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CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
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PARECER n. 00009/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

 

NUP: 01400.003609/2023-95

INTERESSADOS: SECRETARIA DE FORMAÇÃO, LIVRO E LEITURA - SEFLI/MINC

ASSUNTOS: EDITAL

 

EMENTA: I – Direito Administrativo. Seleção pública. II -  Edital Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023. III – Constatação de lacunas no Edital. Proposta de interpretação analógica. IV – Parecer favorável, desde que haja disponibilidade financeira/orçamentária.

 

 

RELATÓRIO

 

Tratam os autos do Edital de Seleção Pública MinC nº 1 - Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023, publicado no Diário Oficial da União de 5 de abril de 2023, e criado no âmbito da Secretaria de Formação, Livro e Leitura (SEFLI) do Ministério da Cultura (MinC) a fim de fomentar atividades relacionadas à promoção da literatura brasileira produzida por mulheres, valorizar autoras nacionais e dar visibilidade a obras inéditas por meio da realização de concurso  (SEI 1033593).

Por meio da Nota Técnica n. 1/2024 (SEI 1578538), a Secretaria de Formação, Livro e Leitura - SEFLI/MINC informa, em suma, que o resultado final do certame apresentou incongruências, em especial na premiação da categoria "negras", em função de omissões/lacunas detectadas no Edital e não levadas em consideração pela Comissão de Seleção. A SEFLI apresenta possível solução para as omissões/lacunas do Edital e solicita a esta Consultoria Jurídica  análise e manifestação sobre a segurança jurídica da solução proposta.

É o breve relatório.

 

ANÁLISE JURÍDICA

 

A presente análise se dá com fundamento no art. 11 da Lei Complementar nº 73/93, subtraindo-se do âmbito da competência institucional deste Órgão Jurídico, delimitada em lei, análises que importem em considerações de ordem técnica, financeira ou orçamentária, nos termos do Enunciado de Boas Práticas Consultivas AGU nº 7:

 

“A manifestação consultiva que adentrar questão jurídica com potencial de significativo reflexo em aspecto técnico deve conter justificativa da necessidade de fazê-lo, evitando-se posicionamentos conclusivos sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, podendo-se, porém, sobre estes emitir opinião ou formular recomendações, desde que enfatizando o caráter discricionário de seu acatamento” (Manual de Boas Práticas Consultivas. 4.ed. Brasília: AGU, 2016, página 32).

 

Portanto, estão excluídos desta análise os aspectos de natureza técnica, econômica, financeira e administrativa, bem como os aspectos discricionários, referentes à conveniência e à oportunidade da prática dos atos administrativos, que são de responsabilidade dos demais órgãos deste Ministério. Em relação aos aspectos de natureza técnica alheios à seara jurídica, parte-se da premissa de que os órgãos e servidores competentes para a sua apreciação detêm os conhecimentos específicos necessários e os analisaram adequadamente, verificando a exatidão das informações constantes dos autos e atuando em conformidade com suas atribuições.

Ressalte-se, ainda, que as manifestações desta Consultoria Jurídica possuem natureza opinativa e, portanto, não vinculante para o gestor público, o qual pode, de forma justificada, adotar orientação contrária àquela emanada no presente pronunciamento. 

 

Dito isso, passo à análise da consulta em tela, que trata de proposta apresentada pela SEFLI/MINC para solução de duas omissões/lacunas detectadas pelo órgão no Edital Carolina Maria de Jesus.

Inicialmente, vale notar que a lacuna consiste na inexistência de uma norma específica para regular diretamente um caso concreto. No caso em análise, o Edital e a legislação que o rege não oferecem, em princípio, uma solução para o desate da questão jurídica constatada.

Todavia, a falta de norma jurídica expressa para regulamentar determinada situação fática não impede a aplicação do Direito. Nesse sentido, o ordenamento jurídico se completa através de métodos interpretativos, aplicação da analogia, princípios gerais do direito, etc.

