ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
COORDENAÇÃO-GERAL DE PARCERIAS E COOPERAÇÃO FEDERATIVA
PARECER n. 00417/2024/CONJUR-MINC/CGU/AGU
NUP: 01400.028372/2024-36
INTERESSADOS: COORDENAÇÃO-GERAL DE TRANSFERÊNCIAS INTERFEDERATIVAS CGTIN/DFD/SECFC/GM/MINC
ASSUNTOS: POLÍTICA NACIONAL ALDIR BLANC - PNAB
EMENTA: Direito Administrativo. Política Nacional Aldir Blanc - PNAB. Lei n. 14.399/2022. Decreto n. 11.740/2023. Instrução Normativa MINC n. 19/2024. Prazo para adequação orçamentária. Autonomia dos Entes da Federação. Princípio da irretroatividade aplicável apenas às hipóteses delimitadas na Constituição Federal. Possibilidade de convalidação.
RELATÓRIO
Trata-se de consulta formulada pela Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural ("SEFIC") referente à adequação orçamentária dos recursos transferidos pela União aos entes públicos no âmbito da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura - PNAB.
Segundo informa o órgão consulente na Nota Técnica nº 9/2024 (SEI 1989150), a Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022 (Lei da PNAB), estabelece em seu art. 8º que os recursos transferidos pela União aos demais entes devem ser executados de maneira descentralizada, mediante repasses anuais aos entes federativos. O §1º do dispositivo, por sua vez, estabelece que os recursos recebidos que não tenham sido objeto de programação publicada pelos Municípios em até 180 dias deverão ser automaticamente revertidos ao fundo estadual de cultura do Estado ou ao órgão ou entidade estadual responsável pela gestão desses recursos. Os art. 7º e 8º do Decreto nº 11.740/2023 dispõem no mesmo sentido.
Diante desse cenário normativo, a SEFIC tomou conhecimento de dois municípios do Estado do Goiás que publicaram o ato de adequação orçamentária após o prazo de 180 dias, e incluíram nas respectivas Leis dispositivos que atribuem efeitos retroativos ao procedimento (SEI 1989141e 1989145).
De acordo com o órgão consulente, observa-se, nesses casos, a intenção de atribuir validade retroativa a atos administrativos publicados após o prazo regulamentar, de forma a cumprir extemporaneamente o disposto no art. 7º do Decreto n. 11.740/2023.
Assim, a SEFIC questiona esta Consultoria Jurídica sobre a legalidade da concessão de efeitos retroativos à adequação orçamentária prevista na PNAB.
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
A presente análise se dá com fundamento no art. 131 da Constituição Federal e no art. 11 da Lei Complementar nº 73/93, subtraindo-se do âmbito da competência institucional deste Órgão Jurídico, delimitada em lei, análises que importem em considerações de ordem técnica, financeira ou orçamentária.
A consulta em tela diz respeito à legalidade da concessão de efeitos retroativos à adequação orçamentária a que estão sujeitos os Municípios que receberam recursos da PNAB.
A Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022, que institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura - PNAB, estabelece em seu art. 8º que os recursos da Lei serão executados de maneira descentralizada, mediante repasses da União aos demais entes federativos:
Art. 8º Os recursos previstos no art. 6º desta Lei serão repassados aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, da seguinte forma:
I - 50% (cinquenta por cento) aos Estados e ao Distrito Federal, dos quais 20% (vinte por cento) de acordo com os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) e 80% (oitenta por cento) proporcionalmente à população;
II - 50% (cinquenta por cento) aos Municípios, dos quais 20% (vinte por cento) de acordo com os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e 80% (oitenta por cento) proporcionalmente à população.
§ 1º Os recursos recebidos que não tenham sido objeto de programação publicada pelos Municípios em até 180 (cento e oitenta) dias deverão ser automaticamente revertidos ao fundo estadual de cultura do Estado onde o Município se localiza ou ao órgão ou entidade estadual responsável pela gestão desses recursos.
