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CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
COORDENAÇÃO-GERAL DE PARCERIAS E COOPERAÇÃO FEDERATIVA


PARECER n. 00043/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

 

NUP: 01400.004881/2023-92

INTERESSADOS: SECRETARIA DO AUDIOVISUAL

ASSUNTOS: EDITAL RUTH DE SOUZA.

 

EMENTA:
I. Direito Administrativo. Seleção pública.
II. Consulta. Denuncia de irregularidade. Vinculação ao Edital. Princípios da Administração Pública.
III. Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006. Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007. Decreto nº 11.453, de 23 de março de 2023. Portaria nº 29, de 21 de maio de 2009, do Ministério da Cultura.

 

I - RELATÓRIO

 

Por meio do Ofício nº 178/2024/SAV/GAB/SAV/GM/MinC (SEI nº 1629122) a Secretaria do Audiovisual solicita análise em relação à possibilidade de participação de dois selecionados no âmbito do Edital Ruth de Souza (SEI nº 1142597) que ocupam cargos de natureza pública.

 

Narra a área técnica na Nota Técnica nº 2/2024 (SEI nº 1626131) que a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura publicou em 28 de abril de 2023 (SEI nº 1153166) o EDITAL SAV/MINC/FSA Nº 01, DE 27 DE ABRIL DE 2023 - EDITAL RUTH DE SOUZA, que possui como objeto a: "seleção de propostas para investimento do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA em projetos de produção de obras cinematográficas de longa-metragem dirigidos por mulheres cis ou transgênero e apresentados por meio de produtoras brasileiras independentes".

 

Informa que após a devida realização dos trabalhos especializados de seleção, ocorridos nos termos da PORTARIA SAV Nº 64, DE 28 DE NOVEMBRO DE 2023 (SEI nº 1507141), mediante operacionalização dos trabalhos de Comissão de Avaliação composta por especialistas que integram o Banco de Especialistas em Audiovisual (SEI 01400.005768/2023-24), a Secretaria do Audiovisual publicou o resultado preliminar do certame em 01 de fevereiro de 2024 (SEI nº 1595923).

 

Ocorre que, em 20 de fevereiro de 2024, foi recebido no e-mail institucional oficial do processo seletivo (concurso.sav@cultura.gov.br) denúncia afirmado que dois candidatos selecionados não poderiam concorrer no certame, por possuírem cargos de natureza pública.  

 

Segundo a área técnica, uma denunciada ocupa o cargo de Coordenadora, código CCE 1.10, do Escritório Estadual do Amapá, da Diretoria de Articulação e Governança da Secretaria dos Comitês de Cultura do Ministério da Cultura e o outro denunciado, sócio de uma empresa proponente,  foi designado como titular no Conselho Superior do Cinema em 10 de outubro de 2023.

 

Aduz a Secretaria do Audiovisual que em observância ao item 3.2 do Edital, não se verificou vedação na participação dos indivíduos, já que a a vedação está circunscrita aos servidores da Agência Nacional do Cinema, da Secretaria do Audiovisual e do BRDE (agente financeiro do Fundo Setorial do Audiovisual). No entanto, para melhor compreensão do tema, considerando todo o ordenamento jurídico, foi realizada consulta a este órgão jurídico para que sejam esclarecidos os seguintes pontos:

 

