ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA DA UNIÃO ESPECIALIZADA VIRTUAL DE PATRIMÔNIO
NÚCLEO JURÍDICO ESTRATÉGICO

PARECER n. 00005/2023/NUCJUR-EST/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU

 

NUP: 10154.164536/2023-57

INTERESSADOS: Prefeitura Municipal de Cubatão

ASSUNTOS: Implantação de casas flutuantes. Regularização fundiária.

 

EMENTA: Consulta. Implantação de "casas barco" no litoral do Município de Cubatão. Estrutura não destinada à navegação e predominantemente fixa. Instrumento de regularização do espelho d'água. Cessão de uso gratuito. Bem insuscetível de transferência de direitos reais. 
Considerações sobre participação em projeto com recursos destinados pelo Ministério Público em ACP via TAC. PARECER nº 00110/2021/DECOR/CGU/AGU. ORIENTAÇÃO JUDICIAL n. 00018/2021/PGU/AGU. 
 

Relatório: 

 

Trata-se de processo originário da SPU/SP, que estuda a "a melhor forma de destinação de imóveis em áreas de dominialidade da União, Espelho d´Água, localizado no município de Cubatão, litoral paulista".

 

Na Nota Técnica SEI nº 47143/2023/MGI (SEI nº 38872890) a SPU apresenta considerações sobre as possibilidades existentes e conclui com a seguinte questão:

 

26. Tendo em vista a inovação, sugiro encaminhamento a Consultoria Jurídica da União em São Paulo, para averiguar os seguintes cenários:
a) Cessão do Espelho d´Água apenas dos Trapiches de Acesso e das áreas de ancoragem e fundeio, já que as casas não vão navegar (mas podem), sem necessidade de titulação, já que haverá o Registro da Marinha do Brasil - TIE - Título de Inscrição de Embarcação;
b) Cessão de Espelho d´Água dos Trapiches de Acesso e CDRU das casas;
c) Outra solução de contorno a ser apresentada pela CJU.

 

A SPU informa que parte da obra será custeada com verbas destinadas pelo Ministério Público por intermédio de TAC em ACP:

 

4. O projeto de Regularização Fundiária, Urbanização e Provisão Habitacional da Vila dos Pescadores é um mega projeto que conta com Recursos Estaduais, Federais da Iniciativa Privada (Viaduto por cima das Vias Férreas) e do Ministério Público (TAC).
5. A destinação de verbas do Ministério Público segue o ACP 0006668-16.2014.8.26.015 que tramita perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Cubatão e Processo TJSP DEPRE 0182101-33.2018.8.26.0157.

 

É o relatório. 

 

Análise: 

 

Da destinação de verbas pelo Ministério Público. ORIENTAÇÃO JUDICIAL n. 00018/2021/PGU/AGU. PARECER nº 00110/2021/DECOR/CGU/AGU. 

 

Embora não seja objeto da consulta, é importante registrar que a ORIENTAÇÃO JUDICIAL n. 00018/2021/PGU/AGU (NUP 00410.080681/2021-92) alcança a seguinte conclusão:

 
a) Os valores arrecadados em decorrência de indenização por lesão a direitos ou interesses difusos e coletivos e aqueles decorrentes de multa aplicada por descumprimento de termo de ajustamento de conduta ou outro tipo de acordo judicial com o mesmo objeto, devem ser direcionados ao Fundo de Direitos Difusos - FDD ou Fundo do Amparo ao Trabalhador - FAT (em caso de lesão a direitos trabalhistas);
b) Especificamente em relação à destinação desses recursos a órgãos públicos, esta prática pode acarretar conflito de interesses, criando relação de dependência entre o órgão destinatário e o parquet, indo de encontro aos princípios da impessoalidade, moralidade e legalidade (art. 37 da CF);
c) Considerando as violações legais e constitucionais decorrentes de tal prática, devem os órgãos de execução desta PGU, oportunamente, orientar os órgãos públicos a recusar valores que lhe sejam direcionados em decorrência de processo judicial relacionado ao objeto ora discutido;
b) Devem ser envidados esforços para reverter decisão judicial homologatória que determine o direcionamento desses valores diretamente a entidades públicas ou privadas, selecionadas por discricionariedade
(...)
Destaques inexistentes no original, cópia anexa. 

