ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
GABINETE


PARECER n. 260/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO: 01400.045202/2013-63

ORIGEM: COORDENAÇÃO DE ASSUNTOS PARLAMENTARES - CAP/MINC

ASSUNTO: MANIFESTAÇÃO ACERCA DE PROJETO DE LEI EM FASE DE SANÇÃO PRESIDENCIAL

 

 

 

EMENTA:
I - Análise e manifestação acerca de projeto de lei em fase de sanção presidencial.
II -  Projeto de Lei nº 5979/2019, que “Altera a Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012, para incluir os eventos esportivos entre as áreas culturais financiadas pelo vale-cultura.”, de autoria do Deputado Federal Afonso Hamm.
​III. Pelo veto total, em razão da inconstitucionalidade do texto, ao violar os arts. 215 e 216 e, como argumento colateral, ao art. 7°, todos da Constitucional Federal. 

 

 

I. RELATÓRIO

 

Trata-se de expediente inaugurado a partir de provocação da Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República - SAJ-CC (OFÍCIO CIRCULAR Nº 162/2024/SALEG/SAJ/CC/PR (1890411)), dirigida a este Ministério da Cultura e outros Ministérios, em que solicita a manifestação sobre o Projeto de Lei nº nº 5.979, de 2019 (Projeto de Lei nº 6.974, de 2013, na Câmara dos Deputados), de autoria do Deputado Afonso Hamm, que “Altera a Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012, para incluir os eventos esportivos entre as áreas culturais financiadas pelo vale-cultura”.

 

Arremata a SAJ-CC o seguinte no Ofício supra:

 

Tendo em vista que a matéria já se encontra em fase de sanção, encareço seja encaminhado a esta Secretaria parecer do órgão técnico competente, com visto ministerial, com a indicação expressa e inequívoca do posicionamento, “favorável” e a intenção de referendar a lei, se assim desejar, ou “contrária” à sanção, ou, se for o caso, com a consignação de que a matéria está fora das suas competências legais, até o dia 22/08/24, conforme disposto no § 1º do caput do art. 49 do Decreto nº 12.002, de 22 de abril de 2024, sem prejuízo de antecipação tão logo seja realizada, no intuito de colaborar com os trâmites e a urgência que a matéria requer.

 

Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos deste Ministério redirecionou o pleito a esta Consultoria Jurídica e à Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural, por meio do Ofício-Circular nº 114/2024/CAP/ASPAR/GM/MinC (1890416), para emissão de parecer, juntamente com Anexo Autógrafo PL 5979/2019(6974/2013) (1890409) e Ofício CIRCULAR Nº 162/2024/SALEG/SAJ/CC/PR (1890411).

 

Nos autos há também os Formulários de Posicionamento de Proposição Legislativa da  Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural n° 0138150, de outubro de 2016, e de n° 1110144, de abril de 2023; os pareceres favoráveis da Comissão de Esporte (1823928) e da Comissão de Educação e Cultura (1823935); a Nota Técnica 22 (1895423) da Diretoria de Políticas para Trabalhadores da Cultura e o Formulário de posicionamento de Sanção ou Veto (1897120).

 

O inteiro teor do PL encontra-se acostado aos autos do processo SEI (1041726).

 

É o relatório. Passo à análise.

 

II. ANÁLISE JURÍDICA

 

Preliminarmente, impende tecer breve consideração sobre a competência desta Consultoria Jurídica para manifestação no processo in casu.

 

Sabe-se que a Constituição de 1988 prevê as funções essenciais à Justiça em seu Título IV, Capítulo IV; contemplando na Seção II a advocacia pública. Essa essencialidade à justiça deve ser entendida no sentido mais amplo que se possa atribuir à expressão, estando compreendidas no conceito de essencialidade todas as atividades de orientação, fiscalização e controle necessárias à defesa dos interesses protegidos pelo ordenamento jurídico.

