ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
COORDENAÇÃO-GERAL DE POLÍTICAS CULTURAIS

 

 

PARECER nº 181/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.015891/2024-34

INTERESSADA: Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos

ASSUNTO: Projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional.

 

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO PENAL.
I - Projeto de lei nº 633/2022. Tipifica o crime de submissão de criança ou adolescente a atuação cinematográfica, televisiva, teatral, de dança, ou de qualquer outra forma, comercial ou não, que fira sua dignidade sexual, mesmo que de modo implícito ou simulado.
II - Conduta já tipificada no art. 241-C do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/1990, com técnica legislativa mais apurada e sem vícios de constitucionalidade.
III - Inconstitucionalidade de tipo penal excessivamente aberto que não permite uma razoável identificação da conduta no que se refere aos conceitos de "sexo implícito ou subliminar". Recomendação de adoção de posição contrária aos arts. 1º e 2º do projeto.

 

 

Sra. Consultora Jurídica,

 

Trata-se de consulta formulada pela Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos, solicitando manifestação sobre o Projeto de Lei nº 633, de 2022, de autoria dos Deputados Chris Tonietto (UNIAO-RJ), Daniel Silveira (UNIAO-RJ), General Girão (UNIAO-RN) e Coronel Tadeu (UNIAO-SP), que tipifica o crime de submissão de criança ou adolescente a atuação cinematográfica, televisiva, teatral, de dança, ou de qualquer outra forma, comercial ou não, que fira sua dignidade sexual, mesmo que de modo implícito ou simulado.

A consulta foi-nos encaminhada por meio do Ofício-Circular nº 81/2024/CAP/ASPAR/GM/MinC (doc. SEI/MinC 1809873), acompanhado do texto do atual substitutivo do projeto de lei (SEI/MinC 1809869).

Até a presente data, não houve pronunciamento das secretarias e entidades vinculadas instadas a se manifestar.

É o que se tem a relatar. Passo à análise.

Conforme versão do atual substitutivo em tramitação, a tipificação proposta no projeto de lei em exame implica na introdução de um art. 241-F no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei nº 8.069/1990 - com o seguinte teor:

Art. 241-F. Submeter ou permitir que criança ou adolescente participe, ainda que de forma simulada, de qualquer tipo de representação visual ou audiovisual de cena de sexo explícito, implícito, subliminar ou pornográfico, que atente contra a sua dignidade sexual.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica, divulga, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.

 A conduta descrita na proposta em exame, contudo, já se encontra tipificada no art. 241-C, que trata a questão de forma tecnicamente mais adequada, nos seguintes termos:

Art. 241-C.  Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 
Parágrafo único.  Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo. [grifamos]

Diversos tipos penais do ECA derivados do art. 241 se utilizam do conceito de "cena de sexo explícito" para se referir a condutas inapropriadas que envolvam a participação de menor de idade, ainda que como mero espectador. Para tornar tal conceito mais preciso e evitar tipos penais excessivamente abertos, o art. 241-E do estatuto foi bastante claro ao definir cena de sexo explícito como "atividade sexual", real ou simulada, ou "exibição de genitália" com fins primordialmente sexuais. Não abrange a ideia de nudez pura e simples, sem que haja finalidade primordialmente sexual. Tampouco inclui atividades sexuais praticadas entre adultos, especialmente em locais de frequência pública controlada.

A potencial inovação do novo artigo ora proposto, nas entrelinhas da redação do substitutivo, diz respeito à possibilidade de tipificar também as representações de "sexo implícito" e de "sexo subliminar", sem a mais vaga ideia sequer do que estas definições signifiquem.

Ao esgarçar o conceito de cena de sexo explícito – que na letra da lei atual já é suficiente para alcançar representações de atos sexuais reais ou simulados, sem explicar exatamente que outras condutas se pretende alcançar – o artigo proposto revela-se irremediavelmente inconstitucional, pois resulta na criminalização de quaisquer atos que envolvam a participação de crianças em atividades sem cunho sexual, simplesmente porque podem vir a despertar alguma perversão sexual nos espectadores. Em outras palavras, procura atribuir a terceiros a responsabilidade de pessoas com algum tipo de desvio ou perversão sexual.

Da forma como redigido, percebe-se que a intenção do dispositivo é incluir entre estas potenciais atividades "implícita ou subliminarmente sexuais" aquelas relacionadas especialmente às artes visuais e audiovisuais. Vale mencionar ainda o parecer do relator do substitutivo, que explicitamente reconhece a intenção do projeto de atingir manifestações artísticas cinematográficas, televisivas, teatrais, de dança, como mencionado na proposição originária, ressaltando o objetivo específico de permitir o exercício de um controle moral mais acentuado sobre projetos culturais beneficiados com verbas públicas e programas de incentivos fiscais de governo.

Sob o pretexto de proteção à dignidade de crianças e adolescentes, a proposta em questão cria um tipo penal excessivamente aberto no ECA, que virtualmente permite interpelar e perseguir por via criminal qualquer arte com menores de idade para além dos limites toleráveis em um estado de direito democrático.

Como a lei não estabelece o que se entende por sexo implícito ou subliminar, qualquer manipulação narrativa sobre atividades artísticas com crianças poderia levar a medidas irrefletidas e arbitrárias de autoridades policiais e judiciais, representando sérios danos às garantias constitucionais da liberdade de expressão, de pensamento e do livre exercício do trabalho (art. 5º, incisos IV, IX e XIII, da Constituição Federal). Ademais, a instituição de um tipo penal excessivamente aberto que não permite uma razoável identificação da conduta no que se refere aos elementos objetivos do tipo padece de inconstitucionalidade por violar frontalmente também o inciso XXXIX do art. 5º da Constituição, segundo o qual "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

É claro que não ignoramos a possibilidade de alteração legislativa para que um tipo penal tenha seus elementos objetivo e subjetivo ampliados ou restringidos conforme uma justificada necessidade de política criminal. Também não se ignora que o direito penal pátrio convive com tipos abertos e normas penais em branco que precisam ser colmatadas por normas legais ou administrativas não penais. No entanto, as justificativas e o próprio texto do projeto de lei revelam que não se trata de preencher "lacunas do microssistema" normativo do ECA para abarcar "nuances" dos tipos já existentes, mas uma clara tentativa de causar instabilidade e incutir medo no meio artístico e do entretenimento, por meio do esvaziamento conceitual do tipo objetivo descrito.

Por fim, com relação aos arts. 3º e 4º da proposição, não vislumbramos qualquer vício de constitucionalidade que impeça a vinculação do princípio da proteção integral da criança e do adolescente às legislações de fomento à cultura, de modo a enfatizar tal princípio como critério de análise e aprovação de projetos culturais financiados. Assim, parece-me viabilizada a continuidade da tramitação legislativa do projeto de lei, exclusivamente para estes artigos.

Diante de todo o exposto, tendo em vista a inconstitucionalidade da proposição em seus arts. 1º e 2º, por violação ao art. 5º, incisos IV, IX, XIII e XXXIX, da Constituição Federal, esta Coordenação-Geral posiciona-se de forma contrária ao projeto de lei, ressalvada a possibilidade de continuidade do processo legislativo no que tange aos demais artigos do projeto.

Desta forma, recomenda-se à Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos o encaminhamento desta posição à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, para adoção das medidas legislativas ao alcance do Poder Executivo para oferecer sua contribuição à tramitação do projeto junto a sua base parlamentar.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 28 de junho de 2024.

 

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Advogado da União

Coordenador-Geral Jurídico de Políticas Culturais

 


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