ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
COORDENAÇÃO-GERAL DE POLÍTICAS CULTURAIS

 

PARECER n. 00207/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

 

NUP: 01400.017736/2024-52

INTERESSADOS: COORDENAÇÃO DE ASSUNTOS PARLAMENTARES - CAP/MINC

ASSUNTOS: ATOS ADMINISTRATIVOS

 

 

I - Análise e manifestação sobre projeto de lei em fase de sanção presidencial.

II - Projeto de Lei nº 3.324, de 2019, de autoria do Deputado Fabio Reis, que confere o título de Capital Nacional da Vaquejada ao município de Lagarto.

III – Manifestação contrária à sanção, por violação ao interesse público.

 

 

1. O Ofício Circular Nº 144/2024/SALEG/SAJ/CC/PR (1838633), dirigido a este Ministério da Cultura e outros, solicita manifestação sobre o Projeto de Lei nº 3.324, de 2019, de autoria do Deputado Fábio Reis, que confere o título de Capital Nacional da Vaquejada ao município de Lagarto, no estado do Sergipe.

 

2. Os autos foram instruídos com os seguintes documentos: (a) Ofício Circular nº 144/2024/SALEG/SAJ/CC/PR (1838633); (b) o o projeto de Lei nº 3.324, de 2024 (1838627); e (c) o Ofício nº 351/2024/CAP/ASPAR/GM/MinC (1838634).

 

3. É o relatório. Passo à análise.

 

II. ANÁLISE JURÍDICA

 

4. O art. 131 da Constituição Federal dispõe sobre a Advocacia-Geral da União - AGU, responsável pelas atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo. E o art. 11, incisos I e V, da Lei Complementar n.º 73/1993 (Lei Orgânica da AGU)[1], estabeleceu a competência das Consultorias Jurídicas para assistir a autoridade assessorada no controle interno da constitucionalidade e legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados.

 

5. Destaco, desde já, que esse controle interno a ser realizado pelas Consultorias Jurídicas não deve se imiscuir em aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática dos atos administrativos (reservados à esfera discricionária do administrador público legalmente competente), tampouco examinar questões de natureza eminentemente técnica, administrativa e/ou financeira, nos termos do Enunciado nº 7 do Manual de Boas Práticas Consultivas da AGU[2].

 

6. Elaboradas essas considerações preliminares, passa-se à análise do PL autografado, que já percorreu o trâmite legislativo no âmbito do Congresso Nacional, tendo sido enviada para sanção ou veto do Presidente da República, nos termos do art. 66 da Constituição Federal.

 

7. O Projeto de Lei nº 3.324, de 2019, de autoria do Deputado Fábio Reis, confere o título de Capital Nacional da Vaquejada ao município de Lagarto, no estado do Sergipe.

 

8. A respeito da Vaquejada, Isabelle Almeida Vieira e Paulo Ricardo Lucietto Piccinini[3] esclarecem:

A Vaquejada, como manifestação cultural nordestina que remonta à antiga necessidade de os fazendeiros reunirem o gado, consiste em uma competição em que dois peões montados em cavalos distintos buscam a derrubada de um boi através de puxões em seu rabo, com o objetivo de acumular pontos caso consigam derrubá-lo dentro de uma área específi ca. Se obterem êxito e o animal ficar dentro da demarcação com as quatro patas para cima, o árbitro da competição proferirá ao público a expressão “valeu boi!”, significando que a dupla pontuará.
 A realização da referida atividade encontra tanto críticos quanto defensores. As associações protetoras dos animais são contrárias à prática da Vaquejada, alegando que os bois e cavalos envolvidos sofrem maus tratos e que, frequentemente, remanescem sequelas decorrentes das agressões e do estresse que passam. Por outro lado, os defensores da atividade sustentam que os animais não sofrem maus tratos e que a referida prática é centenária, fazendo parte do patrimônio cultural do povo nordestino. Não obstante, também alegam que se trata de um esporte e que os eventos envolvendo a sua prática geram inúmeros empregos e renda para a região do nordeste.
 