 

O art. 131 da Constituição, ao instituir em nível constitucional a Advocacia-Geral da União - AGU, destacou como sua competência as atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, in verbis:

 

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
 

Nesta esteira, o art. 11, inciso I e V, da Lei Complementar n.º 73/1993 - Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União -, estabeleceu, no que concerne à atividade de consultoria ao Poder Executivo junto aos Ministérios, a competência das Consultorias Jurídicas para assistir a autoridade assessorada no controle interno da constitucionalidade e legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados. Nesse sentido, veja-se:

 

Art. 11 - Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:
I - assessorar as autoridades indicadas no caput deste artigo;
(...)
III - fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União;
(...)
V - assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados ou já efetivados, e daqueles oriundos de órgão ou entidade sob sua coordenação jurídica;
 

Ressalte-se, por oportuno, que o controle interno da legalidade realizado por este órgão jurídico não tem o condão de se imiscuir em aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática dos atos administrativos, que estão reservados à esfera discricionária do administrador público legalmente competente, tampouco examinar questões de natureza eminentemente técnica, administrativa e/ou financeira, conforme se extrai do Enunciado nº 7 do Manual de Boas Práticas Consultivas da Advocacia-Geral da União, que possui o seguinte teor:

 

A manifestação consultiva que adentrar questão jurídica com potencial de significativo reflexo em aspecto técnico deve conter justificativa da necessidade de fazê-lo, evitando-se posicionamentos conclusivos sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, podendo-se, porém, sobre estes emitir opinião ou formular recomendações, desde que enfatizando o caráter discricionário de seu acatamento.

 

Elaboradas essas considerações preliminares, passa-se à análise da proposta de PL, que já encerrou o trâmite legislativo, tendo sido enviado para sanção ou veto do Exmo. Presidente da República, nos termos do art. 66 da Constituição Federal.

 

A proposta visa alterar a Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012, para incluir os eventos esportivos entre as áreas culturais financiadas pelo vale-cultura.

 

Verifica-se o que segue na justificativa apresentada pelo Deputado Federal Afonso Hamm acerca do Projeto de Lei nº 6.974, de 2013, na Câmara dos Deputados (0116045) - atual Projeto de Lei nº 5.979, de 2019:

 
O esporte é uma das formas de expressão cultural. No Brasil, a Lei n.º 9.615, de 24 de março de 1998, que institui as normas gerais do desporto, determina, no art. 4º, § 2º, que a organização desportiva do País, fundada na liberdade de associação, integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerado de elevado interesse social. E o futebol é um dos mais fortes símbolos da identidade do nosso povo.
Na justificação do projeto que deu origem à Lei n.º 12.761, de 2012, defende-se que o Vale-Cultura tem a finalidade de “garantir, fomentar e ampliar o acesso dos cidadãos brasileiros aos bens e serviços culturais, estimulando a visita e o acesso a equipamentos e eventos artísticos e culturais, de forma a proporcionar à população o pleno exercício de seus direitos sociais à cultura”. Não há como exercitar plenamente esses direitos sem incluir o acesso a uma das mais reconhecidas e prestigiadas formas de expressão cultural brasileira: o futebol e demais competições esportivas.

 

O projeto em exame consiste, portanto, em incluir os eventos esportivos entre as áreas culturais financiadas pelo Vale-Cultura.

 

O Programa de Cultura do Trabalhador foi instituído pela Lei n° 12.761, de 27 de dezembro de 2012, regulamentado pelo Decreto 8.084, de 26 de agosto de 2013.

 

Consoante previsto no art. 1º, da Lei n° 12.761/12, o Programa de Cultura do Trabalhador, sob a gestão do Ministério da Cultura, destina-se a fornecer aos trabalhadores meios para o exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura.

 

​A Diretoria de Políticas para Trabalhadores da Cultura, que integra a Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural do Ministério da Cultura (SEFIC), por meio da NOTA TÉCNICA Nº 22/2024 (1895423), esclareceu que referido Programa é a única política federal de consumo cultural existente atualmente, que objetiva fomentar o ciclo da economia criativa, ligando produção ao consumo no setor cultural. Isso porque, além de fortalecer as cadeias produtivas da economia da cultura, com geração de trabalho, renda, profissionalização e formalização dos trabalhadores e incremento das empresas do setor, fomenta ações de responsabilidade social e corporativa por parte das empresas em relação aos seus empregados, por meio da formação de público e de plateia dos produtos e serviços culturais.

