao contrato de cessão sob o regime de aforamento da área denominada Ilha do Mel celebrado com o Estado do Paraná, no tocante aos procedimentos a serem adotados com relação a irregularidades alegadamente praticadas no cumprimento das obrigações pactuadas.

 

Encontram-se nos autos os seguintes documentos:

https://sei.economia.gov.br/sei/processo_acesso_externo_consulta.php?id_acesso_externo=2964992&infra_hash=d20a746e5c718428a528ae1e1a88eb92

36684832        Memória         18/08/2023     MGI-SPU-PR

36691947        Contrato         18/08/2023     MGI-SPU-PR

36691923        Plano   18/08/2023     MGI-SPU-PR

36691968        Lei      18/08/2023     MGI-SPU-PR

36691982        Lei      18/08/2023     MGI-SPU-PR

36689704        Despacho       18/08/2023     MGI-SPU-PR

36718052        Ofício 93190    21/08/2023     MGI-SPU-PR-SEGEM

36754299        E-mail  22/08/2023     MGI-SPU-PR-SEGEM

36863328        Aviso   25/08/2023     MGI-SPU-PR-SEGEM

37070535        Ofício  04/09/2023     MGI-SPU-PR-SEGEM

37070853        Ofício 100130  04/09/2023     MGI-SPU-PR-SEGEM

37072031        Despacho       04/09/2023     MGI-SPU-PR-SEGEM

 

Processo distribuído em 05/09/2023, analisado em caráter de urgência em virtude do objeto.

 

É o relatório.

 

Inicialmente, cumpre observar que as páginas do processo físico foram digitalizadas e carregadas no Sistema SEI pelo órgão consulente.

 

Registre-se, por oportuno, que a análise, por ora alinhavada, está adstrita à documentação constante nos arquivos digitalizados no sistema SEI. A omissão de documentos determinantes para melhor elucidação da questão e a ausência de efetiva fidedignidade do conteúdo das cópias juntadas com os respectivos originais implicam na desconsideração do presente parecer.

 

DA FINALIDADE E ABRANGÊNCIA DO PARECER JURÍDICO

 

A presente manifestação jurídica tem o escopo de assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem praticados ou já efetivados. Ela envolve, também, o exame prévio dos textos de editais, de minutas de contratos e de seus anexos, quando for o caso.

 

A função da Consultoria Jurídica da União é apontar possíveis riscos do ponto de vista jurídico e recomendar providências para salvaguardar a autoridade assessorada, a quem compete avaliar a real dimensão do risco e a necessidade de se adotar ou não a precaução recomendada.

 

Importante salientar, que o exame dos autos processuais se restringe aos seus aspectos jurídicos, excluídos, portanto, aqueles de natureza técnica. Em relação a estes, parte-se da premissa de que a autoridade competente se municiou dos conhecimentos específicos imprescindíveis para a sua adequação às necessidades da Administração, observando os requisitos legalmente impostos.

 

Nesse sentido vale lembrar que o Enunciado n° 07, do Manual de Boas Práticas Consultivas da CGU/AGU recomenda que “o Órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade”.

 

De fato, presume-se que os estudos técnicos contidos no presente processo, inclusive quanto ao detalhamento de seu objeto, suas características e requisitos, tenham sido regularmente determinados pelo setor competente do órgão, com base em parâmetros técnicos objetivos, para a melhor consecução do interesse público.

 

Além disso, vale esclarecer que, em regra, não é atribuição do órgão de assessoramento jurídico exercer a auditoria quanto à competência de cada agente público para a prática de atos administrativos. Cabe-lhes, isto sim, observar se os seus atos estão dentro do seu espectro de competências.  Assim sendo, o ideal, para a melhor e completa instrução processual, é que sejam juntadas ou citadas as publicações dos atos de nomeação ou designação da autoridade e demais agentes administrativos bem como os atos normativos que estabelecem as respectivas competências, com o fim de que, em caso de futura auditoria, possa ser facilmente comprovado que quem praticou determinado ato tinha competência para tanto. Todavia, a ausência de tais documentos, por si, não representa, a priori, óbice ao desenvolvimento do processo.