Nesse sentido, vale notar que o Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942, ao introduzir as normas do Direito Brasileiro, expressa que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" (art. 4º).

Portanto, diante da ausência de norma expressa sobre uma situação, há que se lançar mão de algum método de preenchimento de lacunas.

Uma das formas de suprir lacunas normativas é a analogia que, segundo Karl Larenz [1], pode ser definida nos seguintes termos:

 

“Entendemos por analogia a transposição de uma regra, dada na lei para a hipótese legal (A), ou para várias hipóteses semelhantes, numa outra hipótese B, não regulada na lei, ‘semelhante’ àquela. A transposição funda-se em que devido à sua semelhança, ambas as hipótese legais hão-de ser identicamente valoradas nos aspectos decisivos para a valoração legal; quer dizer, funda-se na exigência da justiça de tratar igualmente aquilo que é igual. A integração da lacuna da lei, por via de um recurso a um princípio ínsito na lei é aquela a que o princípio (igualmente) se refere, sem que aqui intervenha um princípio contrário”.
 

 Ou seja, a analogia (ou transposição analógica) funda-se na exigência da justiça de tratar igualmente aquilo que é igual (princípio da isonomia), sendo desejável que duas hipóteses semelhantes (uma delas regulada e a outra sujeita ao vácuo normativo) sejam identicamente valoradas, ou seja, recebam o mesmo tratamento por parte do operador da norma (no caso, o administrador público responsável pela interpretação e aplicação do ordenamento jurídico).

 

Dito isso, observo que primeira omissão/lacuna detectada pela SEFLI/MINC no Edital Carolina Maria de Jesus diz respeito à migração das candidatas que se inscreveram em categoria de reserva de vagas mas obtiveram nota suficiente para estar na categoria de ampla concorrência.

No caso do Edital Carolina Maria de Jesus, as 12 mulheres aprovadas na categoria "negras" obtiveram a nota máxima do certame (30 pontos), assim como as 37 aprovadas na categoria de ampla concorrência. Portanto, a SEFLI/MINC entende ser justo que essas 12 mulheres negras migrem para a categoria de ampla concorrência, para que as 12 vagas ocupadas por elas sejam preenchidas por candidatas negras classificadas com notas inferiores à nota máxima.

As reservas de vagas por categoria (negras, indígenas, com deficiência, ciganas e quilombolas) foram previstas no item 7 do Edital. Ocorre que o dispositivo não estabelece o que acontece caso a candidata inscrita em uma das categorias de reserva de vagas obtenha uma nota suficiente para ser aprovada na categoria de ampla concorrência.

A fim de corrigir essa discrepância, a SEFLI/MINC propõe a interpretação segundo a qual a candidata inscrita em reserva de vaga que tenha nota suficiente para o grupo da ampla concorrência migre para essa categoria. 

O fundamento para tal interpretação estaria na Portaria Normativa MPDG nº 4, de 6 de abril de 2018 (que regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais), mencionada no próprio Edital Carolina Maria de Jesus, e na recente Instrução Normativa MINC nº 5/ 2023 (que dispõe sobre a implementação das ações afirmativas e medidas de acessibilidade na aplicação da Lei Paulo Gustavo), publicada posteriormente ao Edital. As referidas normas prescrevem:

 

Portaria Normativa MPDG nº 4, de 6 de abril de 2018
Art. 2º (...)
§ 3º Os candidatos negros que optarem por concorrer às vagas reservadas na forma do § 1º concorrerão concomitantemente às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com sua classificação no concurso público.
 
Instrução Normativa MINC nº 5/2023
Art. 6º Os agentes culturais que optarem por concorrer às cotas para pessoas negras e indígenas concorrerão concomitantemente às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no processo.