 

O art. 2°, da Lei n° 12.761/12, apresenta os objetivos do Programa, dentre os quais, o de possibilitar o acesso e a fruição dos produtos e serviços culturais, os quais foram definidos da seguinte forma:

 

Art. 2º O Programa de Cultura do Trabalhador tem os seguintes objetivos:
I - possibilitar o acesso e a fruição dos produtos e serviços culturais;
II - estimular a visitação a estabelecimentos culturais e artísticos; e
III - incentivar o acesso a eventos e espetáculos culturais e artísticos.
§ 1º Para os fins deste Programa, são definidos os serviços e produtos culturais da seguinte forma:
I - serviços culturais: atividades de cunho artístico e cultural fornecidas por pessoas jurídicas, cujas características se enquadrem nas áreas culturais previstas no § 2º ; e
II - produtos culturais: materiais de cunho artístico, cultural e informativo, produzidos em qualquer formato ou mídia por pessoas físicas ou jurídicas, cujas características se enquadrem nas áreas culturais previstas no § 2º .
§ 2º Consideram-se áreas culturais para fins do disposto nos incisos I e II do § 1º :
I - artes visuais;
II - artes cênicas;
III - audiovisual;
IV – literatura, humanidades e informação;
V - música; e
VI - patrimônio cultural.
(...) (grifos)

 

Portanto, restam evidentes os objetivos do Programa de Cultura do Trabalhador - Vale-Cultura de estimular e ampliar o acesso da população brasileira aos bens e serviços culturais, de forma a proporcionar à sociedade o pleno exercício de seus direitos culturais e sociais.

 

Nesse sentido, ao pretender incluir os eventos esportivos entre as áreas culturais financiadas pelo Vale-Cultura, a Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural faz as seguintes ponderações:

 

Sobre a concorrência de atribuições, o Programa de Cultura do Trabalhador é uma política do Ministério da Cultura que visa a promoção do acesso e consumo da produção cultural e artística, respaldada constitucionalmente, enquanto as atividades esportivas possuem legislações próprias criadas para fomentar as diversas manifestações desportivas e paradesportivas, como a Lei de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438/06). Portanto, não se conectam.

 

Além disso, a Secretaria explica que essa alteração acarretaria dificuldade operacional, tendo em vista a limitação de pessoal e estrutural para gerir o Programa, que aumentaria ainda mais com o acréscimo de eventos alheios à competência do quadro do Ministério da Cultura.

 

Ademais, no que diz respeito à concorrência de público, a área técnica do Ministério da Cultura​ também defende que referida inclusão ensejaria a concorrência entre os eventos esportivos e culturais, o que dificultaria o estímulo à cadeia produtiva da cultura e à economia criativa, além de dificultar a inclusão da fruição cultural na rotina dos trabalhadores de forma pedagógica. Isso porque, a formação do hábito do consumo cultural é algo que ainda está sendo construído, enquanto ao comparar com o futebol, por exemplo, é um esporte muito mais popularizado.

 

Em razão disso, o próprio público pagante e as cadeias produtivas são bem mais organizados nos eventos esportivos, o que não justificaria seu incremento em concorrência com o setor cultural, ensejando fuga de recursos da cadeia produtiva da cultura para os eventos esportivos.

 

Ainda, a SEFIC destaca que, ao invés de "ampliar direitos" para os trabalhadores que recebem o Vale-Cultura, haveria um esvaziamento de público do setor cultural e diminuição de estímulo a este, já tão atingido pelo pandemia, ao ter que dividir os beneficiados com eventos tão populares e consolidados quanto os esportivos. Logo, haveria evidente desvio de finalidade de estímulo à economia criativa e de formação de público, abrindo enorme lacuna no setor cultural. Ao final, conclui que, embora os eventos esportivos também sejam fundamentais, relacionam-se com outra pasta e outras políticas, de modo que o Vale-Cultura não teria sido criado para esse objetivo.

 

Pois bem.