 

Por fim, com relação à atuação desta Consultoria Jurídica, é importante informar que, embora as observações e recomendações expostas não possuam caráter vinculativo, constituem importante instrumento em prol da segurança da autoridade assessorada, a quem incumbe, dentro da margem de discricionariedade que lhe é conferida pela lei, avaliar e acatar, ou não, tais ponderações, ressaltando-se, todavia, que o seguimento do processo sem a observância destes apontamentos será de responsabilidade exclusiva da Administração.

 

DA DELIMITAÇÃO JURÍDICA DA CONSULTA

 

O Despacho de 04/09/2023 (37072031) esclarece a questão suscitada:

 

1. Em atenção ao Despacho 36689704, referente às deliberações da reunião ocorrida em 12/07/2023 36684832, no que se refere à validade da Lei Estadual 20.244, de 17/06/2020, encaminhamos consulta à Procuradoria da União no Paraná (36718052), a fim de averiguar sobre a possibilidade invalidar a referida lei, tendo em vista que o Plano de Uso da Ilha do Mel aprovado junto à SPU é o Plano de Uso Inicial de 1985 (36691923).
 
2. Em resposta (Ofício n. 00448/2023/COREPAMNS/PRU4R/PGU/AGU (37070535), a Procuradoria da União informou que, previamente à análise quanto ao cabimento de eventual medida judicial, seria necessário avaliar o fato de que foi celebrado um "contrato de cessão sob o regime de aforamento de terrenos de marinha e interiores existentes na denominada Ilha do Mel", entre a União/SPU e o Estado do Paraná, devendo ser avaliado os efeitos do citado negócio jurídico no caso, "inclusive quanto à sua vigência e ao descumprimento dos seus termos, bem como a possibilidade de notificação administrativa do Estado".
 
3. Ocorre que, ainda que o Estado do Paraná tenha descumprido de forma contumaz os termos do contrato de cessão, a SPU/PR se vê imersa num grande imbróglio, haja vista que não possui condições de promover a regularização fundiária e a fiscalização adequada de um imóvel de grandes dimensões e com tipologias de ocupação por vezes conflitantes. Também não houve sinalização por parte do município de Paranaguá, indicando interesse em promover a gestão da área com recursos próprios.
 
4. No intuito de viabilizar uma gestão compartilhada e encontrar, principalmente, meios de combater a especulação imobiliária e a degradação de áreas preservação, o MP/PR e o MPF instituíram grupo de trabalho específico para a Ilha do Mel. Em reunião do grupo, realizada em 12/07/2023, cuja memória segue em anexo (36684832), restou confirmada a dissonância entre a SPU e o Estado do Paraná, a respeito da validade das leis n° 16.037/2009 e n° 20.244/2020, que dispõem que a Ilha do Mel constitui região de especial interesse ambiental e turístico do Estado do Paraná, dentre outras providências.
 
5. Conforme exaustivas manifestações da SPU/PR, não houve a participação nem anuência da União em relação às referidas normas, tampouco participação das comunidades afetadas por tal regramento, gerando questionamentos quanto à ausência de isonomia entre as ocupações. 
 
6. Há também incompatibilidade com as diretrizes da legislação patrimonial e extrapolação dos limites de atuação. Enquanto o instrumento de destinação do imóvel (em fase de revisão) objetivava precipuamente a preservação da Ilha do Mel, mantendo os cadastros pré-existentes sob a gestão da SPU/PR, e repassando ao Estado a competência para regularizar os imóveis ainda não cadastrados, houve um desvirtuamento da atuação, sem qualquer transparência em relação às concessões de uso e licenças ambientais concedidas.
 
7. Embora tenhamos reafirmado ao longo dos anos que o único regramento, efetivamente aprovado pela SPU/PR para a Ilha do Mel, seja o Plano de Uso de 1.985, na via administrativa o Estado do Paraná sinalizou que não cogita a revogação da Lei n° 16.037/2009 e da Lei n° 20.244/2020.
 