9. Os autores também discorrem sobre a controvérsia jurídica que envolve a Vaquejada, que se iniciou a partir da ADI nº 4.983/CE e culminou com a publicação da EC nº 96, de 2017:

O parágrafo primeiro, do artigo 215, da Constituição Federal, prevê que caberá ao Estado proteger as manifestações das culturas populares. Todavia, quando determinada manifestação cultural envolver a utilização de animais, necessário se faz verificar se essas práticas acabam por violar a proteção ao meio ambiente, mais precisamente no que diz respeito à vedação de submissão dos animais à crueldade, que também detém proteção constitucional (artigo 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Constituição Federal). Nessa hipótese, torna-se necessária a atuação estatal para resolver o impasse, a fim de que se possa analisar a constitucionalidade de tal prática.
A situação em abstrato acima mencionada se operou de forma concreta no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.983/CE, a qual foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República buscando a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 15.299, de 08 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a Vaquejada como prática desportiva e cultural. A referida ação foi julgada em 06 de outubro de 2016, no Plenário do Supremo Tribunal Federal, tendo como posição vitoriosa, por maioria apertada (6 votos a 5), o voto proferido pelo Ministro Relator Marco Aurélio, o qual foi acompanhado pelos Ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.
Em síntese, destaca-se que o argumento que prevaleceu entre os ministros foi o de que a Vaquejada, ainda que possa ser considerada uma manifestação cultural e esportiva típica do Estado do Ceará, consiste na prática de ato cruel para com os animais, em decorrência das inúmeras lesões sofridas pelos que dela participam (lesões confirmadas por laudos técnicos carreados aos autos), motivo pelo qual não deve prosperar em detrimento da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesse aspecto, a ADI nº 4.983/CE foi julgada procedente, para o fim de declarar inconstitucional a Lei nº 15.299, de 08 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará.
No entanto, ainda que a decisão tenha sido paradigmática e festejada pelos órgãos de proteção aos animais, a referida declaração de inconstitucionalidade fi cou restrita à lei cearense, ou seja, eventuais outras leis que tratassem sobre o tema iriam permanecer válidas. Nessa esteira, necessária seria a impugnação judicial específi ca de cada uma delas.
Ciente da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal e em oposição ao seu desfecho, em 1º de novembro de 2016, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal deliberou pela aprovação do Projeto de Lei nº 24/2016 da Câmara dos Deputados (posteriormente convertido na Lei Federal nº 13.364/2016), o qual visava à elevação do Rodeio e da Vaquejada à condição de manifestação da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Todavia, a edição da Lei Federal nº 13.364/2016 de forma isolada não teria força jurídica suficiente para superar o entendimento do STF em contrariedade à realização da Vaquejada, sendo necessário se operacionalizar a modificação do texto constitucional.
Nesse sentido, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº 304/2017 (posteriormente convertido na Emenda Constitucional nº 96/2017), para o fim de incluir o parágrafo 7º, no art. 225, da CF. No aludido parágrafo, foi positivado que não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que essas práticas sejam manifestações culturais registradas como bens de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro. Em outras palavras, a inclusão do referido parágrafo no texto constitucional em combinação com a Lei Federal nº 13.364/2016 tornou legítima e constitucional a prática da Vaquejada (e as práticas análogas, como, por exemplo, o Rodeio e o “Tiro de Laço”).

 

10. O art. 225 da Constituição Federal estabelece:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. 
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (grifamos)

 

11. O p. 7º do art. 225 da Constituição Federal dispõe expressamente que não se consideram cruéis as práticas desportivas que se enquadrem como manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial, integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

 

12. Neste ponto, importa ressaltar que a Vaquejada não possui registro perante o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

 

13. Assim, a Vaquejada não atende aos requisitos contidos no p. 7º do art. 225 da Constituição Federal - ou seja, do ponto de vista constitucional, ela não pode ser considerada como sendo uma prática isenta de crueldade com os animais.

 

14. A Lei nº 13.364, de 29 de novembro de 2016, reconhece a Vaquejada como sendo uma manifestação cultural nacional, elevada à condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro:

Art. 1º  Esta Lei reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais, eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro e dispõe sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal.        
Art. 2º  O rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, são reconhecidos como manifestações culturais nacionais e elevados à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro, enquanto atividades intrinsecamente ligadas à vida, à identidade, à ação e à memória de grupos formadores da sociedade brasileira.   