§ 2º Eventuais recursos da União referentes às ações previstas nesta Lei que não forem destinados aos demais entes federativos em razão do não cumprimento de procedimentos e de prazos exigidos a Estados, ao Distrito Federal e a Municípios, inclusive o previsto no § 1º do art. 6º desta Lei, serão imediatamente redistribuídos pela União aos demais entes, segundo os mesmos critérios de partilha estabelecidos no caput deste artigo.
§ 3º Os Estados, na implementação das iniciativas previstas no art. 5º desta Lei, buscarão regulamentar formas de estimular a desconcentração territorial de ações, de iniciativas e de atividades apoiadas, beneficiando em especial os Municípios que não obtiverem recursos da União oriundos desta Lei.
§ 4º Nos editais e congêneres de que trata esta Lei, os entes federativos recebedores dos repasses da União deverão estabelecer políticas de ação afirmativa.
De acordo com o §1º do artigo recém-transcrito, os recursos recebidos pelos Municípios que não forem objeto de programação orçamentária no prazo de 180 dias deverão ser automaticamente revertidos ao fundo estadual de cultura do Estado onde o Município se localiza ou ao órgão ou entidade estadual responsável pela gestão desses recursos.
Os art. 7º e 8º do Decreto nº 11.740/2023 (que regulamenta a Lei) dispõem no mesmo sentido:
Art. 7º Todos os recursos repassados serão objeto de adequação orçamentária pelos entes federativos no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de recebimento dos recursos.
Art. 8º Os recursos recebidos que não tenham sido objeto de programação publicada pelos Municípios em até 180 (cento e oitenta) dias deverão ser automaticamente revertidos ao fundo estadual de cultura do Estado onde o Município se localiza ou ao órgão ou entidade estadual responsável pela gestão desses recursos.
A SEFIC informa, no entanto, que tomou conhecimento de dois municípios que publicaram o ato de adequação orçamentária após o prazo de 180 dias, por meio de Leis com efeitos retroativos (SEI 1989141 e 1989145), com o objetivo de cumprir extemporaneamente o disposto na Lei e no Decreto da PNAB.
A regularidade da situação interessa à SEFIC na medida em que, nos termos do art. 19 do Decreto n. 11.740/2023, o Ministério da Cultura tem, entre outras, as competências de acompanhar, monitorar e avaliar a execução dos recursos da PNAB e analisar e manifestar-se sobre os relatórios de gestão apresentados pelos entes federativos:
Art. 19. Para fins do disposto neste Decreto, compete ao Ministério da Cultura:
I - estabelecer as diretrizes complementares de aplicação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura por meio de atos específicos;
II - coordenar, com governança participativa, a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, incluídos os entes federativos e a sociedade civil;
III - elaborar materiais de orientação, prestar apoio, capacitação e assistência aos entes federativos para a execução dos recursos de que trata este Decreto e para a estruturação e o funcionamento do Sistema Nacional de Cultura;
IV - promover a parametrização, a padronização e a consonância entre instrumentos legais, administrativos e de gestão do fomento à cultura;
V - estabelecer critérios e prazos para submissão de planos de ação e PAARs e seus respectivos documentos, nos termos do disposto nos § 1º e § 3º do art. 3º;
VI - analisar os planos de ação;
VII - avaliar os PAARs;
VIII - repassar os recursos financeiros aos entes federativos;
IX - acompanhar, monitorar e avaliar a implementação dos planos de ação e dos PAARs;
X - realizar a redistribuição de eventuais saldos de recursos;
XI - solicitar relatórios e outros documentos necessários à comprovação da execução do plano de ação e do PAAR;
XII - analisar e manifestar-se sobre os relatórios de gestão apresentados pelos entes federativos;
XIII - consolidar e publicar informações sobre a execução da Lei nº 14.399, de 2022, para fins de transparência e acompanhamento pela sociedade civil e pelos demais atores; e
XIV - coordenar a implantação federativa de sistemas, inclusive digitais, com dados, informações e indicadores culturais referentes à execução dos recursos.