 

Vale mencionar, ainda, que a Lei nº 12.711/2012 (Lei do ENEM),  e a Lei nº 12.990/2014 (que dispõe sobre a reserva de vagas para negros em concursos públicos) tratam a questão da migração de vagas para ampla concorrência no mesmo sentido.

Assim, observa-se que as normas mencionadas, apesar de não aplicáveis diretamente ao Edital, tratam de situações semelhantes e contêm a regra de migração da reserva de vagas para a ampla concorrência. Assim, em homenagem ao princípio da isonomia, as normas em questão podem ser aplicadas por analogia ao caso em tela, a fim de suprir a lacuna detectada.  

 

A segunda omissão/lacuna do Edital Carolina Maria de Jesus detectada pela SEFLI/MINC diz respeito aos critérios de desempate, mencionados nos itens 14.5 e 14.6 do Edital:

 

14.5. Em caso de empate, o desempate beneficiará a obra que tenha apresentado maior pontuação nos critérios 1, 2 e 3, nessa ordem. 
14.6. Permanecendo o empate, o desempate será decidido mediante sorteio tal como determina, em caráter obrigatório, o § 2º do artigo 45 da Lei nº 8.666/1993, aqui aplicada subsidiariamente. 

 

De acordo com os itens transcritos, o primeiro critério de desempate seria a pontuação dos critérios de mérito 1, 2 e 3  (explicitados no item 14.1 do Edital). Este critério não teve aplicação prática no caso em tela porque todas as candidatas de ampla concorrência e as 12 negras aprovadas obtiveram nota máxima. 

Caso o primeiro critério de desempate não resolva a situação, o segundo critério seria o sorteio (item 14.6).

Voltando à hipótese em tela, caso se adote a decisão proposta pela SEFLI para a primeira omissão (acima descrita), as 12 candidatas negras irão para o grupo da ampla concorrência também com nota máxima. Com isso, o número de candidatas com nota máxima ficaria maior que o número de vagas e o desempate deveria ser feito por sorteio.

Ocorre que o sorteio, neste caso, necessariamente levaria à exclusão aleatória de 12 candidatas, sejam elas inscritas na categoria "negras" contempladas no grupo de reserva de vagas, ou da ampla concorrência, que tinham seu nome na lista final como premiadas, mas que, submetidas ao sorteio, seriam excluídas do certame.

Portanto, a SEFLI alega que existe uma omissão nos critérios de desempate no Edital, já que o critério de sorteio (item 14.6) só faz sentido na concorrência de pessoas dentro de um mesmo grupo, sem considerar a migração proposta em função da primeira omissão/lacuna detectada.

Diante dessa segunda lacuna, a SEFLI propõe aumentar o número de contempladas para não deixar de premiar nenhuma das candidatas aprovadas na ampla concorrência e nenhuma das 12 candidatas negras já aprovadas, já que todas, como visto, obtiveram a nota máxima. Nesse sentido, seriam criadas mais 12 vagas na categoria de ampla concorrência para contemplar as 12 mulheres da cota negra que migrariam para essa categoria, e, consequentemente, outras 12 candidatas negras classificadas ocupariam as 12 vagas da reserva para negras.

A este respeito, vale notar que o item 17.26 do Edital permite a ampliação do número de premiadas na hipótese de ocorrerem novas dotações orçamentárias, desde que observada a ordem de classificação. Portanto, a proposta está em consonância com o Edital, desde que demonstrada a existência de dotação orçamentária para tanto.

Quanto às candidatas das demais categorias de reserva de vagas, a SEFLI esclarece que estas não serão prejudicadas pela alteração proposta, tendo em vista que: (i) não houve inscrições na categoria cigana; (ii) quanto às indígenas, apenas 3 candidatas das 6 cotas dessa categoria obtiveram notas acima de 15 pontos, pontuação mínima estabelecida no Edital para classificação; (iii) e, por fim, as candidatas quilombolas e com deficiência, classificadas e não selecionadas, não obtiveram nota suficiente para concorrer simultaneamente às vagas destinadas a elas e à ampla concorrência. 