1) Há respaldo jurídico para continuidade do processo de seleção de projeto audiovisual de obra de longa-metragem cuja equipe contém notadamente servidora pública federal do Ministério da Cultura atualmente em exercício?
1.1. A eventual continuidade do processo tem implicações jurídicas no que alcança os princípios da moralidade, impessoalidade, ou de alguma forma implica processo de suspeição quanto aos atos administrativos praticados pela SAv?
1.2. Há compatibilidade no ordenamento jurídico atual para que servidora pública federal receba recursos públicos para execução de atividade profissional distinta das suas atribuições no cargo? O cargo que ocupa é de dedicação exclusiva e, portanto, incompatível com o exercício da atividade fílmica, na função de diretora?
1.3. Em caso de incompatibilidade ou de implicações relativas aos princípios da administração pública, há respaldo para a desclassificação de ofício da proposta, entendido como um caso omisso (subitem 11.10 do edital)?
2) Há implicações quanto à moralidade, impessoalidade ou vinculação e suspeição no caso do dirigente da empresa proponente estar designado como titular no Conselho Superior do Cinema (órgão colegiado criado pela MP 2.228-1/01)?
2.1. Em caso de incompatibilidade ou de implicações relativas aos princípios da administração pública, há respaldo para a desclassificação de ofício da proposta, entendido como um caso omisso (subitem 11.10 do edital)?
3) Há outras questões relativas à denúncia ou aos apontamentos levantados no presente expediente cuja implicação jurídica seja pertinente de destaque na percepção do órgão Consultor Jurídico do MinC? Qual a orientação jurídica para dar maior sustentação e respaldo à atuação dos gestores da Secretaria do Audiovisual no encaminhamento do caso concreto em análise?

 

É o relatório.

 

II - ANÁLISE JURÍDICA

 

A Consultoria Jurídica procede à análise com fundamento no art. 11 da Lei Complementar nº 73/93, subtraindo-se do âmbito da competência institucional deste Órgão Jurídico, delimitada em lei, análises que importem em considerações de ordem técnica, financeira ou orçamentária, nos termos do Enunciado de Boas Práticas Consultivas AGU nº 7:

 

“A manifestação consultiva que adentrar questão jurídica com potencial de significativo reflexo em aspecto técnico deve conter justificativa da necessidade de fazê-lo, evitando-se posicionamentos conclusivos sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, podendo-se, porém, sobre estes emitir opinião ou formular recomendações, desde que enfatizando o caráter discricionário de seu acatamento”.
(Manual de Boas Práticas Consultivas. 4.ed. Brasília: AGU, 2016, página 32).

 

Como narrado, trata-se de consulta realizada pela Secretaria do Audiovisual em relação à possibilidade de participação de dois selecionados no âmbito do Edital Ruth de Souza (SEI nº 1169089) que ocupam cargos de natureza pública.

 

Narra o órgão técnico que em 20 de fevereiro de 2024, foi recebido no e-mail institucional oficial do processo seletivo (concurso.sav@cultura.gov.br) denúncia nos termos a seguir transcritos (SEI nº  1626122):

 

"Vimos diante deste apresentar denúncia contra a empresa produtora e a diretora da proposta abaixo contemplado no referido edital em andamento tendo em vista o seguinte:  INSCRIÇÃO: ON-1049884282 – PROJETO: CHAMADO DA FLORESTA – EMPRESA PROPONENTE: LEÃO DO NORTE PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS LTDA – CNPJ: 19.700.356/0001-66 – DIRETORA: RAYANE DE ALMEIDA PENHA. 
Primeiro, a diretora da obra contemplada no certame, RAYANE DE ALMEIDA PENHA é a atual coordenadora do Escritório Estadual do MinC no Amapá desde 2023. A coordenadora ao assumir o cargo de confiança no MinC deveria ter retirado a candidatura de seu projeto por ser portadora de informações privilegiadas no Ministério da Cultura. Situação que coloca em descrédito todo valoroso trabalho deste Ente ao longo dos anos, inclusive se tal situação chegar aos ouvidos da imprensa. Após a coordenadora ter sido confirmada no cargo o mínimo que lhe caberia seria a renúncia de sua participação no referido edital. No entanto, optou por seguir visando o seu interesse pessoal e financeiro. As vedações do edital estão contidas no item 3.2. Por outro lado, também temos a situação de um dos sócios da empresa proponente da LEÃO DO NORTE PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS LTDA,  Clemilson De Almeida Farias, sócio administrador titular como representante da Indústria Cinematográfica nacional no Conselho Superior de Cinema. 
Sem mais e esperamos que as devidas providências sejam tomadas."