8. Considerando a necessidade de se respeitar acordos institucionais, orientados à preservação dos remanescentes de vegetação do Estado e à garantia ao direto de moradia às populações tradicionais, coibindo a especulação imobiliária, propomos a realização de consulta à CJU, no sentido de informar sobre a possibilidade de invalidar ou suspender a eficácia das leis estaduais mencionadas acima, a fim de que as instituições envolvidas na causa possam elaborar um novo normativo de forma participativa.
9. Na oportunidade, a SPU/PR questiona se há óbices jurídicos para manter o Plano de Uso de 1.985, em anexo (36691923), como norma vigente até a edição de lei ulterior. (Grifos nossos)

          

ANÁLISE

 

A celeuma já foi objeto de análise por esta Consultoria pelo PARECER n. 0861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU (NUP: 00447.000991/2021-14), de onde se faz necessário destacar o seguinte excerto (grifos no original):

 

[...]
19. Partindo-se, pois, dessa premissa, e considerando todo o tempo transcorrido sem que houvesse uma efetiva solução, com o intuito de contribuir promovendo maior celeridade para dirimir a celeuma, passa-se a apresentar, pontual e objetivamente, considerações acerca das conclusões constantes da Nota Técnica SEI nº 41740/2021/ME (18410141):
 
20. Carência de documentação no processo e ausência de gestão contratual: o cerne desses tópicos foi devidamente abordado na nota técnica e nos parágrafos anteriores deste parecer. Louva-se a pró-atividade do órgão consulente por ter implantado uma rotina de acompanhamento de encargos contratuais, o que já não permite este tipo de ingerência nos contratos. Além disso, recomenda-se à Autoridade competente que apure eventual responsabilidade caso tenha ocorrido lesão ao interesse público e social.
 
21. Impossibilidade de Termo Aditivo ao Contrato de Cessão sob Regime de Aforamento: entende o setor técnico do órgão que o Contrato de Cessão sob regime de Aforamento encontre-se rescindido por inobservância de encargos contratuais, o que impediria a celebração de termo aditivo.
 
22. No que diz respeito à rescisão contratual, importante trazer à baila a ementa e a conclusão do Parecer nº 00001/2017/PLENARIO/CRU2/CGU/AGU (NUP: 04936.004435/2013-56), que é esclarecedor:
 
EMENTA:
I - A previsão de cláusula resolutiva expressa em contratos de cessão de uso se dá em favor da Administração Cedente.
II - Nessa condição, a resolução automática em caso de descumprimento por parte do Cessionário poderá ser afastada através de ato devidamente motivado da Cedente, considerando questões de interesse público e/ou conveniência e oportunidade administrativas, numa interpretação sistemático-teleológica e em cotejo a princípios que norteiam a Administração Pública.
III - O ato de manutenção do contrato poderá ser praticado posteriormente ao término do prazo previsto para o cumprimento da condição/encargo pelo Cessionário, desde que não expirado o prazo de vigência contratual, porquanto inaplicável àquele a Orientação Normativa AGU nº 03/2009.
 