 

Sabe-se que o veto presidencial poderá ocorrer por motivo de inconstitucionalidade (veto jurídico) ou contrariedade ao interesse público (veto político), nos termos do art. 66, § 1º da Constituição, senão, veja-se:

 
Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.
 
§ 1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto. (grifo nosso)

 

Além dos argumentos de mérito robustos apresentados na NOTA TÉCNICA Nº 22/2024 (1895423), com a sugestão de veto total PL 5979/2019, o que, por si só, já é suficiente para respaldar o veto presidencial por contrariedade ao interesse público, esta Consultoria Jurídica entende importante acrescentar argumentos jurídicos que corroboram com a impossibilidade de eventos esportivos serem incluídos entre as áreas culturais financiadas pelo Vale-Cultura, em razão da inconstitucionalidade dessa inclusão.

 

Inicialmente, é importante esclarecer que o​eventos esportivos, por si sós, no contexto de competição esportiva, não podem ser considerados fontes da cultura nacional. A sua inclusão representaria evidente desvio ao Programa de Cultura do Trabalhador-Vale-Cultura e seus objetivos.

 

Embora na justificativa do PL 5979/2019, o deputado Afonso Hamm tenha mencionado que a Lei n.º 9.615, de 24 de março de 1998, no art. 4º, § 2º, prevê que a organização desportiva do País, fundada na liberdade de associação, integra o patrimônio cultural brasileiro, verifica-se que referido parágrafo está relacionado ao caput do art. 4°, o qual trata do Sistema Brasileiro do Desporto.

 

Ocorre que a Lei n.º 9.615/1998 não define o que são organizações desportivas, mas tão somente que detêm liberdade de associação para integrar o Sistema Brasileiro do Desporto e são consideradas patrimônio cultural brasileiro.

 

Da mesma forma, o texto do Projeto de Lei também não definiu o que são eventos esportivos, o que aparenta ser competições esportivas organizadas por empresas, não englobando as organizações desportivas.

 

A expressão "eventos esportivos" trazida no PL de forma lacônica provoca uma atecnia, pois não distingue o que pode ou não ser considerado patrimônio cultural, o que demandaria, no mínimo, uma regulamentação.

 

Tendo em vista que, no atual momento do processo, não há possibilidade de alteração do texto do dispositivo, não se faz possível sancioná-lo na forma como está, pois ocasionará grande insegurança jurídica.

 

Ademais, como trazido também na justificativa do Deputado Hamm, ao fundamentar o projeto que deu origem à Lei n.º 12.761, de 2012, defendeu-se, à época, que o Vale-Cultura teria a finalidade de “garantir, fomentar e ampliar o acesso dos cidadãos brasileiros aos bens e serviços culturais, estimulando a visita e o acesso a equipamentos e eventos artísticos e culturais, de forma a proporcionar à população o pleno exercício de seus direitos sociais à cultura”.

 

Logo, o Programa foi instituído para dar concretude ao que dispõe o art. 215, da Constituição Federal, o qual prevê que "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais".

 

O art. 216, em continuação, prevê como patrimônio cultural brasileiro o seguinte:

 

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
 

Reiterando, a partir dos pontos já explicados acima, não é possível concluir que "eventos esportivos" podem ser considerados patrimônio cultural brasileiro, de modo que a inclusão desse inciso fere esse dispositivo.

 

Soma-se ainda o fato de que o § 3º, do art. 216, da Constituição dispõe que lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais, como é o caso da Lei n.º 12.761, de 2012.

 

Ao incluir eventos esportivos como área cultural a permitir a utilização do Vale-Cultura, está-se, na verdade, desnaturando o próprio instituto, o qual foi criado para garantir o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e, ao mesmo tempo, incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais.

 

Trata-se de instituto, portanto, criado especificamente para incentivar a cultura, nos termos do art. 216, §3°, da CF. Logo, o PL 5979/2019 viola frontalmente referido parágrafo.