 

Para análise do presente caso, é necessário compreender em qual sistema jurídico o Edital Ruth de Souza está inserido, a fim de verificar se existe alguma vedação de natureza legal ou contratual que impeça os dois denunciados de participarem do certame.

 

O Edital Ruth de Souza (SEI nº 1142597) tem como objeto a "Seleção, em regime de concurso público, de 10 (dez) propostas de produção independente de obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem de ficção, com temática livre, com destinação inicial ao mercado de salas de exibição, dirigidas por mulheres cis ou transgênero estreantes e apresentadas por meio de produtoras brasileiras independentes".

 

São itens financiáveis aos selecionados, conforme item 4.2.1 do Edital, "o conjunto das despesas relativas à produção da OBRA previstas nas Instruções Normativas ANCINE nº 116, 158 e 159, excluídas as despesas de agenciamento, e os custos referentes à intermediação da distribuição pública de Certificados de Investimento Audiovisual, tais como taxa de colocação, taxa de liderança, custos de elaboração de prospecto, despesas de publicidade, agente divulgador e despesas de transporte de intermediários".

 

O certame, conforme exposto no PARECER n. 00037/2023/CONJUR-MINC/CGU/AGU, visa atender ao exposto no  art. 215 da Constituição Federal que, imbuiu o Estado (Poder Público de todas as esferas) dos deveres de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais.

 

Sobre o sistema jurídico que o certame está incluído, o item 1.6 do Edital expõe expressamente:

 

1.6 FUNDAMENTO LEGAL
1.6.1 A aplicação dos recursos do FSA e este processo de seleção são regidos pelas disposições da Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, do Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007, do Decreto nº 11.453, de 23 de março de 2023, bem como pela Portaria nº 29, de 21 de maio de 2009, do Ministério da Cultura.

 

A Lei nº 11.437, de 2006 trata das receitas decorrentes da Contribuição para o desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional. O Decreto nº 6.299, de 2007 regulamenta dispositivos da mencionada Lei, não trazendo previsões relacionadas ao chamamento público que possam contribuir com a presente consulta.

 

Já o Decreto nº 11.453, de 23 de março de 2023, dispõe sobre os mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura e, no que concerne ao chamamento público, dispõe expressamente:

 

Art. 19.  Na fase de celebração do chamamento público, serão realizadas as seguintes etapas:
I - habilitação dos agentes culturais contemplados no resultado final;
II - convocação de novos agentes culturais para habilitação, na hipótese de inabilitação de contemplados; e
III - assinatura física ou eletrônica dos instrumentos jurídicos com os agentes culturais habilitados.
§ 1º  Os documentos para habilitação poderão ser solicitados após a divulgação do resultado provisório, vedada a sua exigência na etapa de inscrição de propostas.
§ 2º  Os requisitos de habilitação serão compatíveis com a natureza do instrumento jurídico respectivo e não poderão implicar restrições que prejudiquem a democratização do acesso de agentes culturais às políticas públicas de fomento.
§ 3º  A comprovação de regularidade fiscal será obrigatória para a celebração de termos de execução cultural.
§ 4º  O cadastro prévio poderá ser utilizado como ferramenta para dar celeridade à etapa de habilitação.
§ 5º  Eventual verificação de nepotismo na etapa de habilitação impedirá a celebração de instrumento pelo agente cultural que seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, de servidor público do órgão responsável pelo edital, nos casos em que o referido servidor tiver atuado nas etapas a que se refere o caput do art. 20, sem prejuízo da verificação de outros impedimentos previstos na legislação específica ou no edital.
§ 6º  A comprovação de endereço para fins de habilitação poderá ser realizada por meio da apresentação de contas relativas à residência ou de declaração assinada pelo agente cultural.
§ 7º  A comprovação de que trata o § 6º poderá ser dispensada nas hipóteses de agentes culturais:
I - pertencentes a comunidade indígena, quilombola, cigana ou circense;
II - pertencentes a população nômade ou itinerante; ou
III - que se encontrem em situação de rua.
§ 8º  Na hipótese de instrumento com obrigações futuras, sua celebração poderá ser precedida de diálogo técnico entre a administração pública e o agente cultural para definição de plano de trabalho.
§ 9º  Na hipótese de decisão de inabilitação, poderá ser interposto recurso no prazo de três dias úteis.
§ 10.  O agente cultural poderá optar por constituir sociedade de propósito específico para o gerenciamento e a execução do projeto fomentado.