[...]
III CONCLUSÃO
 
60. Considerando a fundamentação acima esposada, na esteira do entendimento da Câmara Regional de Uniformização de Entendimentos Consultivos da 3ª e 4º Região, conclui-se que
. mesmo havendo descumprimento contratual por parte do cessionário e cláusulas que estabeleçam a resolução automática como consequência, em contratos de cessão de uso, oneroso ou gratuito, em que a União figura com cedente, ela só se dará se a Administração assim se manifestar após a devida análise em procedimento administrativo de apuração, permeando questões de interesse público e/ou conveniência e oportunidade administrativa;
. o contrato de cessão de uso de imóvel da União, gratuito ou oneroso, figurando esta como cedente, é contrato administrativo, de feição unilateral, sofrendo assim influxo das características próprias a esses contratos, especialmente a previsão de cláusulas exorbitantes;
. a cláusula resolutiva expressa padrão aposta nesse tipo de contrato, a exemplo da redação prevista na ON – GEAPN – 002 e Portaria SPU nº 5 de 31/01/2001, no sentido de que "considerar-se-á rescindido o presente Contrato de Cessão, independente de ato especial, retornando o imóvel à posse da OUTORGANTE Cedente, sem direito o OUTORGADO Cessionário, a qualquer indenização, inclusive por benfeitorias realizadas, nos seguintes casos: (...) b) se houver inobservância do prazo previsto na cláusula sétima; c) se ocorrer inadimplemento de cláusula contratual;" é estabelecida em favor da Administração cedente, que pode, caso ocorra a incursão do cessionário em uma delas, por questões de interesse público, primário ou secundário, e/ou da conveniência e oportunidade administrativas na manutenção da avença, numa interpretação sistemático-teleológica e em cotejo a princípios que norteiam a Administração Pública, decidir pela manutenção do contrato; isso desde que ainda esteja em vigor o prazo de vigência previsto;
. a Orientação Normativa AGU nº 03/2009, cuja finalidade precípua é coibir a realização de prorrogações quando se verificar a extrapolação do prazo de vigência dos contratos, não se aplica no caso de extrapolação do prazo para a conclusão do respectivo encargo/condição especial pelo Cessionário, uma vez que esse prazo de execução em contrato de cessão de uso não se confunde com o prazo de vigência contratual; não se pode falar, todavia, propriamente, em “prorrogação”, mas sim na alteração das referidas cláusulas e, por consequência, dos prazos nela previstos;
. há viabilidade jurídica de realização de um termo aditivo ao contrato de cessão, expirado esse prazo, desde que devidamente motivado nos termos supra, de modo a fixar um novo prazo para a conclusão do respectivo encargo/condição especial pelo Cessionário. Para tanto, se tal estipulação foi prevista também no ato autorizativo precedente ao contrato, destaca-se a necessidade de edição de nova portaria autorizativa pelo Exmo. Sr. Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão ou por autoridade administrativa diversa, no exercício de competência delegada, com a finalidade de autorizar a fixação de novos prazos contratuais. (grifos nossos)
 
23. No mesmo sentido, a Nota nº 01230/2020/PGFN/AGU, no evento e deste processo:
 
[...]
Isto é, a cláusula de rescisão automática do contrato de doação deve receber interpretação sistemático-teleológica que melhor atenda ao interesse público e a observância aos princípios que norteiam a Administração Pública, de modo que o alargamento da finalidade, com implementação de equipamentos adicionais aos previstos originalmente, não gere, por si só, a rescisão automática do respectivo contrato de doação. Entende-se que tal cláusula apenas confere à União a faculdade de resolvê-lo unilateralmente e sem ônus, caso não persista o interesse público que motivou a doação.
 
Caso a SPU, em seu juízo de conveniência e oportunidade, entenda que a implantação de uma delegacia e um quartel, além da regularização da escola já construída, atendem ao interesse público, deve-se proceder à adequação tanto da portaria autorizativa quanto do contrato de doação, por meio de termo aditivo, devendo constar em ambos, a fixação de novo prazo para a implantação dos novos equipamentos, quais sejam, o quartel e a delegacia, em observância ao artigo 31, §1º, da Lei nº 9.636/1998. (grifos nossos).
[...]
 
24. Como se vê, o descumprimento de encargos contratuais PODE acarretar a rescisão contratual, contudo, caso a autoridade competente, no seu juízo de oportunidade e conveniência, considere não ter havido desvio de finalidade e que as eventuais irregularidades no cumprimento dos encargos possam ser superadas em homenagem aos princípios da Administração Pública, com o intuito de prevalecer o interesse público e social sobre a regularidade formal, segundo as manifestações jurídicas acima colacionadas, em tese, seria possível não haver óbice jurídico ao prosseguimento do processo com a celebração de um termo aditivo.
 
25. Legalidade da Transferência de competências do Estado ao IAT e Legalidade do Compartilhamento de Gestão com a criação da UNADIM: as considerações sobre esses tópicos serão apresentadas de forma concatenada, pois são complementares.
 
26. Os entes federativos são dotados de autonomia política e administrativa, o que lhes confere a capacidade de auto-organização, sendo-lhes reservada a competência para promulgar estatutos normativos básicos regulamentadores das linhas mestras da sua estrutura orgânica e da consequente atuação administrativa.
 
