ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
COORDENAÇÃO-GERAL JURÍDICA DE POLÍTICAS CULTURAIS

 

 

PARECER nº 173/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.015212/2024-27

INTERESSADA: Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos

ASSUNTO: Projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional.

 

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO PENAL.
I - Projeto de lei nº 1.699/2024. Proíbe a prática, simulação ou encenação de atos sexuais, nudez ou qualquer ato libidinoso em quaisquer espaços públicos ou acessíveis ao público e dá outras providências.
II - A Constituição Federal não admite a imposição de restrições gerais à liberdade de expressão a pretexto de controle da moralidade de seus cidadãos. Os princípios de proteção à infância e à adolescência já contam com instrumentos legais que impedem sua exposição a conteúdo sexuais inapropriados, sem violar os preceitos mais básicos do estado democrático atinentes à liberdade de expressão. Violação aos princípios da tipicidade penal no estabelecimento de tipos excessivamente abertos sem vetor finalístico que podem abranger quaisquer manifestações artísticas e culturais.
III - Inconstitucionalidade da proposição. Recomendação de adoção de posição contrária à integralidade do texto e adoção das medidas legislativas ao alcance do poder executivo para obstruir sua tramitação ou impedir sua aprovação.

 

 

Sra. Consultora Jurídica,

 

Trata-se de consulta formulada pela Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos, solicitando manifestação sobre o Projeto de Lei nº 1699, de 2024, de autoria do Deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), que consiste em proibir a prática, simulação ou encenação de atos sexuais, nudez ou qualquer ato libidinoso em quaisquer espaços públicos ou acessíveis ao público, estabelecendo sanções genéricas de natureza civil e penal, a serem arbitradas por autoridades administrativas ou policiais.

A consulta foi-nos encaminhada por meio do Ofício nº 302/2024/CAP/ASPAR/GM/MinC (doc. SEI/MinC 1796101), acompanhado do texto do projeto de lei (SEI/MinC 1769099). Por meio do Despacho n 390/2024/CONJUR-MinC/CGU/AGU, esta Consultoria Jurídica solicitou manifestação de todas as áreas técnicas possivelmente interessadas em opinar quanto ao mérito e ao impacto da matéria.

Até a presente data, não houve manifestação das secretarias consultadas.

É o que se tem a relatar. Passo à análise.

A proposição em apreço é flagrantemente inconstitucional e não pode prosperar.

A Constituição Federal não admite a imposição de restrições gerais à liberdade de expressão a pretexto de controle da moralidade de seus cidadãos, tampouco para acesso e fruição a direitos fundamentais, como o direito de acesso à cultura. No caso em exame, o projeto de lei nº 1699/2024 é manifestamente inconstitucional porque, sob uma falsa justificativa de ordem pública e proteção à infância e adolescência, limita indiscriminadamente o acesso da população a quaisquer formas de entretenimento público em que haja abordagem a temas sexuais, seja de forma explícita ou implícita por meio de encenação ou exposição.

Uma medida de tal jaez atenta frontalmente contra a garantia fundamental da liberdade de expressão, criação e manifestação do pensamento, particularmente no que se refere à liberdade de criação e expressão artística, garantias estas insculpidas nos incisos IV e IX do art. 5º da Constituição:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Tal garantia ainda encontra guarida no art. 220 da Carta Magna, segundo o qual tais liberdades não podem sofrer qualquer restrição legal, salvo aquelas autorizadas pela própria Constituição. Em seus §§ 2º e 3º, tal artigo deixa claro que é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística, cabendo à lei apenas disciplinar acerca da possibilidade de o poder público informar sobre eventuais conteúdos inapropriados em espetáculos artísticos conforme a faixa etária, local ou horário de exibição.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Levadas as vedações e sanções do referido projeto de lei às últimas consequências,  a afronta à Constituição atinge também a garantia fundamental do livre exercício profissional, também prevista no art. 5º:

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Afinal, a proposta criminaliza qualquer atividade que possa eventualmente expor nudez ou simular a prática de atos sexuais ou abordar temáticas sexuais em geral, proibindo por completo o seu exercício e sua oferta pública como trabalho ou serviço.