 

Art. 20.  O edital preverá a vedação à celebração de instrumentos por agentes culturais diretamente envolvidos na etapa de proposição técnica da minuta de edital, na etapa de análise de propostas ou na etapa de julgamento de recursos.
Parágrafo único.  O agente cultural que integrar Conselho de Cultura poderá participar de chamamentos públicos para receber recursos do fomento cultural, exceto quando se enquadrar na vedação prevista no caput.

 

Da norma acima já é possível retirar quatro conclusões iniciais:

 

 

Desta forma, pode-se verificar inicialmente que pretender ampliar a vedação de participar do Edital para todo e qualquer agente público, se não houver previsão fundamentada no certame, não encontra fundamento no Decreto Presidencial.

 

A outra norma que fundamenta o Edital é a Portaria nº 29, de 21 de maio de 2009. A mencionada Portaria dispõe sobre a elaboração e gestão de editais de seleção pública para apoio a projetos culturais e para concessão de prêmios a iniciativas culturais no âmbito do Ministério da Cultura. No que concerne à consulta efetuada, dispõe o normativo:

 

Art. 11. Não poderão se inscrever na seleção pública as entidades privadas que possuam dentre os seus dirigentes:
I - membro do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário, do Ministério Público ou do Tribunal de Contas da União, ou respectivo cônjuge ou companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade até o 2º grau; e
II - servidor público vinculado ao órgão ou entidade concedente, ou respectivo cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade até o 2º grau.
Parágrafo único. Para a efetividade desta vedação legal, o proponente deverá apresentar declaração negando a ocorrência destas hipóteses, como parte da documentação complementar.
 
Art. 24. Os membros da comissão de seleção e respectivos suplentes ficam impedidos de participar da apreciação de projetos e iniciativas que estiverem em processo de avaliação nos quais:
I - tenham interesse direto na matéria;
II - tenham participado como colaborador na elaboração do projeto ou tenham participado da instituição proponente nos últimos dois anos, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o terceiro grau; e
III - estejam litigando judicial ou administrativamente com o proponente ou com respectivo cônjuge ou companheiro.
Parágrafo único. O membro da comissão que incorrer em impedimento deve comunicar o fato ao referido colegiado, abstendo-se de atuar, sob pena de nulidade dos atos que praticar.
 

Da mesma forma que o disposto no Decreto nº 11.453, de 2023, a Portaria MinC nº 29 de 2009 veda a participação do servidor ou parentes do "órgão ou entidade concedente".

 

Poderia se argumentar, visando ampliar a restrição, que "órgão ou entidade concedente" ou "órgão responsável pelo edital" seria toda a Administração Pública Federal, ou, ao menos, o Ministério da Cultura. Todavia, não parece ser este o caso. A própria Portaria MinC nº 29 de 2009, quando quis englobar toda a pasta ministerial, fez menção expressa ao Ministério da Cultura, como se observa, exemplificadamente, nos seguintes dispositivos:

 
Art. 1º Os editais de seleção pública para apoio a projetos culturais e para concessão de prêmios a iniciativas culturais, no âmbito do Ministério da Cultura, observarão o disposto nesta Portaria, sem prejuízo das demais determinações legais.
 
Art. 19. É garantida a gratuidade na inscrição para as seleções públicas do Ministério da Cultura.
 