27. Esclarece Raul Machado Horta (HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 339-340):
 
Ao expedir as normas que configuram a organização federal, a Constituição defere ao Estado o poder de organização própria, designando como fontes do poder autônomo de organização a Constituição e as leis estaduais. Nesse cerne organizatório, situa-se a autonomia do Estado-Membro, que caracteriza e singulariza o Estado Federal, de modo geral, e o Estado Federal Brasileiro, de modo particular, no domínio das formas estatais. A autonomia provém, etimologicamente, de nómos e significa, tecnicamente, a edição de normas próprias.
[…]
É regra comum às Constituições Federais Brasileiras a disposição de que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem no exercício de seu poder de organização e de legislação, com variação de linguagem de uma para outra Constituição, sem afetar, todavia o conteúdo desse poder […]
Poderes de organização constitucional e de legislação e poderes reservados são as fontes da competência exclusiva dos Estados-Membros, que irão abastecer o ordenamento jurídico estadual com as normas hierarquicamente escalonadas da Constituição e das leis. Demonstra-se, deste modo, que os Estados-Membros, além de partes constitutivas da República Federal, são titulares de personalidade autônoma de Direito Público, possuindo capacidade de ação e vontade independente.
 
28. Como se vê, a União não tem competência para definir, por lei, estruturas de outra pessoa federativa. Na ausência de um dispositivo constitucional que dê à União poder para editar lei que vincule Estados, Municípios e DF, compete-lhes legislar sobre as matérias que digam respeito à sua estruturação orgânica, de pessoal e relativa à descentralização e desconcentração administrativa, bem como sobre os procedimentos administrativos necessários à sua atuação.
 
29. Ora, competência das consultorias jurídicas dos estados encontra-se prevista no art. 8º-F da Lei nº 9.028/1995 bem como no art. 19 do Ato Regimental AGU nº 5/2007, ou seja, para assessorar autoridades da Administração Federal Direta localizadas fora do Distrito Federal, nos atos de competência destes.
 
30. Toda essa introdução foi necessária para esclarecer ao órgão consulente que despicienda seria a submissão do Decreto Estadual nº 3.502/1997, que delegou ao Instituo Ambiental do Paraná – IAP, entidade vinculada à Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – SEMA, os poderes conferidos ao Estado do Paraná pela Portaria 160/82, à análise da legalidade pela CJU, pois não lhe compete tal atribuição. Ainda que houvesse uma análise no sentido de colaborar com a feitura do ato normativo, o ordenamento jurídico não impõe a necessidade de observância de sua manifestação jurídica. Na verdade, tal questão extrapola a seara jurídica, pois o que poderia ter surtido efeito, na época, seria uma articulação política, de forma a alinhar os procedimentos administrativos, na consecução dos interesses públicos e sociais.
 
31. Nessa linha de raciocínio, o compartilhamento de gestão com a criação da UNADIM pela Lei Estadual nº 20.244/2020, decorre da autonomia política e administrativa desses entes, onde, em princípio, não há espaço para intervenção da União. Ora, a legislação controvertida não trata de mera transferência de competências da cessão de uso ao Município, o que poderia ensejar, nesse aspecto, o descumprimento de cláusula contratual, mas da criação, por lei, da Unidade de Administração da Ilha do Mel - UNADIM, centro de competências sem personalidade jurídica, aparentemente inserida no organograma do Estado do Paraná.
 
32. Inadequação quanto à legislação vigente: Alega o órgão consulente que como o contrato de cessão foi firmado em 15 de agosto de 1982, não se encontra adequado à legislação vigente, qual seja, a Lei nº 9.636/1998. Ora, importa esclarecer que a celebração do contrato se deu observando a legislação vigente na época (tempus regit actum) constituindo ato jurídico perfeito que não pode ser prejudicado nem por lei, segundo o inciso XXXVI, do art. 5º, da Constituição de 1988. Esse fato, por si só, não enseja a necessidade de adequação. Assim, em tese, não há qualquer irregularidade apenas quanto ao fato de permanecer vigente o referido contrato de cessão.
 
33. Ainda segundo o órgão consulente, foi realizada Auditoria nos Contratos de Cessão da SPU-PR pela Consultoria-Jurídica da União - CGU, em 2020 e 2021, o que resultou, como uma das recomendações, a adequação de todos os contratos à Lei nº 9.636/1998.
 