 

Ainda que a orientação trate especificamente de TAC´s na Justiça do Trabalho, o fundamento é rigorosamente o mesmo para quaisquer outros ramos do judiciário. Não cabe ao MP -  nem ao Judiciário - dar aos valores destinação diversa daquela prevista em lei. 

 

No mesmo sentido, o PARECER n. 00110/2019/DECOR/CGU/AGU (NUP: 00405.019117/2017-61): 

 

EMENTA: COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. FUNDO DE DEFESA AOS DIREITOS DIFUSOS OU COLETIVO EM SENTIDO ESTRITO. DANO A DIREITO DIFUSO. DESTINAÇÃO DA RESPECTIVA INDENIZAÇÃO.
1. Os valores destinados à indenização de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito serão depositados junto ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) criado pela Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, ressalvando-se as hipóteses em que a legislação especial lhes prescreve destinação específica.
2. A jurisprudência predominante do Tribunal Superior do Trabalho reconhece a possibilidade daqueles mesmos valores serem destinados ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, quando se tratar de dano a direito trabalhista.
3. As multas, eventualmente pagas por força de descumprimento dos compromissos de ajustamento de conduta que tratem de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito, também deverão ser direcionadas ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos ou ao Fundo de Amparo ao Trabalhador. Código 33
 

Observar que a matéria foi objeto de discussão no STF na ADPF 568 e está novamente sendo discutida na ADPF 944.

 

No caso dos autos, não existem detalhes do acordo, restando somente sugerir à SPU que tenha bastante cautela ao participar, direta ou indiretamente, de qualquer ajuste envolvendo a destinação direta (sem passar pelo FDD) de verbas em ACP ou TAC pelo Judiciário ou pelo Ministério Público.

 

Da forma de destinação. 

 

Como bem relatado pela SPU, casas flutuantes, nos termos da NORMAN-11/DPC, são embarcações não destinadas à navegação

 

(...) flutuantes são embarcações sem propulsão que operam em local fixo e determinado, enquadrando-se nesta definição as estruturas do tipo: Postos de Combustível Flutuantes, Hotéis Flutuantes, Casas Flutuantes, Bares Flutuantes e outras similares.
 

Portanto, como regra são estruturas fixas. O fato de que podem eventualmente ser deslocadas para outro lugar não altera essa natureza, smj. 

 

Apesar de essencialmente fixas, a casa flutuante é embarcação, que não é bem imóvel e não se incorpora ao imóvel (espelho d'água) em que está localizada.

 

O sistema de registro previsto na Lei 7.652/88, ou a equiparação à bens imóveis para uma ou outra finalidade não altera a natureza (móvel) do bem. Nesse sentido o Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho de 1850 (parte não revogada pelo lei 10.402) e a jurisprudência do STJ, respectivamente: 

 

Art. 478 - Ainda que as embarcações sejam reputadas bens móveis, contudo, nas vendas judiciais, se guardarão as regras que as leis prescrevem para as arrematações dos bens de raiz; devendo as ditas vendas, além da afixação dos editais nos lugares públicos, e particularmente nas praças do comércio, ser publicadas por três anúncios insertos, com o intervalo de 8 (oito) dias, nos jornais do lugar, que habitualmente publicarem anúncios, e, não os havendo, nos do lugar mais vizinho.
Nas mesmas vendas, as custas judiciais do processo da execução e arrematação preferem a todos os créditos privilegiados.

