ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA NO MINISTÉRIO DA CULTURA

 

 

PARECER nº 98/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.009898/2024-17

INTERESSADA: Subsecretaria de Gestão de Prestação e Tomada de Contas

ASSUNTO: Ato normativo. Prescrição.

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL.
I - Prescrição administrativa das ações punitivas e de ressarcimento ao erário. Minuta de instrução normativa ministerial.
II - Estabelecimento de procedimentos para o reconhecimento, de ofício ou mediante requerimento, da prescrição da pretensão de ressarcimento de danos ao erário no âmbito dos programas do Ministério da Cultura.
III - Inteligência do art. 79 do Decreto nº 11.453/2023. Competência da Ministra de Estado da Cultura, conforme art. 80 do mesmo decreto.
IV - Parecer favorável, com ressalvas. Necessidade de ajustes na minuta apresentada. Proposição de minuta revisada.

 

Os autos em epígrafe tratam de proposta de portaria ministerial apresentada pela Subsecretaria de Gestão de Prestação e Tomada de Contas (SGPTC), com o objetivo de regulamentar a prescrição da pretensão punitiva e de ressarcimento no âmbito do Ministério da Cultura, unidades vinculadas e entes aderentes à Política Nacional Aldir Blanc - PNAB (Lei nº 14.339/2022).

A minuta (doc. SEI/MinC 1716291) é uma iniciativa da SGPTC no bojo do processo 01400.009555/2024-52, nos termos do do Ofício nº 142/2024/SGPTC/SE/MinC (SEI/MinC 1716144), e foi encaminhada a esta Consultoria Jurídica acompanhada da Nota Técnica nº 3/2024 (SEI/MinC 1716293), que apresenta as justificativas para o ato.

Conforme exposto na referida nota técnica, a proposta visa consolidar no âmbito do Ministério da Cultura, suas entidades vinculadas e entes da federação aderentes à PNAB, a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal acerca da prescritibilidade da pretensão de ressarcimento dos danos ao erário decorrentes de ilícitos civis não dolosos, na esteira da recente regulamentação do Tribunal de Contas da união sobre o tema, e de modo a regulamentar o art. 79 do Decreto nº 11.453/2023, que expressamente previu o poder-dever do Ministério da Cultura para reconhecer de ofício a prescrição administrativa nos processos de sua competência.

É o breve relatório. Passo à análise.

Não se pode ignorar a importante inovação jurídica implementada por meio do art. 79 do Decreto nº 11.453/2023 no enfrentamento da questão prescricional em processos de prestações de contas no âmbito do Ministério da Cultura, consolidando a jurispridência sobre o tema para os processos de competência deste ministério. Além da previsão geral da possibilidade do reconhecimento de ofício, em seu parágrafo único tal artigo dispõe expressamente que a análise da ocorrência de prescrição para o exercício das pretensões de ressarcimento precederá as análises de documentação de prestações de contas, autorizando assim o reconhecimento de ofício não apenas da pretensão punitiva, mas também das ações de ressarcimento do Estado.

Esta previsão normativa consolida uma radical reorientação jurisprudencial no tratamento a ser dado às hipóteses de dano ao erário, antes consideradas sempre imprescritíveis, e respalda-se em  recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 899 da Repercussão Geral da Corte, especialmente no Recurso Extraordinário nº 636.886/AL e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5509. Ademais, trata-se de matéria já regulamentada no âmbito do TCU por meio da Resolução nº 344/2022.

Esta Consultoria Jurídica possui grande acúmulo de entendimentos proferidos no sentido de que o prazo prescricional quinquenal de que trata a Lei nº 9.873/1999 sempre foi plenamente aplicável às sanções de inabilitação e multa previstas no art. 20, § 1º, e no art. 38 da Lei nº 8.313/1991, respectivamente, tendo em vista que nestes casos, trata-se do exercício da ação punitiva do estado por meio de processo administrativo sancionador. Especificamente nas hipóteses dos crimes de fraude do patrocinador (art. 40, caput) e de inexecução dolosa de projeto com recursos captados(art. 40, § 2º), a prescrição da ação punitiva administrativa regula-se pela prescrição penal, ocorrendo em 3 anos conforme art. 109, VI, do Código Penal.

Todavia, no que tange especificamente às ações ressarcitórias da administração, sempre houve cautela na aceitação da tese da prescrição, diante da previsão constitucional de uma imprescritibilidade geral das ações de ressarcimento de dano ao erário, no art. 37, § 5º, da Constituição Federal. 