34. Não se localizou o documento resultante da auditoria, por isso não se tem conhecimento dos seus exatos termos, mas, pela informação fornecida, houve uma recomendação para adequação dos contratos à lei vigente. Não há a necessidade de discorrer sobre a natureza dos contratos de cessão de uso sob o regime de aforamento para respaldar a recomendação, que realmente se mostra interessante para gerir o contrato, em virtude do aprimoramento trazido ao instrumento de destinação pela Lei nº 9.636/1998.
 
35. Diante desses fatos, não se pode confirmar existir a obrigatoriedade de realizar novo contrato, mas a recomendação demonstra-se providência importante para a gestão contratual.
 
36. Gestão Compartilhada:  propõe o órgão consulente firmar novos contratos na Ilha do Mel com mais de um ente federativo, sendo possível a atribuição das responsabilidades e encargos adequados aos diversos atores da gestão da Ilha do Mel. Essa proposta é muito interessante e mais adequada à realidade que hoje se verifica na Ilha do Mel, como consequência da gestão do contrato de cessão.
 
37. Na verdade, não haveria compartilhamento na gestão da ilha, pois seriam contratos distintos: um para o Estado, para promover a gestão ambiental da Estação Ecológica e do Parque Estadual e a gestão de atrativos turísticos, outro para o município, para realizar a regularização fundiária na ilha, porém, sempre observando a legislação patrimonial da União, em ambas as hipóteses.
 
38. Ocorre que, muito provavelmente, essa iniciativa irá provocar descontentamento do Estado, do Município e dos terceiros que estão ocupando a área, principalmente em virtude do longo tempo decorrido (quase 40 anos) sem providências administrativas para ajustar a gestão do contrato.
 
39. Na verdade, a SPU está diante de um imbróglio com grande potencial de ser judicializado e, sob o ponto de vista da utilidade do processo para atender o interesse público e social, a judicialização pode retardar todo o procedimento, sobrestando sua finalidade relevante proteção ambiental e regularização fundiária, por anos, ou décadas, aguardando a solução do processo judicial.
 
40. Como se vê, mais uma vez, a celeuma ultrapassará a seara jurídica, pois será necessária uma articulação político-administrativa envolvendo todos os interessados, inclusive as associações de moradores ocupantes da ilha.
 
41. Caso haja dificuldade para dirimir a celeuma mediante tratativas administrativas, como a controvérsia acaba por envolver a União, o Estado, o Município e terceiros, parece ser possível uma solução razoável, ágil e efetiva, para fazer prevalecer o interesse público e social, a instauração de processo conciliatório perante à Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Federal – CCAF.
[...]
 

A questão, agora, retorna com outro NUP, não fazendo qualquer menção ao PARECER n. 0861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU (NUP: 00447.000991/2021-14), nem se manifestando com relação às considerações e recomendações apontadas no citado parecer.

 

Os principais pontos da atual consulta, salvo engano, são:

 

a. A PRU da 4ª Região, mediante o OFÍCIO n. 00448/2023/COREPAMNS/PRU4R/PGU/AGU, de 28 de agosto de 2023 (37070535), esclareceu que, “previamente à análise quanto ao cabimento de eventual medida judicial, faz-se necessário referir que foi celebrado um "contrato de cessão sob o regime de aforamento de terrenos de marinha e interiores existentes na denominada Ilha do Mel", entre a União/SPU e o Estado do Paraná, devendo ser avaliado pelo gestor patrimonial os efeitos do citado negócio jurídico no caso narrado, inclusive quanto à sua vigência e ao descumprimento dos seus termos, bem como a possibilidade de notificação administrativa do Estado”. Informa, ainda, que, nesses pontos, a competência é desta CJU.

 

b. Dissonância entre a SPU e o Estado do Paraná, a respeito da validade das leis n° 16.037/2009 e n° 20.244/2020.

 

c. A possibilidade de invalidar ou suspender a eficácia das leis estaduais: Lei n° 16.037/2009 e da Lei n° 20.244/2020

 

d. A possibilidade de manter o Plano de Uso de 1.985, em anexo (36691923), como norma vigente até a edição de lei ulterior.