 

6.2. Por outro lado, como é cediço, as grandes embarcações e aeronaves, embora efetivamente sejam bens móveis pelo critério físico, no plano jurídico, especificamente, em vista da importância econômica e de somas vultosas envolvidas em sua construção, invariavelmente demandam crédito, a justificar a possibilidade de se submeterem à hipoteca.
(RECURSO ESPECIAL nº 1.705.222 - SP (2017/0065899-5). Relator: MIN. LUIS FELIPE SALOMÃO)

 

Daí decorre que a propriedade da embarcação não se confundirá com a propriedade do espelho d'água. O que implica em dizer são direitos distintos: o habitante de uma casa flutuante terá, em situação ideal, a propriedade sobre a casa flutuante e o direito (pessoal) de utilizar com exclusividade uma parte do espelho d'água, correspondente à "vaga" no píer. 

 

Fazendo uma comparação, seria como estacionar, com intuito de permanência, um "trailer" em alguma vaga de garagem. O trailer pode ser rebocado a qualquer momento, não se incorpora ao solo e tem propriedade distinta do imóvel.  

 

Analisando a questão por esse prisma, ou seja, separando a "vaga no píer" da "casa flutuante", parece correto concluir que a SPU/SP acerta ao afirmar que 

 

15. Desta forma, um de nossos entendimentos seria que, especificamente em relação às embarcações (moradia) não haveria necessidade de nenhum título da SPU ao ocupante. (...)

 

A SPU deve cuidar apenas da regularização do uso exclusivo do espelho d'água pelo destinatário.

 

Após exaustiva pesquisa nos arquivos internos desta Consultoria, não identificamos qualquer análise específica sobre o tema. O único parecer identificado que tangencia o problema foi o r. PARECER n. 00911/2022/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU (NUP: 10154.144725/2022-22), mas elaborado sob outro enfoque e tratando de cessão ao particular. Foi adotado o entendimento de que, naquele caso, seria adequada a cessão de uso, na forma da Portaria  SPU 5.629/22: 

 

Visto isso, em resposta à consulta formulada, acerca “forma de atuação da SPU em casos de fiscalização e regularização de casas flutuantes móveis”, tem-se que deve ela se dar tal qual prevista na Lei nº 9.636/1998, atualmente regulamentada pela Portaria SPU nº 5.692, de 23 de junho de 2022, segundo a qual:
 
Art. 2º São enquadradas nesta portaria as estruturas náuticas edificadas sobre espaço físico de águas públicas de domínio da União, tais como lagos, rios, correntes d'água e mar territorial, até o limite de 12 milhas marítimas a partir da costa.(…)
Art. 5º A cessão de uso a particulares de espaços físicos em águas públicas depende da demonstração de interesse público, social ou de aproveitamento econômico de interesse nacional e da manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
§ 1º O interesse público das estruturas náuticas é caracterizado por funções de suporte a diversas atividades dentre elas:
I - transporte público de passageiros;
II - transporte regular de cargas para abastecimento de alimentos, medicamentos, material hospitalar, combustíveis e outros bens considerados essenciais;
III - proteção de fauna ou flora e educação ambiental; e
IV - prestação de serviços públicos.
§ 2º O aproveitamento econômico de interesse nacional é caracterizado por funções de suporte às seguintes atividades de geração de trabalho, emprego e renda, quando de acordo com políticas, planos e programas nacionais, tais como:
I - desenvolvimento da pesca;
II - desenvolvimento do turismo;
III - desenvolvimento urbano;
IV - exploração mineral; e
V - transporte de cargas ou passageiros.
(…)
Art. 18. As estruturas náuticas irregulares, existentes ou em instalação, deverão requerer sua regularização, sob pena de aplicação das penalidades previstas em lei.§ 1º As obras de estruturas náuticas embargadas deverão permanecer paralisadas até sua regularização.§ 2º As estruturas náuticas cujo requerimento de regularização for indeferido serão autuadas, multadas e deverão ter suas instalações removidas, à conta de quem as houver efetuado, nos termos do art. 6º, do Decreto-Lei nº 2.398, de 1987.(…)
 

A Lei 9.636 de 15 de maio de 1988 determina:

 
Art. 18. A critério do Poder Executivo poderão ser cedidos, gratuitamente ou em condições especiais, sob qualquer dos regimes previstos no Decreto-Lei no 9.760, de 1946, imóveis da União a:
I - Estados, Distrito Federal, Municípios e entidades sem fins lucrativos das áreas de educação, cultura, assistência social ou saúde;                 (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)
II - pessoas físicas ou jurídicas, em se tratando de interesse público ou social ou de aproveitamento econômico de interesse nacional.                 (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)
§ 1o  A cessão de que trata este artigo poderá ser realizada, ainda, sob o regime de concessão de direito real de uso resolúvel, previsto no art. 7º do Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, aplicando-se, inclusive, em terrenos de marinha e acrescidos, dispensando-se o procedimento licitatório para associações e cooperativas que se enquadrem no inciso II do caput deste artigo.                  (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)
§ 2o O espaço aéreo sobre bens públicos, o espaço físico em águas públicas, as áreas de álveo de lagos, rios e quaisquer correntes d’água, de vazantes, da plataforma continental e de outros bens de domínio da União, insusceptíveis de transferência de direitos reais a terceiros, poderão ser objeto de cessão de uso, nos termos deste artigo, observadas as prescrições legais vigentes.
 

Vê-se, portanto, que a CDRU - sendo direito real - não é o instrumento adequado para o espelho d'água, diante da expressa vedação legal.

 

Bandeira de Mello explica que a CDRU:

 

“diverge da simples concessão de uso pelo fato de que, ao contrário daquela – na qual apenas se compõe de um direito de natureza obrigacional (isto é, pessoal) –, instaura um direito real”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 960.)

 

Carvalho Filho afirma que a CDRU se diferencia da concessão de uso, pois naquela é outorgado ao concessionário um direito real e os fins da CDRU são previamente estabelecidos em lei, sendo que a concessão comum nem sempre estarão presentes os fins sociais. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, p. 1222.) 

 

A Portaria  SPU 5.629/22 prevê:

 

Art. 3º Para fins desta Portaria, as estruturas náuticas são classificadas da seguinte forma:
I - de uso comunitário ou social;
II - de uso restrito; e
III - de uso misto.
§ 1º Classificam-se como estruturas náuticas de uso comunitário ou social aquelas:
I - de acesso irrestrito e não oneroso;
II - destinadas à habitação de interesse social;
(...)
Art. 4º A cessão de espaços físicos em águas públicas não dispensa o atendimento às normas federais, estaduais, municipais e distritais relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental e à autorização de uso dos recursos naturais na implantação e operação das estruturas náuticas.
§ 1º As estruturas náuticas de uso comunitário ou social serão objeto de cessão de uso gratuita.

 

Logo, no caso concreto parece que a melhor forma de destinação seria a cessão de uso gratuita ao Município, que organizará o uso das "vagas" e definirá a propriedade dos flutuantes. 

 

Conclusão. 

 

Assim, parece-nos que, juridicamente, a melhor forma de regularização é a cessão de uso.  A CDRU não é viável porque a Lei 9.636/98 veda a transmissão de direitos reais sobre águas públicas. As casas flutuantes não demandam titulação pela SPU, já que são bens móveis. 

 

Recomenda-se bastante cautela à SPU ao participar, direta ou indiretamente, de qualquer ajuste envolvendo a destinação direta (sem passar pelo FDD) de verbas oriundas de ACP ou TAC pelo Judiciário ou pelo Ministério Público.

 

O presente parecer não vincula o Administrador, que pode dele discordar,  nos termos do art. 50 da Lei 9.784/99, ou pedir a revisão/complementação do entendimento adotado. 

 

Considerando o ineditismo do tema, submeto a questão ao Exmo. Coordenador. 

 

Vitória, ES, 12 de dezembro de 2023.

 

 

LUÍS EDUARDO NOGUEIRA MOREIRA

ADVOGADO DA UNIÃO

 

 


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