Mesmo com o início de uma mudança de orientação do STF nesta questão (Recurso Extraordinário nº 669.069/MG) para reconhecer uma imprescritibilidade relativa, esta Consultoria Jurídica manteve seu entendimento consolidado no sentido da imprescritibilidade no âmbito dos programas do MinC, uma vez que em tal julgamento havia-se firmado tão-somente a tese da possibilidade de prescrição das ações de ressarcimento relativas a danos decorrentes exclusivamente de ilícito civil não associado a sanções de outras naturezas, especificamente relacionado a responsabilidade civil extracontratual prevista em norma de direito privado. Como nas hipóteses das leis de fomento e incentivo à cultura estamos tratando de responsabilidades outras que importam em violação de norma de direito público associada a sanções administrativas, concluía-se que o art. 37, § 5º, da Constituição, reconhecia a prescrição apenas das sanções cominadas ao ilícito, mas não da pretensão ressarcitória. Este entendimento, contudo, evoluiu na própria esteira da jurisprudência do STF. 

O julgamento do RE nº 669.069/MG havia servido de paradigma para o Tema 666 da Repercussão Geral da Suprema Corte, assentando o entendimento de que ilícitos exclusivamente civis decorrentes de normas de direito privado são prescritíveis. Porém, não havia concluído, a contrario sensu, que apenas ilícitos dolosos ou de improbidade administrativa conduziriam à imprescritibilidade do dano ao erário. Já no julgamento do Tema 897 da Repercussão Geral, o tribunal discutiu sobre a imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos por ato de improbidade administrativa. No leading case (RE 852475/SP), ficou decidido que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”

A jurisprudência formada a partir destes dois julgamentos fornece parâmetros razoáveis para abranger uma grande variedade de hipóteses, firmando orientação no sentido da prescritibilidade nos casos de ilícitos meramente civis e decorrentes de normas de direito privado, e no sentido da imprescritibilidade nos casos de atos de improbidade administrativa, isto é, atos dolosos que resultem em dano ao erário. Contudo, permanecia uma lacuna no que se refere a danos decorrentes de violações não dolosas a normas de direito público, como ocorre ordinariamente nas prestações de contas dos programas, projetos e ações do Ministério da Cultura.

Buscando sanar esta lacuna, o Tema 899 da Repercussão Geral do STF foi debatido no julgamento do leading case do Recurso Extraordinário nº 636.886/AL, resultando no seguinte acórdão:

REPERCUSSÃO GERAL. EXECUÇÃO FUNDADA EM ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. ART. 37, § 5o, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRESCRITIBILIDADE.
1. A regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado.
2. Analisando detalhadamente o tema da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”, este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (TEMA 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o TEMA 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública.
3. A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento.
4. A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos reconhecida em acórdão de Tribunal de Contas prescreve na forma da Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal).
5. Recurso Extraordinário DESPROVIDO, mantendo-se a extinção do processo pelo reconhecimento da prescrição. Fixação da seguinte tese para o TEMA 899: “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”. [grifo nosso]

Portanto, a partir de tal jurisprudência, há segurança jurídica para que a administração pública reconheça de ofício a prescrição da pretensão de reparação civil decorrente de quaisquer atos ilícitos, exceto aqueles qualificados como atos dolosos de improbidade administrativa.

É relevante notar, ainda, que o caso paradigmático utilizado no julgamento da repercussão geral e resultou no acórdão supracitado consistia justamente em hipótese de dano ao erário decorrente de reprovação em prestação de contas de convênio celebrado no Ministério da Cultura, como registrado na decisão do tribunal que reconheceu a repercussão geral:

1. Trata-se de recurso extraordinário interposto em ação de execução de acórdão do Tribunal de Contas da União. (...)
2. Com razão o Tribunal de origem ao devolver os autos à apreciação desta Corte. Debate-se, neste recurso extraordinário, a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário determinada pelo Tribunal de Contas da União. Consta que Vanda Maria Menezes Barbosa, na qualidade de presidente da Associação Cultural Zumbi, deixou de prestar contas de recursos recebidos do Ministério da Cultura para fins de aplicação no projeto Educar Quilombo. Por essa razão, o TCU, no julgamento de Tomadas de Conta Especial, a condenou a restituir aos cofres públicos os valores recebidos por meio do Convênio 14/88. Instada a cumprir a obrigação, a parte não a adimpliu, o que ensejou a propositura de execução de título executivo extrajudicial pela União.