 

Nesse sentido, a Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural também defendeu que a inclusão causaria o desvirtuamento do Vale-Cultura, dificultando o cumprimento pelo Estado dos preceitos do Art. 215, da Constituição Federal:

 

5. A inclusão dos esportes desviaria o público, ensejaria que o Programa de Cultura do Trabalhador desvie sua finalidade de estímulo à economia criativa, deformação de público e de fechar o ciclo entre produção e consumo, deixando esta lacuna aberta no setor cultural, em função da aplicação do Vale-Cultura não no objetivo para o qual fora criado, mas no setor dos esportes, o qual é fundamental, mas pertencente a outra pasta, outro sistema, outras políticas.

 

O §3° do Art. 215, da CF, dispõe acerca do Plano Nacional de Cultura (PNC), que prevê ações do poder público e seus objetivos:

 

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
(...)
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II produção, promoção e difusão de bens culturais;
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV democratização do acesso aos bens de cultura;
V valorização da diversidade étnica e regional. (grifos)
 

Referido Plano é um importante instrumento que orienta o poder público na formulação de políticas culturais, criado pela Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010, com objetivo de estabelecer um programa de ação para o Sistema Nacional de Cultura (SNC) de forma a orientar o poder público na formulação de políticas culturais[1]

 

O artigo 1º, da Lei nº 12.343/2010, define que o PNC tem uma duração de dez anos. Assim, como sua aprovação ocorreu em 2 de dezembro de 2010, sua vigência terminaria em 2 de dezembro de 2020. Entretanto, em 2021 e 2022, o PNC passou por duas prorrogações e sua vigência finda em dezembro de 2024.

Consoante mencionado na NOTA TÉCNICA Nº 22/2024, o Programa de Cultura do Trabalhador - Vale-Cultura constitui a meta nº 26 do Plano Nacional de Cultura, quando o Programa ainda não havia sido aprovado pelo Congresso Nacional, veja-se:

 

Meta 26) 12 milhões de trabalhadores beneficiados pelo Programa de Cultura do Trabalhador (Vale Cultura):
Esta meta refere-se à disseminação do Vale Cultura, benefício financeiro concedido pelas empresas tributadas com base no lucro real aos empregados que ganham até cinco salários mínimos, para que possam adquirir bens exclusivamente culturais como livros, DVDs, CDs, obras de artes visuais, instrumentos musicais, pagamento de mensalidade em cursos diversos, assinatura para serviços culturais na internet, assim como ingressos para cinemas, museus, apresentações de música, teatro, dança, circo, festas populares, entre outros.
​O Vale Cultura será instituído por lei, cujo projeto está em tramitação no Congresso Nacional (PL nº 5.798/09). O projeto de lei estabelece atualmente o valor de R$ 50,00 e tem como objetivo possibilitar meios de acesso e participação nas diversas atividades culturais desenvolvidas no país.
Situação atual: O projeto de lei que institui o Programa de Cultura do Trabalhador foi enviado ao Congresso Nacional em 2010 e, até setembro de 2011, encontrava-se em tramitação.
Indicador: Número de trabalhadores beneficiados pelo Programa de Cultura do Trabalhador (Vale Cultura).[2]

 

Portanto, verifica-se que o Programa de Cultura do Trabalhador - Vale-Cultura é expressamente previsto no PNC. Assim, tendo em vista que não é possível, a princípio o enquadramento dos eventos esportivos em nenhum dos incisos do §3° do art. 215, da Constituição Federal, não se faz possível inclui-los como nova área cultural beneficiada pelo Programa. Resta evidente, assim, a ausência de pertinência temática à previsão constitucional.

 

Reafirma-se o que foi detidamente explicado pela Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural: o Ministério do Esporte possui estruturas próprias de promoção de suas políticas, como a Lei de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438/06), a qual " (...) permite que recursos provenientes de renúncia fiscal (doações e patrocínios) sejam aplicados em projetos das diversas manifestações desportivas e paradesportivas, distribuídos por todo o território nacional."​

 

Ressalta-se que em momento algum está sendo retirada a importância dos esportes e seus eventos, os quais também são resguardados pela Constituição Federal. Apenas quer-se demonstrar que a sua inclusão como área cultural não se faz possível. Inclusive, o próprio Texto Constitucional tratou os dois setores como distintos: dentro do Capítulo III "Da educação, da cultura e do desporto", a cultura está prevista na Seção II e o desporto na Seção III.

