ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA

 

 

PARECER nº 305/2023/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.012222/2023-20

INTERESSADA: Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos

ASSUNTO: Projeto de lei em tramitação no congresso nacional. 

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL.
I - Projeto de lei nº 3.556/2023. Dispõe sobre o conflito de interesses entre os beneficiários do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), instituído pela Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991, e da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, instituída Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022 e impedimentos posteriores.
II - A Constituição Federal não admite a imposição de restrições gerais à liberdade de expressão para acesso e fruição de direitos fundamentais. Conflitos de interesses, embora possam ser abstratamente estabelecidos em lei, constituem critério para contenção e controle do exercício de prerrogativas de poder em organizações do setor público ou privado, não podendo ser utilizadas como instrumento de controle das liberdades políticas e outras garantias constitucionais.
III - Inconstitucionalidade da proposição. Recomendação de adoção de posição contrária à integralidade do texto e adoção das medidas legislativas ao alcance do poder executivo para obstruir sua tramitação ou impedir sua aprovação.

 

 

Sra. Consultora Jurídica,

 

Trata-se de consulta formulada pela Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos, solicitando manifestação sobre o Projeto de Lei nº 3556, de 2023, de autoria do Deputado Mario Frias (PL-SP), que consiste em estabelecer situações jurídicas de conflito de interesse a beneficiários de fomento cultural direto, por meio de repasses de recursos da União, ou indireto, por meio meio de incentivos fiscais, para fins de impedimento de manifestações de caráter político e de assunção de cargos públicos durante período de quarentena de 2 anos.

A consulta foi-nos encaminhada por meio do Ofício nº 547/2023/COLEP/ASPAR/GM/MinC (doc. SEI/MinC 1515685), acompanhado do texto do projeto de lei (SEI/MinC 1293648), após consulta dirigida à Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural, respondida por meio do Ofício nº 1642/2023/SEFC/MinC (SEI/MinC 1348311).

Em seu posicionamento, a Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural manifestou-se contrariamente à proposição, por considerá-la irrazoável e anti-isonômica, uma vez que pré-estabelece conflitos de interesse - e respectivas restrições - incompatíveis com a livre manifestação e exercício profissional dos trabalhadores do setor cultural, restrições estas inexistentes para outras categorias profissionais também beneficiárias de incentivos fiscais, auxílios e subvenções estatais das mais diversas.

É o que se tem a relatar. Passo à análise.

A proposição em apreço é flagrantemente inconstitucional e não pode prosperar.

A Constituição Federal não admite a imposição de restrições gerais à liberdade de expressão para acesso e fruição a quaisquer direitos, especialmente direitos fundamentais como o do acesso às fontes da cultura nacional e o da valorização e difusão das manifestações culturais.

Da forma como redigido o projeto de lei em apreço, a simples fruição de incentivos ficais ou o recebimento de subvenções, auxílios e transferências correntes de qualquer natureza imporia ao beneficiário restrições à livre manifestação do pensamento absolutamente infundadas e incompatíveis com as garantias constitucionais da liberdade de expressão, da liberdade de manifestação política e do livre exercício do trabalho (art. 5º, incisos IV, VIII, IX e XIII).

Mais do que os beneficiários diretos de tais verbas ou incentivos, as restrições ainda incidiriam sobre quaisquer agentes que integram a cadeia artística técnica, patrimonial e cultural dos projetos fomentados, o que implicaria inaceitável censura às mais essenciais liberdades de todos os cidadãos de alguma forma relacionados à realização de eventos culturais com recursos públicos, ainda que indiretamente, e independentemente do conteúdo da manifestação.

Conflitos de interesses e medidas para sua prevenção, embora possam ser abstratamente estabelecidas em lei, constituem critérios para contenção e controle do exercício de posições privilegiadas ou prerrogativas de poder em organizações do setor público ou privado, não podendo ser utilizadas como instrumento de controle das liberdades políticas e outras garantias constitucionais. 

Exigir de artistas e demais trabalhadores da cultura impessoalidade no exercício de seu ofício não tem qualquer pertinência com a impessoalidade que se exige da administração pública no trato com a coisa pública e com os indivíduos da sociedade civil, simplesmente porque naquele caso não se trata de agente público, quer em sentido estrito, quer em sentido lato. Pelo contrário, ao estabelecer as limitações apresentadas no texto, a proposição em exame transforma-se em instrumento de intimidação e controle político do Estado sobre a população, particularmente os trabalhadores da cultura, ao condicionar a fruição do direito de acesso às políticas públicas de cultura à sujeição e subserviência ao poder político da autoridade concedente, o que em última instância representa grave afronta à democracia brasileira.

Não é razoável a justificativa apresentada pelo ilustre deputado autor do projeto de que os recursos de fomento à cultura são por vezes usados em desvio de finalidade pelo fato de haver manifestações de cunho político em eventos financiados com tais recursos. Desvio de finalidade existe quando agentes públicos utilizam-se de instrumentos da política pública para praticar atos administrativo com finalidade diversa daquela para a qual o ato é autorizado por lei. Para isto, a legislação existente já possui inúmeros instrumentos para prevenção de conflitos de interesses, conforme a modalidade do fomento e os destinatários da política pública, inclusive com base constitucional que impede a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos na publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas da administração pública (Constituição Federal, art. 37, § 1º), o que, associado às regras já previstas nos regulamentos e editais de fomento do Ministério da Cultura, impede, por si só, a utilização dos instrumentos de fomento para promoção pessoal de agentes políticos ou agentes públicos em geral, permitindo o controle a posteriori de desvios de finalidade e outras irregularidades.

Conflitos de interesses caracterizam-se quando agentes públicos e privados podem sujeitar-se um ao outro por razões escusas e motivações diversas daquelas que legitimam as relações jurídicas entre eles constituídas, e não o contrário, quando há liberdade para livre manifestação independentemente das relações jurídicas impessoais estabelecidas entre tais agentes. Portanto, igualmente infundada é a previsão de quarentena estabelecida na proposta. Não apenas por estar voltada para os agentes culturais, ao invés dos agentes públicos que em regra possuem posição privilegiada que justifica a quarentena, mas especialmente pelo extenso prazo de dois anos estabelecido no texto, o que extrapola qualquer razoabilidade quando comparada com situações altamente sensíveis de egressos da administração pública quando assumem funções no setor privado, nos mais variados setores profissionais e econômicos, e que sequer se aproximam do período apresentado na proposta. 

Diante de todo o exposto, tendo em vista a inconstitucionalidade da proposta apresentada em sua integralidade, por violação aos incisos IV, VIII, IX e XIII do art. 5º da Constituição Federal, esta coordenação posiciona-se de forma contrária ao projeto de lei, recomendando à Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos o encaminhamento desta posição à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, para eventual adoção das medidas legislativas ao alcance do poder executivo para obstruir sua tramitação ou impedir sua aprovação.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 4 de dezembro de 2023.

 

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Advogado da União

Coordenador-Geral Jurídico de Políticas Culturais

 


Processo eletrônico disponível em https://supersapiens.agu.gov.br por meio do Número Único de Protocolo (NUP) 01400012222202320 e da chave de acesso 437e4a9f




Documento assinado eletronicamente por OSIRIS VARGAS PELLANDA, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 1357899601 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): OSIRIS VARGAS PELLANDA. Data e Hora: 04-12-2023 09:06. Número de Série: 68376191362358152440851258002. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.