De acordo com o art. 17 do Decreto, uma vez encerrado o prazo de execução dos recursos, os entes recebedores deverão apresentar, por meio de plataforma oficial de transferências da União (Transferegov), relatórios de gestão, com documentos e informações sobre a execução dos recursos, de acordo com as orientações para o monitoramento, o acompanhamento e a avaliação de resultados editadas pelo Ministério da Cultura:
Art. 17. Encerrado o prazo de execução dos recursos, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios apresentarão, por meio de plataforma oficial de transferências da União, os relatórios de gestão, conforme modelo fornecido pelo Ministério da Cultura, com informações sobre a execução do PAAR, acompanhado dos seguintes documentos:
I - lista dos editais lançados pelo ente federativo, com os respectivos links de publicação em diário oficial;
II - publicação da lista dos contemplados em diário oficial, com nome ou razão social, número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas - CPF ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ, nome do projeto e valor do projeto; e
III - outros documentos solicitados pelo Ministério da Cultura relativos à execução dos recursos.
§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios terão o prazo até 31 de dezembro do ano subsequente ao da aprovação dos seus respectivos planos de ação para a execução dos recursos de que trata este Decreto.
§ 2º Compreende-se como execução de recursos de que trata o § 1º a liquidação e o pagamento ou o empenho e a inscrição em restos a pagar de compromissos orçamentários assumidos no ano de execução, nos termos do disposto no Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986.
§ 3º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios terão o prazo de doze meses, contado da data final de execução dos recursos de que trata o § 1º, para o envio das informações relativas ao relatório de gestão.
§ 4º O Ministério da Cultura poderá dispensar, integral ou parcialmente, a apresentação, pelos entes federativos, de documentos já apresentados ou mapeados durante o processo de execução.
§ 5º O Ministério da Cultura poderá, a qualquer tempo, requerer e estabelecer prazo para o envio de documentos e informações para averiguação de eventuais irregularidades e avaliação qualitativa das ações.
§ 6º O Ministério da Cultura editará comunicados e atos normativos com orientações para o monitoramento, o acompanhamento e a avaliação de resultados.
§ 7º Compete aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o estabelecimento de prazos para a execução e a avaliação das prestações de contas dos agentes culturais destinatários finais dos recursos, inclusive quanto à aplicação de eventuais ressarcimentos, penalidades e medidas compensatórias, observado o disposto no Decreto nº 11.453, de 2023.
§ 8º Os recursos provenientes de ressarcimentos, multas ou devoluções realizadas pelos agentes culturais destinatários finais dos recursos serão recolhidos pelo ente federativo responsável pela realização do chamamento público.
Com base nas competências que lhe foram atribuídas pelo Decreto n. 11.740/2023, o Ministério da Cultura editou a Instrução Normativa - IN MINC nº 19, de 15 de outubro de 2024, que estabelece procedimentos relativos ao monitoramento e à avaliação de resultados, à possibilidade de alteração do Plano Anual de Aplicação de Recursos - PAAR, à devolução de saldo remanescente e à coleta de dados e informações, no âmbito da execução da PNAB.
De acordo com a IN MINC n. 19/2024, o monitoramento das transferências da PNAB se dará em dois momentos: por meio de relatório de gestão parcial a ser entregue até 31 de dezembro de 2024 (art. 7º da IN), e por meio de relatório final de gestão, a ser apresentado até 31 de dezembro de 2025 (art. 9º da IN).
O art. 7º da IN MINC n. 19/2024 indica os documentos e informações que deverão constar do relatório de gestão parcial. Entre esses documentos, encontra-se a cópia do ato que comprova a realização de adequação orçamentária (inciso VI/a) ou o comprovante de reversão dos recursos, nos casos em que a adequação não seja publicada no prazo de 180 dias (parágrafo único):
Art. 7º Para fins de monitoramento, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão preencher o relatório de gestão parcial na Plataforma Transferegov até o dia 31 de dezembro de 2024, contendo os seguintes documentos e informações:
I - no campo "lista de percentuais de execução física das ações", informar percentual financeiro executado, justificando eventuais alterações e remanejamentos realizados até o momento do preenchimento;
II - no campo "resultados alcançados em cada meta", informar quais atividades já foram iniciadas ou concluídas até o momento do preenchimento;
III - no campo "descritivo", informar eventuais alterações realizadas no PAAR até o momento do preenchimento;
IV - no campo "contrapartida", é dispensado o preenchimento;
V - no campo "endereço eletrônico", informar o link do site oficial onde foram publicadas as informações sobre execução dos recursos;
VI - no campo "anexos", juntar os seguintes documentos:
a) cópia do ato que comprova a realização de adequação orçamentária;
b) cópia de editais de fomento, extratos dos editais de licitação, contratos e demais instrumentos jurídicos publicados até o momento do preenchimento;
c) declaração de destinação de recursos orçamentários próprios para a Cultura, em montante não inferior à média dos valores consignados nos últimos três exercícios, conforme modelo disponibilizado pelo MinC; e
d) caso tenha realizado alteração no PAAR, cópia de publicação de alteração em diário oficial, ou se inexistente, em outro meio oficial de comunicação.