 

Com relação ao ponto “a” reporta-se, inicialmente aos itens 16, 17 e 18 do PARECER n. 00861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU:

 

16. Preliminarmente, a leitura do processo demonstra que houve, aparentemente, irregularidades praticadas por todos os envolvidos, desde a simples instrução processual até a condução, cumprimento e fiscalização da cessão sob regime de aforamento pactuada.
 
17. Ora, é de se surpreender que a celeuma persiste por quase 40 (quarenta) anos, tendo o processo ficado, em algumas oportunidades, por longo tempo inerte, apesar de todo o relatado.
 
18. A situação atual da ilha, no que diz respeito à preservação do meio ambiente e ocupação, decorre, portanto, da inobservância de atribuições legais e de obrigações positivas e negativas previstas no ajuste. Eventuais distanciamentos do interesse público e social deram-se em coparticipação dos contratantes.

 

No que diz respeito ao contrato de cessão por aforamento, reporta-se aos itens 21, 22, 23 e 24, transcritos no item 15 desta peça jurídica. Num breve resumo, ainda que haja descumprimento pelo cessionário, a cláusula de resolução automática só produzirá efeitos se a Administração assim se manifestar após a devida análise em procedimento administrativo de apuração, com a devida notificação administrativa e observado o contraditório e ampla defesa, permeando questões de interesse público e/ou conveniência e oportunidade administrativa.

 

Apesar da informação trazida pelo órgão consulente de que o Estado do Paraná descumpre de forma contumaz os termos do contrato de cessão, chega-se à conclusão que nenhuma medida administrativa visando à rescisão contratual foi praticada pelo órgão consulente. Sendo essa a hipótese, o contrato continua a viger.

 

Com relação ao ponto “b”, ou melhor, com relação à toda celeuma do processo, reporta-se aos itens 41 a 48 do PARECER n. 00861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU que orientou no sentido de buscar a Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Federal – CCAF na tentativa de compor o conflito que dura décadas.

 

Com relação ao ponto “c”, reporta-se aos itens 25 a 31 do PARECER n. 00861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU. Nesse sentido, a eventual invalidação ou suspensão da eficácia das leis estaduais deverá ser buscada ou no âmbito judicial, após prévia avaliação pela Secretaria-Geral de Contencioso - SGCT/AGU, ou como resultado de composição na CCAF.

 

Com relação ao ponto “d”, segundo a SPU, o Plano de Uso de 1.985 é o único por ela aprovado, mas foi editada a Lei Estadual n° 16.037/2009, alterada pela Lei Estadual nº 20.244/2020, que, ao que tudo indica, não está em conformidade com aquele plano. A situação jurídica do Plano de Uso de 1.985 (36691923) não está muito esclarecida. Pela documentação juntada aos autos, não se tem certeza se o referido plano estipula as diretrizes estabelecidas pela SPU para utilização da área, ou se é fruto de uma avença devidamente formalizada, ou, ainda, se resulta de uma norma jurídica.

 

Nota-se que, no final do documento 36691923, há uma cópia do Decreto Estadual nº 4.964/1985, que, aparentemente, foi publicado, e não faz menção ao Plano de Uso de 1.985. Partindo-se da premissa de que houve publicação, a Lei Estadual n° 16.037/2009, alterada pela Lei Estadual nº 20.244/2020, não cita de forma expressa o Decreto Estadual nº 4.964/1985 para revogá-lo. Também não há informação de que decreto posterior revogou o citado decreto. A falta de uma revogação expressa, contudo, não afasta a possibilidade de que tenha ocorrido revogação tácita.

 

Feitas as considerações iniciais sobre a questão, o que se pode orientar, em tese, é que se o Plano de Uso de 1.985 apenas estipula as diretrizes estabelecidas pela SPU para utilização da área, essas diretrizes persistem no tempo, por não possuírem natureza de norma jurídica. Se for uma avença, não tendo ocorrido a rescisão por descumprimento pelo Estado, continua a viger.

 

Em sendo uma norma jurídica, e tendo havido a revogação expressa ou tácita, a mera revogação da Lei Estadual n° 16.037/2009, alterada pela Lei Estadual nº 20.244/2020, não restabelece a vigência do Plano de Uso de 1.985, pois, como regra, a repristinação tácita não é admitida no ordenamento jurídico brasileiro, conforme o §3º do art. 2º do Decreto nº 4.657/1942 - Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “§3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. Assim, a vigência do Plano de Uso de 1.985, nesse caso, somente dar-se-ia por disposição legal expressa.