 

Logo, a mera intenção de usar o Vale-Cultura para os eventos esportivos não é motivo suficiente para permitir essa inclusão. Trata-se de outro sistema, outras políticas específicas, outras prioridades. O setor esportivo deve ser sempre incentivado e fomentado , desde que por meio de mecanismo próprio.

 

Por fim, apenas como reforço argumentativo, não se pode esquecer que o Vale-Cultura é um benefício trabalhista, em que as próprias empresas arcam com a oferta do benefício, no valor de cinquenta reais, bastando estarem em situação regular junto à Receita Federal e se credenciarem neste Ministério.

 

Primeiro, percebe-se o quão reduzido é o montante disponibilizado aos trabalhadores para o exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura. Inclusive, NOTA TÉCNICA Nº 22/2024 explica que, por meio de Projeto de Lei, o MinC tem tentado majorar esse valor mensal, assim como renovar o incentivo fiscal disponibilizado até o exercício de 2017, a fim de retomar a força e os objetivos do Programa.

 

Logo, ao acrescentar outra área, ainda que fosse considerada fonte da cultura nacional, haveria evidente retrocesso desse benefício trabalhista, tendo em vista que, ao aumentar drasticamente a abrangência do Vale-Cultura e manter o mesmo valor do benefício, o montante seria incapaz de abarcar as áreas previstas, ainda mais com o alto custo para o acesso aos eventos esportivos.

 

Portanto, como argumento colateral, pode-se pensar em aplicar à situação em tela, até mesmo, o princípio de vedação ao retrocesso no âmbito do Direito do Trabalho, albergado pelo sistema constitucional brasileiro por intermédio do caput do art. 7º que, em sua parte final, estabelece que são direitos dos trabalhadores aqueles elencados em seus diversos incisos, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. 

 

 Acerca do princípio da vedação ao retrocesso social, oportuno transcrever a lição de J.J. Canotilho:

 
(...) a ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de contra-revolução social ou da evolução reacionária. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo.  
(...) O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (...) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ´anulação` pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.
 

Como dito, o benefício a ser usufruído já é tão reduzido que disponibilizar esse valor para os trabalhadores utilizarem nas áreas culturais e em eventos esportivos (caso fosse possível essa inclusão) culmina na inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 5979/2019 também por ofensa ao art. 7º, caput, da CF, ao promover um retrocesso na condição social do trabalhador.

 

Ante o exposto, esta Consultoria Jurídica entende que a inclusão do inciso VII, do §2°, do art. 2°, na Lei n° 12.761/12, mostra-se inconstitucional, em razão da violação aos arts. 215 e 216 e, como argumento colateral, ao art. 7°, todos da Constitucional Federal. 

 

Quanto aos aspectos estritamente formais, insta ponderar que ao Projeto de Lei se aplicam as regras encartadas pela Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição.

 

 

III. CONCLUSÃO

 

Diante do exposto, sem adentrar nos valores de conveniência e oportunidade, não sujeitos ao crivo desta CONJUR, opina-se pelo veto total do Projeto de Lei nº 5979/2019, que “Altera a Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012, para incluir os eventos esportivos entre as áreas culturais financiadas pelo vale-cultura”, em razão da inconstitucionalidade do texto, ao violar os arts. 215 e 216 e, como argumento colateral, ao art. 7°, todos da Constitucional Federal. 

 

É o Parecer.

 

À consideração superior, com sugestão de encaminhamento dos autos, via SEI, à ASPAR/MinC.

 

 

Brasília, 22 de agosto de 2024.

 

 

LORENA DE FÁTIMA SOUSA ARAÚJO NARCIZO

Procuradora da Fazenda Nacional

Consultora Jurídica Adjunta

​Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Cultura

 

 


Chave de acesso ao Processo: 68b6cec8 - https://supersapiens.agu.gov.br

Notas

  1. ^ Disponível em: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/plano-nacional-de-cultura/texto/o-que-e-o-pnc.
  2. ^ Disponível em: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/plano-nacional-de-cultura/texto/arquivos-pdf/PORTARIAN123DE13DEDEZEMBRODE2011.pdf.



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