Art. 22. (...)
§ 3º Os membros da comissão que sejam integrantes do quadro funcional do Ministério da Cultura e instituições a ele vinculadas deverão ser originários de diferentes secretarias e órgãos.
(...)
 
Art. 51. Os projetos e iniciativas inscritos, selecionados ou não, passarão a fazer parte do cadastro do Ministério da Cultura para fins de pesquisa, documentação e mapeamento da produção cultural brasileira.

 

Nesse cenário, observando-se não existir uma vedação genérica na norma jurídica, resta verificar qual a restrição presente no Edital, uma vez que divulgado o certame, este vinculará tanto a Administração Pública quanto todos os particulares que participaram da competição.

 

 O princípio da vinculação ao Edital preceitua que a Administração Pública deve consolidar as regras de regência do processo competitivo e, ao editar esta regra, estará imediatamente submetida a ela, devendo assegurar o seu integral cumprimento pelos participantes, que a ela também devem respeito.

 

Logo, o que estiver presente no Edital, se não ferir normas jurídicas superiores, deve ser observado pela Administração Pública, pois é a garantia de que outros princípios como isonomia e moralidade, que previamente foram sopesados e concretizados no certame, serão cumpridos.

 

A propósito, a doutrina administrativista assim apresenta este princípio:

 

Esse princípio nada mais é que faceta dos princípios da legalidade e moralidade, mas que merece tratamento próprio em razão de sua importância. Com efeito, o edital é ato normativo editado pela administração pública para disciplinar o processamento do concurso público. Sendo ato normativo editado no exercício de competência legalmente atribuída, o edital encontra-se subordinado à lei e vincula, em observância recíproca. Administração e candidatos, que dele não podem se afastar (...)[1]

 

Também é cediço o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que referenda a posição ora esposada. Examinemos a seguir:

 

(...) CONCURSO PÚBLICO – EDITAL – PARÂMETROS – OBSERVÂNCIA BILATERAL. A ordem natural das coisas, a postura sempre aguardada do cidadão e da Administração Pública e a preocupação insuplantável com a dignidade do homem impõe o respeito aos parâmetros do edital do concurso.[2]

 

Nesse sentido, o Edital Ruth de Souza (SEI nº 1142597) ao dispor sobre as vedações, prescreve expressamente:

 

3.2 VEDAÇÕES
3.2.1 É vedada a inscrição de projetos por proponente que inclua entre os seus sócios, gerentes e administradores:
a) Membros do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário, do Ministério Público ou do Tribunal de Contas da União;
b) Servidores ou ocupantes de cargo em comissão da ANCINE ou da SAv e funcionários do BRDE, ou respectivo cônjuge ou companheiro ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o 3º (terceiro) grau;
c) Membros da comissão de seleção, ou respectivos cônjuges ou companheiro ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o 3º (terceiro) grau.

 

Verifica-se assim que o comando normativo do Decreto nº 11.453/2023, de que é vedada a participação de servidor público (e parentes) do órgão responsável pelo edital (art. 19, §5º), foi previamente preenchido no caso concreto com os "Servidores ou ocupantes de cargo em comissão da ANCINE ou da SAv e funcionários do BRDE, ou respectivo cônjuge ou companheiro ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o 3º (terceiro) grau".

 

Ampliar a restrição para abranger todo e qualquer agente público, genericamente, sem um elemento concreto que configure a quebra da isonomia previamente estipulada no edital, somente pelo fato de que um indivíduo exerce um cargo ou uma função de natureza pública, implica, s.m.j., ir de encontro ao instrumento convocatório, desrespeitando suas regras.

 

Soma-se ao fato de que a norma estipula uma restrição de participação, sendo regra geral no Direito que exceções se interpretam restritivamente, e de que o Decreto nº 11.453 de 2023 expressa a busca pela "democratização do acesso de agentes culturais às políticas públicas de fomento" (art. 19, §2º).