Por fim, a SEFLI/MINC afirma que o saneamento das omissões/lacunas detectadas, conforme proposto na Nota Técnica n. 1/2024 está de acordo com o interesse público e com a política de ações afirmativas, conforme se verifica no item 4.19 do referido documento:

 

4.19. Diante do exposto, é importante frisar que nas alterações aqui apresentadas e pretendidas, o interesse público sai fortalecido, uma vez que a atuação administrativa nesta autotutela não ocasionará nenhum prejuízo aos interessados, pois todos os incialmente contemplados, continuarão a ser. Dessa forma, a opção de ampliação do quantitativo de premiadas busca, em essência, dar plena eficácia ao Decreto nº 11.785 de 2023, visando também reconhecer o trabalho de todas as candidatas que apresentaram obras avaliadas como excelentes, em todos os requisitos, valorizando assim a escrita literária no país.

 

Portanto, sob o ponto de vista estritamente jurídico, não há o que se opor à proposta da SEFLI/MINC de revisão do resultado final do Edital Carolina Maria de Jesus, considerando-se as omissões/lacunas constatadas e a interpretação analógica proposta para garantir a efetividade da ação afirmativa e da política pública, uma vez garantido que não haverá prejuízo às candidatas já aprovadas e às pertencentes aos grupos não abrangidos pela revisão.

Nesse sentido, vale citar novamente o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa [2], a respeito do instituto da ação afirmativa, em trecho já mencionado no Parecer que avaliou inicialmente o Edital Carolina Maria de Jesus [3]:

Essa, portanto, é a concepção moderna e dinâmica do princípio constitucional da igualdade, a que conclama o Estado a deixar de lado a passividade, a renunciar à sua suposta neutralidade e a adotar um comportamento ativo, positivo, afirmativo, quase militante na busca da concretização da igualdade substancial.
 

Por fim, vale reforçar que a proposta da SEFLI de ampliação do número de prêmios atribuídos pelo Edital depende da confirmação de disponibilidade orçamentária/financeira, a ser atestada pelo órgão competente deste Ministério. 

 

 

CONCLUSÃO

 

Diante do exposto, ressalvados os aspectos de conveniência e de oportunidade não sujeitos ao crivo desta Consultoria Jurídica e considerando-se a preservação do interesse público e a efetividade da ação afirmativa e da política pública, conclui-se pela possibilidade de revisão do resultado final do Edital Carolina Maria de Jesus, tendo em vista as omissões/lacunas constatadas e a interpretação analógica proposta pela SEFLI/MINC.

No entanto, vale ressaltar que a avaliação das candidaturas pauta-se por questões técnicas, que não cabe a esta Consultoria Jurídica avaliar. Portanto, a presente manifestação se dá em tese, a partir dos fatos relatados pela SEFLI/MINC em sua Nota Técnica n. 1/2024, sem adentrar na avaliação dos motivos pelos quais cada candidata foi selecionada ou não.

Por outro lado, como dito, a proposta da SEFLI de ampliação do número de prêmios atribuídos pelo Edital depende da confirmação de disponibilidade orçamentária/financeira, a ser atestada pelo órgão competente deste Ministério.

 

Isso posto, submeto os autos à consideração superior, recomendando o encaminhamento à Secretaria de Formação, Livro e Leitura - SEFLI/MINC para ciência e providências cabíveis.

 

Brasília, 17 de janeiro de 2024.

 

 

DANIELA GUIMARÃES GOULART

Advogada da União

 

Notas:

[1] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989. P. 461.

[2] GOMES, Joaquim B. Barbosa. A Recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro. In Revista de Informação Legislativa, ano 38, n 151, p. 129, 2001.

[3] PARECER n. 00020/2023/CONJUR-MINC/CGU/AGU (SEI 1060179)

 


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