Assim sendo, não obstante o disposto no art. 37, § 5º, da Constituição Federal, considerando a jurisprudência consolidada no STF, parece-me não haver mais dúvidas quanto à legalidade e constitucionalidade do art. 79, caput e parágrafo único, do Decreto nº 11.453/2023, que autoriza a administração pública a reconhecer, de ofício, a prescrição do poder administrativo sancionatório, bem como das pretensões de ressarcimento relacionadas às prestações de contas tratadas no decreto.

Considerando que o art. 80 do Decreto nº 11.453/2023 estabelece a competência da Ministra da Cultura para editar as instruções normativas necessárias ao cumprimento do disposto neste Decreto, afigura-se pertinente a proposta em exame, embora seja mais adequada a sua veiculação por meio de instrução normativa em vez de simples portaria ministerial.

Ademais, a possibilidade de regulamentação dos procedimentos para reconhecimento de ofício da prescrição reforça-se a partir da edição da Resolução nº 344/2022/TCU, que regulamentou a prescrição para o exercício das pretensões punitiva e de ressarcimento no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU), e confirmou a prescrição quinquenal de tais pretensões, exceto quando aplicável a prescrição penal.

Em seus princípios gerais, a resolução do TCU aplica-se às hipóteses da proposta em exame, visto que os programas, projetos e ações culturais reprovados em prestações de contas constituem débitos passíveis de tomadas de contas especial no âmbito da corte de contas. No entanto, algumas ponderações devem ser feitas quanto às especificidades de cada regulamentação, que exigem adaptações na minuta ora apresentada.

A mais importante observação a ser feita diz respeito aos marcos temporais de início da contagem do prazo prescricional. A Resolução nº 344/2022/TCU foi editada a partir das competências daquele tribunal, e parte do pressuposto de que todo processo de tomada de contas é um processo administrativo sancionador desde o seu início. Os processos relativos a parcerias do Ministério da Cultura com o setor privado ou com o setor público, seja por meio do MROSC (Lei nº 13.019), da PNCV (Lei nº 13.018), de convênios, de instrumentos congêneres ou pelos demais mecanismos de fomento direto ou indireto à cultura não têm tal natureza, somente assumindo caráter sancionador a partir do momento em que têm suas prestações de contas rejeitadas ou reprovadas, por meio de decisão da Administração que constitui em mora o seu parceiro ou beneficiário.

Portanto, o mais importante ajuste que se impõe à minuta está no seu art. 3º, quando trata do termo inicial a partir do qual deve ser contado o prazo prescricional, e que pode variar, conforme o regime jurídico aplicável à parceria ou à modalidade de fomento, a depender dos prazos de que o administrado dispõe para apresentar sua prestação de contas ou responder a eventuais diligências antes de ser constituído em mora, ou ainda do prazo de que a administração dispõe para julgar as contas, uma vez que sejam apresentadas.

Outro ajuste importante diz respeito ao próprio escopo da norma proposta, que não pode avançar propriamente sobre os procedimentos administrativos da alçada de entidades da administração indireta, ainda que vinculadas ao Ministério da Cultura, sob pena de adentrar em competências exclusivas de suas autoridades máximas, em virtude da autonomia administrativa de que dispõem tais entidades. Neste sentido, o art. 1º e a ementa da norma devem ser restringidos de modo a não ser aplicável às entidades vinculadas ao Ministério da Cultura, tampouco a outros entes da federação, tendo em vista que tais organizações não se sujeitam ao poder hierárquico do ministério, e eventual poder de supervisão ministerial apenas se exerce na medida em que executem políticas de competência do Ministério. Para que esta supervisão se exerça, porém, basta a previsão das políticas, programas ou ações disciplinados na norma.

Outras alterações pontuais também se fazem necessárias nos capítulos da norma que tratam das causas interruptivas e suspensivas da prescrição, bem como da prescrição intercorrente, esta última somente incidindo após uma decisão de julgamento das contas, conforme entendimentos reiterados desta Consultoria Jurídica.

Por fim, ajustes devem ser feitos nos capítulos que tratam dos procedimentos para reconhecer de ofício a prescrição e dos efeitos de tal decretação, especialmente no que se refere a cadastros de inadimplência e medidas cabíveis sobre bens remanescentes de parcerias que resultaram em dano ao erário já reconhecidamente prescrito.

Estas e outras recomendações de ajustes de menor monta encontram-se presentes na minuta revisada em anexo ao presente parecer, com controle de alterações e justificativas à margem do texto, sendo também anexada uma versão consolidada para facilitação da leitura da versão final proposta por esta Consultoria Jurídica.

 

À SGPTC, para ciência e prosseguimento.

Brasília, 7 de maio de 2024.

 

 

(assinado eletronicamente)

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Consultor Jurídico

interino

 


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