 

Desta forma, ampliar a exceção prevista no Edital, após ciência dos vencedores, pode configurar uma decisão administrativa vulnerável, com risco de judicialização, uma vez que participantes concorreram ao Edital que possuía limitações expressas, que seriam ampliadas após divulgado o resultado preliminar.

 

O próprio Anexo referente à declaração de vedações, que foi encaminhada pelos concorrentes, deixa claro, para os mesmos, a abrangência da vedação:

 

https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/editais/inscricoes-em-andamento/edital-ruth-de-souza/edital-ruth-de-souza-de-audiovisual

 

 

Em análise de caso semelhante, a Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (CONJUR-MAPA), ao analisar consulta que envolvia a participação de servidor da pasta ministerial em Edital deflagrado pelo mesmo órgão, entendeu, da mesma forma, pela aplicação do princípio da vinculação ao Edital, dispondo a NOTA n. 00850/2018/CONJUR-MAPA/CGU/AGU (21000.042968/2018-11):

 

2. Ao que informa a Consulente, o servidor, que compõe o Quadro de Acesso ao posto de Adido Agrícola do MAPA, participa do processo seletivo inaugurado pelo Edital n. 03, de 26.09.2018, destinado à “seleção para composição de lista tríplice de candidatos a postos de adidos agrícolas junto a missões diplomáticas brasileiras no exterior”.
(...)
5. Ora, do que se colhe desses atos administrativos, num primeiro átimo, não se vislumbra impeço à participação do aludido servidor.
6. Isso porque, consoante deduz-se do princípio da vinculação ao edital, este [o edital] “é a lei do concurso”. Noutros termos, é dizer que todos os atos que regem o concurso público devem obediência ao que o seu edital prescreve.
(...)
10. E mais uma orientação que serve ao exercício hermenêutico de disposições que tais essas acima trasladadas: uma vez que as seleções públicas se prestam a concretizar os princípios da impessoalidade e isonomia, as normas constantes dos seus editais que estabelecem limitações à participação devem ser lidas de forma sempre restritiva, a fim de privilegiar a envoltura do número máximo de candidatos.
(...)

 

Ainda poder-se-ia questionar se a servidora, mesmo não constando na vedação expressa do Edital, poderia ser desclassificada com base na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 (Lei nº 14.436, de 9 de agosto de 2022):

 

Art. 18. Não poderão ser destinados recursos para atender a despesas com:
(...)
VII - pagamento, a qualquer título, a agente público da ativa por serviços prestados, inclusive consultoria, assistência técnica ou assemelhados, à conta de quaisquer fontes de recursos;
(...)

 

Como já destacado no início dessa manifestação, o objeto do edital visa a: "seleção de propostas para investimento do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA em projetos de produção de obras cinematográficas de longa-metragem dirigidos por mulheres cis ou transgênero e apresentados por meio de produtoras brasileiras independentes". Este investimento ocorre através de objetos financiáveis (itens 4.2.1 do Edital).

 

O presente Edital não faz referência, portanto, a qualquer tipo de contratação ou pagamento de serviços prestados. O Ministério da Cultura não se beneficiará de nenhum tipo de "consultoria, assistência técnica ou assemelhados", expostos na Lei Orçamentária.

 

O próprio parágrafo primeiro, inciso V do dispositivo, ao se referir a vedação acima e estabelecer exceção à regra, cita "pagamento pela prestação de serviços técnicos profissionais especializados por tempo determinado". Como já mencionado, o escopo do presente edital não envolve nenhuma forma de prestação de serviços direta ou indiretamente à Administração Pública.

 

De outro lado, caso se entendesse que o mencionado dispositivo veda a participação de qualquer servidor público em um Edital, estar-se-ia entendendo que o Decreto Presidencial nº 11.453, de 2023 não poderia ter limitado a vedação ao servidor (ou parente) do órgão responsável pelo edital. A mesma irregularidade ocorreria com a Portaria MinC nº 29, de 2009. Todavia, este não é o caso, de modo que não se questiona a legalidade do Decreto e da Portaria.