 

Há, contudo, a possibilidade de operar o efeito repristinatório quando a norma que revogou é declarada inconstitucional, pois a declaração de inconstitucionalidade tem efeitos repristinatórios, porquanto fulmina a norma desde o seu surgimento. Ante a nulidade do dispositivo que determinava a revogação de norma precedente, torna-se novamente aplicável a legislação anteriormente revogada (AI nº 602.277/BA-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Roberto Barroso, DJe de 16/3/15). Nesse caso, trata-se de medida a ser buscada em âmbito judicial.

 

Salvo melhor juízo, esses são os esclarecimentos que puderam ser prestados com relação às dúvidas trazidas pelo órgão consulente, diante da documentação ora apresentada. Em anexo, seguem cópias do PARECER n. 0861/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU, e do DESPACHO n. 00120/2021/COORD/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU (NUP: 00447.000991/2021-14), cujo teor e recomendações ora se ratifica.

 

Alerta-se, ainda, para que o órgão consulente diligencie no sentido de atender com urgência o OFÍCIO n. 00448/2023/COREPAMNS/PRU4R/PGU/AGU (37070535) no seguinte aspecto: “Por outro lado, superada a atuação administrativa, solicita-se desde já que a SPU/PR encaminhe a esta Procuradoria um exame detalhado das inconformidades existentes entre as disposições contratuais e legais referentes à gestão patrimonial da União e as Leis Estaduais indicadas, a fim de possam ser examinadas eventuais medidas cabíveis”.

 

DISPOSIÇÕES FINAIS

 

Alerta-se que o teor do presente parecer diz respeito, apenas, à consulta ora formulada, não possuindo caráter abrangente, pois não se trata de Manifestação Jurídica Referencial. Assim, cada caso concreto deverá ser analisado individualmente.

 

Ressalta-se que não compete à e-CJU avaliar questões de ordem fática, técnica ou de cálculo, responsabilizando-se os signatários dos documentos juntadas pelo teor de suas informações perante aos Órgãos de controle, especialmente no que diz respeito às justificativas para o afastamento do certame, inteligência da Boa Prática Consultiva BPC/CGU/AGU nº 7.

 

Cumpre realçar que, caso o Administrador discorde das orientações emanadas neste pronunciamento, deverá carrear aos autos todas as justificativas que entender necessárias para embasar o ajuste pretendido e dar prosseguimento, sob sua exclusiva responsabilidade perante eventuais questionamentos dos Órgãos de Controle, consoante o inciso VII do art. 50 da Lei nº 9.784/1999. Nesse caso, não haverá a necessidade de retorno do feito a esta Consultoria Jurídica da União.

 

CONCLUSÃO

 

Pelo exposto, solicita-se ao Protocolo que devolva ao órgão consulente para ciência, especialmente dos itens 16 a 29, e demais providências que entender cabíveis.

 

É a Nota, de caráter opinativo, que prescinde de aprovação por força do art. 22 da Portaria Normativa CGU/AGU nº 10/2022 – Regimento Interno das Consultorias Jurídicas da União Especializadas Virtuais, publicada no Suplemento A do BSE Nº 50, de 14 de dezembro de 2022.

 

Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2023.

 

(assinado eletronicamente)

RICARDO COUTINHO DE ALCÂNTARA COSTA

ADVOGADO DA UNIÃO

SIAPE 1332674 - OAB-RJ 110.264

 

 


Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em https://supersapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 00416028983202361 e da chave de acesso be27367b

 




Documento assinado eletronicamente por RICARDO COUTINHO DE ALCÂNTARA COSTA, com certificado A1 institucional (*.agu.gov.br), de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 1275351505 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): RICARDO COUTINHO DE ALCÂNTARA COSTA, com certificado A1 institucional (*.agu.gov.br). Data e Hora: 11-09-2023 11:52. Número de Série: 51385880098497591760186147324. Emissor: Autoridade Certificadora do SERPRO SSLv1.