Uma análise mais detida da justificativa exposta pelo deputado autor da proposição revela que ela é apresentada sob o pretexto de proteção à dignidade das crianças e adolescentes. Porém, ao se confrontar com o texto normativo em si, verifica-se que o projeto consiste em questionar o valor de qualquer arte que envolva representação pictórica de nudez, empurrando-a para a ilegalidade. Da forma como redigido o texto, a simples representação de nudez ou ato sexual em qualquer espetáculo, ainda que restrito a adultos e com acesso controlado, estaria sujeita a inaceitável censura e sanções absolutamente infundadas e incompatíveis com as garantias constitucionais da liberdade de expressão, de pensamento e do livre exercício do trabalho (art. 5º, incisos IV, IX e XIII).

É perceptível que a justificativa não é congruente com a proposta apresentada, pois enfoca principalmente a proteção a crianças e adolescentes e pessoas que involuntariamente estariam sujeitas à exposição a eventos e atividades de entretenimento com conteúdo sexual explícito. No entanto, o projeto trata de proibir toda e qualquer manifestação deste tipo em espaços de frequência coletiva, ainda que de forma controlada e atendendo às classificações indicativas e outras restrições impostas pela legislação em vigor a eventos de tal natureza.

Em síntese, o projeto pretende censurar por completo qualquer tipo de apresentação, evento cultural ou de mero entretenimento com conteúdo sexual, explícito ou não, mesmo que de mera nudez. Não há no texto legal qualquer intenção de proteger a infância e a adolescência, visto que o próprio art. 1º trata de delimitar seu escopo para quaisquer eventos acessíveis coletivamente, "com a presença ou não de crianças e adolescentes".

Aprovado o projeto, estariam imediatamente proibidos de execução, exibição ou qualquer forma de circulação ou comercialização pública quaisquer obras com classificação indicativa não recomendada para menores de dezoito anos, o que inclui mas não se limita a realização de shows e concertos musicais; a distribuição de séries, filmes e conteúdos audiovisuais em geral em veículos de telecomunicações, incluindo plataformas de streaming na internet; a abertura e funcionamento de casas de espetáculos teatrais com conteúdo adulto, casas de swing e estabelecimentos de entretenimento adulto não permitidos para menores de idade; a circulação de publicações editoriais com conteúdo pornográfico ou adulto em geral; entre inúmeras outras atividades de natureza comercial ou meramente cultural concebidas exclusivamente para o público adulto.

Na parte da proposição que estabelece sanções civis e criminais, revela-se que a violação à Constituição ultrapassa as questões afetas às liberdades individuais de manifestação do pensamento, expressão intelectual ou artística livre de censura e exercício do trabalho, atingindo gravemente também as garantias penais dos cidadãos, seja porque não há tipificação adequada de condutas, com proibição aberta que pode abranger qualquer manifestação artística, seja porque já existem tipos no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - que tratam devidamente do assunto.

No Código Penal, o Título VI da Parte Especial traz os crimes contra a dignidade sexual, sendo que o seu Capítulo VI trata especificamente dos crimes de ultraje público ao pudor, onde já se encontra previsto o crime de ato obsceno, que consiste em "praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público". A pena cominada a tal crime é de três meses a um ano de detenção (art. 233), e a jurisprudência claramente afasta a tipicidade de qualquer conduta que não contenha em seu elemento subjetivo o dolo específico de exposição indiscriminada em locais de amplo acesso público com finalidade obscena. A exposição não obscena e a exposição obscena em espaços destinados exclusivamente ao público adulto ou sem qualquer controle de acesso ou classificação indicativa claramente afastam a tipicidade e a ilicitude da conduta.

Ao pretender estabelecer uma infração na qual este dolo específico é eliminado do tipo penal e substituído por uma tipicidade estritamente objetiva baseada em restrições genéricas e incertas de natureza administrativa, cível e penal, o projeto viola nitidamente a Constituição também em seu art. 5º, inciso XLV, o qual estabelece que nenhuma pena passará da pessoa do condenado e exige que toda responsabilidade penal seja subjetiva. Isto é, todo tipo penal deve ser formado de um tipo objetivo e um tipo subjetivo, para que o autor de um crime somente seja condenado na medida de sua culpabilidade.

O projeto em exame claramente desconsidera este princípio básico do direito penal, determinando que qualquer pessoa que participe de um evento com nudez, em qualquer condição, estará sujeita a prisão em flagrante, detenção e multa, sendo que tais sanções não estão especificadas em lei, mas seriam arbitradas em juízo. Este grave defeito é visível nos arts. 4º, 5º e 6º da proposição, que além do inciso XLV, violam frontalmente também o inciso XXXIX do art. 5º da Constituição, segundo o qual "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Com efeito, em nenhum momento o projeto de lei tipifica adequadamente as condutas sujeitas à pena, nem sequer comina as penas cabíveis.