 

Importante ressaltar que o que se analisa no presente Parecer é se a participação de um agente público no certame gera, pelo simples fato de exercer um cargo de natureza pública, a sua desclassificação.  

 

Como visto, pelo princípio da vinculação ao Edital e pelas normas que fundamentam o certame, a resposta é negativa. Qualquer servidor público pode participar de qualquer certame público se não houver regra expressa que o proíba de participar. Veja-se que não se trata de uma indicação (sem isonomia), mas de um certame do qual todos os cidadãos são, a princípio, aptos a participar. 

 

O fato do cargo que a denunciada ocupa ser de dedicação exclusiva, segundo a área técnica, deve ser analisado sob um outro enfoque, não relacionado ao Edital. Esta conduta pode ter reflexos disciplinares, a depender do caso concreto. Trata-se de processo administrativo específico, com contraditório e ampla defesa,  não tendo relação com sua desclassificação no Edital (objeto deste Parecer), pois, como visto, não há vedação genérica de participação de qualquer agente público e, em um caso específico, determinado servidor pode optar por desenvolver determinadas ações na seara privada, optando por não permanecer como agente público.

 

Em casos como este, o próprio servidor deve formular, via SeCI (Sistema de Conflito de Interesses), uma consulta sobre a compatibilidade das suas atribuições, nos termos da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013. No entanto, face ao recebimento da denúncia, sugere-se que a própria Secretaria do Audiovisual formule a consulta.

 

Por fim, vale ressaltar que o raciocínio jurídico aqui desenvolvido versa sobre uma vedação em tese. A denunciante, por exemplo, alega, sem provas constante nos autos, que uma candidata seria "portadora de informações privilegiadas no Ministério da Cultura".

 

Este ponto deve ser objeto de manifestação específica pela área técnica. Se, de fato, qualquer pessoa que concorreu ao Edital (mesmo não integrando a ANCINE, SAv e BRDE) recebeu alguma informação que permita quebrar a isonomia do pleito, o fato deve ser investigado e apurado, podendo trazer consequências em relação ao candidato ou a todo o Edital.

 

 

III - CONCLUSÃO

 

Diante do exposto, ressalvados os aspectos técnicos de conveniência e de oportunidade não sujeitos ao crivo desta Consultoria Jurídica, em resposta à consulta efetuada pela Secretaria do Audiovisual, entende a CONJUR:

 

A vedação do Edital, que fundamenta-se no Decreto nº 11.453, de 23 de março de 2023, e na Portaria MinC nº 29, de 21 de maio de 2009, faz referência aos servidores da ANCINE, SAv e BRDE.

Se os concorrentes agentes públicos não possuem vínculo com estes órgãos, não há a a vedação em tese, o que não impede que haja alguma outra violação específica ao Edital, o que deverá ser comprovado pela área técnica. 

 

Princípios administrativos como moralidade e impessoalidade são sopesados e definidos previamente no texto do Edital, que vincula as partes. Ampliar uma restrição prevista no Edital, após ciência de seu resultado, viola, s.m.j, o princípio da vinculação ao Edital e, indiretamente, os mesmos princípios da moralidade e impessoalidade, pois, após ter ciência dos vencedores, a Administração Pública amplia uma regra restritiva, causando a eliminação de participantes sem regra expressa nesse sentido.

No entanto, cabe à Secretaria do Audiovisual avaliar se as pessoas indicadas na denúncia (mesmo não integrando a ANCINE, SAv e BRDE) receberam alguma informação que permita quebrar a isonomia do pleito, o que pode trazer consequências em relação ao candidato ou a todo o Edital.

 

Qualquer servidor público pode participar de qualquer certame público se não houver regra expressa que o proíba de participar. Veja-se que não se trata de uma indicação (sem isonomia), mas de um certame do qual todos os cidadãos são, a princípio, aptos a participar. 