 

15. No entanto, há que se diferenciar o registro, ato administrativo de competência do IPHAN, do reconhecimento legislativo de uma expressão artística como sendo um bem de natureza imaterial por meio de ato legislativo, de competência do Congresso Nacional.

 

16. Isso porque somente o IPHAN é competente para proceder ao registro de bens culturais de natureza imaterial:

Art. 1o  Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro.
§ 1o  Esse registro se fará em um dos seguintes livros:
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.
Art. 3o  As propostas para registro, acompanhadas de sua documentação técnica, serão dirigidas ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, que as submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
§ 4o  Ultimada a instrução, o IPHAN emitirá parecer acerca da proposta de registro e enviará o processo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, para deliberação.
Art. 4o  O processo de registro, já instruído com as eventuais manifestações apresentadas, será levado à decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
Art. 5o  Em caso de decisão favorável do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, o bem será inscrito no livro correspondente e receberá o título de "Patrimônio Cultural do Brasil".

 

17. Neste sentido, verifica-se que a Lei nº 13.364, de 2016, apenas elevou a Vaquejada à condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, o que, como visto, não equivale ao registro de bem cultural imaterial perante um dos livros de registro previstos no art. 1º do Decreto nº 3.351, de 2000.

 

18. E, repito, ausente o registro, qualquer prática artística que envolva animais pode ser enquadrada como cruel aos animais, cabendo ao Poder Público vedar a sua prática.

 

19. Desta forma, entendo que a proposta de conferir ao município de Lagarto, no estado de Sergipe, o título de capital nacional da Vaquejada revela-se inconstitucional, uma vez que incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedando as práticas que possam submeter os animais a crueldade, nos termos previstos no art. 225, p. 1º, inciso VII da Constituição Federal.

 

20. A medida, caso aprovada, violaria o interesse público, pois não cabe ao Estado brasileiro enaltecer uma prática que constitucionalmente não pode ser considerada como não cruel aos animais, o que ocorreria no caso da concessão do título de capital nacional da Vaquejada a um município brasileiro.

 

III. CONCLUSÃO 

 

21. Diante do exposto, sem adentrar nos valores de conveniência e oportunidade, alheios ao crivo dessa Consultoria Jurídica, manifesto-me pela inconstitucionalidade do PL nº 3.324, de 2019, de autoria do Deputado Fábio Reais, que confere o título de Capital Nacional da Vaquejada ao município de Lagarto, no estado do Sergipe, por violação ao art. 225, p. 7º, da Constituição Federal.

 

22. Desta forma, a manifestação desta Conjur/MinC é contrária à sanção, tendo-se em vista o interesse público.

 

23. É o Parecer. 

 

Brasília, 11 de julho de 2024.

 

                      

LARISSA FERNANDES NOGUEIRA DA GAMA

ADVOGADA DA UNIÃO

Coordenadora-Geral de Políticas Culturais Substituta

 

 


[1]  Art. 11 - Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:

I - assessorar as autoridades indicadas no caput deste artigo;

(...)

V - assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados ou já efetivados, e daqueles oriundos de órgão ou entidade sob sua coordenação jurídica;

 

[2] A manifestação consultiva que adentrar questão jurídica com potencial de significativo reflexo em aspecto técnico deve conter justificativa da necessidade de fazê-lo, evitando-se posicionamentos conclusivos sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, podendo-se, porém, sobre estes emitir opinião ou formular recomendações, desde que enfatizando o caráter discricionário de seu acatamento.

[3] VIEIRA, Isabelle Almeida e PICCINI, Pedro Ricardo Lucietto. A Inconstitucionalidade da “Vaquejada” segundo o STF e o efeito Backlash no Congresso Nacional. Revista de Estudos Jurídicos do Superior Tribunal de Justiça, pgs 241/265. Disponivel em: file:///C:/Users/Dell/Downloads/16-Texto%20do%20artigo-311-1-10-20200813%20(4).pdf. Acesso em 11 julho 2024.


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