Já no art. 7º do projeto, além do inciso XXXIX, verifica-se a violação também dos incisos LXI e LXII do art. 5º, que assim dispõem:

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

Com efeito, o art. 7º autoriza a prisão arbitrária em flagrante daqueles que incidirem nas absurdas proibições do art. 1º, sem ordem judicial e sem prévia tipificação penal. Além disso, em seu parágrafo único, outorga autoridade desmedida à autoridade policial ao permitir que prisões arbitrárias sejam mantidas sem o conhecimento da autoridade judicial.

Além disso, o art. 8º do projeto ainda viola o inciso LIII do art. 5º, segundo o qual "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". Ao estabelecer simplesmente que "caberá aos órgão competentes" a aplicação das sanções penais, sem qualquer menção à autoridade judicial, e sugerindo tratar-se das mesmas autoridades responsáveis pela fiscalização das proibições do art. 1º, tal dispositivo ataca gravemente o princípio do juiz natural e da própria separação dos poderes.

Deixando o Código Penal e adentrando no ECA, observamos que os princípios de proteção à infância e à adolescência já contam com instrumentos legais que impedem a exposição de menores a conteúdos sexuais inapropriados sem violar os preceitos mais básicos do estado democrático como faz este projeto.

Diversos tipos penais do estatuto se utilizam do conceito de "cena de sexo explícito" para se referir a condutas inapropriadas que envolvam a participação de menor de idade, ainda que como mero espectador. O art. 241-E da Lei nº 8.069/1990, que fecha o conceito de tais tipos, é claro ao definir cena de sexo explícito como "atividade sexual", real ou simulada, ou "exibição de genitália" com fins primordialmente sexuais. Não abrange a ideia de nudez pura e simples, sem que haja finalidade primordialmente sexual. Tampouco, por óbvio, inclui atividades sexuais praticadas entre adultos, especialmente em locais de frequência pública controlada.

Justamente por elastecer o conceito de prática ou exibição pública de atos sexuais a quaisquer eventos e quaisquer ambientes públicos, a proposição viola frontalmente a Constituição, diferentemente do ECA, que adequadamente tipifica os elementos objetivos e subjetivos dos seus crimes.

É claro que não ignoramos a possibilidade de alteração legislativa para que um tipo penal tenha seus elementos objetivo e subjetivo ampliados ou restringidos conforme uma justificada necessidade de política criminal. No entanto, é evidente que não é disso que se trata no presente projeto de lei. Ao limitar um tipo penal que envolve o conceito de "prática, simulação ou encenação de ato sexual, nudez ou qualquer ato libidinoso" aos elementos objetivos da conduta, com ampliação ilimitada das circunstâncias da conduta para quaisquer locais de frequência coletiva, e desconsiderando o elemento finalístico da conduta, a proposta extrapola os limites mais básicos do estado democrático de direito, que visam a uma sociedade livre, pluralista e tolerante com a diversidade.

Tal objetivo constitucional, por óbvio, deve ser infenso à injunções moralistas de determinadas parcelas da população sobre outras, como a que ora se revela, de impedir, por meio da criminalização, manifestações artísticas inspiradas na nudez ou na representação de atos sexuais em geral. Projetos como este traduzem-se em uma tentativa de eliminação do pensamento divergente, por meio da supressão de liberdades individuais.

Em conclusão, defendemos a necessidade do mais veemente repúdio às tentativas de censura mascaradas em propostas deste tipo, que a pretexto de invocar o interesse público inerente à defesa da infância e da adolescência, ou de criticar de forma estéril o conceito e a função da arte, esconde intenções obscurantistas e preconceituosas de retirar de parcelas minorizadas da população os mais básicos direitos de existir, ocupar espaços públicos, aceder em condições de igualdade a políticas públicas e fazer valer sua mais legítima liberdade de expressão.

Diante de todo o exposto, tendo em vista a inconstitucionalidade da proposta apresentada em sua integralidade, por violação ao art. 5º, incisos IV, IX, XIII, XXXIX, XLV, LIII, LXI e LXII, e ao art. 220, caput e §§ 2º e 3º, da Constituição Federal, esta Coordenação-Geral posiciona-se de forma contrária ao projeto de lei, recomendando à Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos o encaminhamento desta posição à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, para adoção das medidas legislativas ao alcance do Poder Executivo para obstruir sua tramitação ou impedir sua aprovação.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 28 de junho de 2024.

 

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Advogado da União

Coordenador-Geral Jurídico de Políticas Culturais

 

 


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