O fato do cargo que a denunciada ocupa ser de dedicação exclusiva pode ter reflexos disciplinares, a depender do caso concreto. Trata-se de processo administrativo específico, com contraditório e ampla defesa,  não tendo relação com sua desclassificação no Edital (objeto deste Parecer), pois, como visto, não há vedação genérica de participação de qualquer agente público e, em um caso específico, determinado servidor pode optar por desenvolver determinadas ações na seara privada, optando por não permanecer como agente público.

Em casos como este, o próprio servidor deve formular, via SeCI (Sistema de Conflito de Interesses), uma consulta sobre a compatibilidade das suas atribuições, nos termos da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013. No entanto, face ao recebimento da denúncia, sugere-se que a própria Secretaria do Audiovisual formule a consulta.

 

A decisão de eliminar candidato após divulgação do resultado, com base em ampliação de regra restritiva prevista no Edital pode ir de encontro ao princípio da vinculação ao Edital, podendo ser questionada judicialmente. 

No entanto, como dito, cabe à Secretaria do Audiovisual avaliar se as pessoas indicadas na denúncia (mesmo não integrando a ANCINE, SAv e BRDE) receberam alguma informação que permita quebrar a isonomia do pleito, o que pode trazer consequências em relação ao candidato ou a todo o Edital.

De toda forma, esta é uma decisão administrativa que cabe ao gestor justificar sua eventual escolha, sob sua responsabilidade.

 

Se o denunciado não for agente público ou parente de servidor da ANCINE, SAv e BRDE, na forma exposta no Edital de seleção, não há vedação, em tese, para participação, o que não impede que haja alguma outra violação específica ao Edital, o que deverá ser comprovado pela área técnica. 

 

A decisão de eliminar candidato após divulgação do resultado, com base em ampliação de regra restritiva prevista no Edital pode ir de encontro ao princípio da vinculação ao Edital, podendo ser questionada judicialmente. 

No entanto, como dito, cabe à Secretaria do Audiovisual avaliar se as pessoas indicadas na denúncia (mesmo não integrando a ANCINE, SAv e BRDE) receberam alguma informação que permita quebrar a isonomia do pleito, o que pode trazer consequências em relação ao candidato ou a todo o Edital.

De toda forma, esta é uma decisão administrativa que cabe ao gestor justificar sua eventual escolha, sob sua responsabilidade.

 

Vale ressaltar que as respostas referem-se à consulta formulada, relacionada ao Edital Ruth de Souza (SEI nº 1169089) e seus reflexos relacionados apenas ao certame competitivo.

Não compete à Consultoria Jurídica alargar o escopo da consulta ou fazer conjecturas fáticas não presente nos autos. Caso a área técnica tenha ciência de alguma irregularidade, o fato deve ser investigado e apurado, podendo trazer consequências em relação ao candidato ou a todo o Edital.

Recomenda-se a Secretaria do Audiovisual atentar-se ao princípio da vinculação ao Edital e, se buscar ampliar a vedação de participação em casos futuros, que a regra venha fundamentada e expressamente prevista no Edital.

Recomenda-se também em Editais futuros, especial atenção à fase do Planejamento do chamamento público (art. 12, inciso I, Decreto nº 11.453/2023), uma vez que a tramitação sempre em caráter de urgência dos Editais pode prejudicar as fases seguintes, de processamento e celebração.

 

 

Isso posto, submeto o presente processo à consideração superior, sugerindo que, após aprovação, os autos sejam encaminhados à Secretaria do Audiovisualpara as providências cabíveis.

 

 

Brasília, 07 de março de 2024.

 

 

(assinatura eletrônica)

GUSTAVO ALMEIDA DIAS

Advogado da União

 

 


Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em https://supersapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 01400004881202392 e da chave de acesso 673ca34f

Notas

  1. ^ “Concursos públicos e o princípio da vinculação ao edital”. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 239, jan.-mar./2005, p. 139-148.
  2. ^ STF. 2ª Turma. RMS n. 23.657/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento em 21.11.2000. DJe de 09.11.2001.



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