Parágrafo único. Os municípios que não realizaram a adequação orçamentária no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após repasse inicial dos recursos devem preencher o relatório de gestão e encaminhar ao Ministério da Cultura, por meio da Plataforma Transferegov apenas o comprovante de reversão dos recursos aos respectivos estados, sendo dispensado o envio dos anexos de que trata o inciso VI do caput.
Por sua vez, o art. 9º da IN MINC n. 19/2024 estabelece os documentos e informações que deverão constar do relatório final de gestão, contendo as seguintes informações:
Art. 9º Os estados, o Distrito Federal e os municípios devem apresentar relatório final de gestão até o dia 31 de dezembro de 2025 diretamente na Plataforma Transferegov contendo:
I - no campo "lista de percentuais de execução física das ações", informar percentual financeiro executado, justificando eventuais alterações e remanejamentos;
II - no campo "resultados alcançados em cada meta", é dispensado o preenchimento, uma vez que os resultados serão avaliados por meio da apresentação dos documentos descritos nas alíneas "a" e "b" do inciso VI do caput;
III - no campo "descritivo", informar eventuais alterações realizadas no PAAR e demais informações que o ente federativo julgar pertinentes;
IV - no campo "contrapartida", é dispensado o preenchimento;
V - no campo "endereço eletrônico", informar o link do endereço eletrônico oficial onde foram publicadas as informações sobre execução dos recursos; e
VI - no campo "anexos", juntar os seguintes documentos:
a) lista dos editais lançados com os respectivos links de publicação em diário oficial e informações sobre a execução do percentual de operacionalização, em planilha conforme modelo disponibilizado pelo Ministério da Cultura;
b) lista dos contemplados nos editais de fomento ou nas contratações diretas, com nome ou razão social, número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas - CPF ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ, nome e valor do projeto e o link da publicação da lista dos contemplados em diário oficial, conforme modelo disponibilizado pelo Ministério da Cultura; e
c) comprovação de devolução do saldo remanescente, conforme orientações do Anexo.
§1º Em caso de inexistência de diário oficial no ente federativo, pode ser juntada comprovação de publicação dos documentos previstos nas alíneas "a" e "b" do inciso VI do caput em diário oficial de outro ente ou em outro meio oficial de comunicação.
§2º A apresentação do relatório de gestão final tem por objetivo a demonstração e a verificação de resultados da execução do objeto da política pública e, após seu envio, o Ministério da Cultura promoverá a análise técnica e financeira da execução dos recursos e emitirá parecer conclusivo sobre o cumprimento do objeto da política.
§3º O Ministério da Cultura poderá solicitar, a qualquer tempo, informações adicionais que permitam verificar a aplicação regular dos recursos repassados.
§ 4º O não envio do relatório de gestão final no prazo estabelecido no caput ensejará notificação para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresente o documento.
§5° O não atendimento à notificação de que trata o §4° ensejará a omissão no dever de prestar contas, reprovação do cumprimento do objeto da política, a instauração de tomada de contas especial, a inscrição do ente federativo nos cadastros de inadimplência e demais medidas necessárias.
Verifica-se que a comprovação da adequação orçamentária, especificamente, deve ser feita no momento em que se apresenta o relatório parcial, que tem por objetivo permitir ao Ministério da Cultura realizar o monitoramento do uso dos recursos da PNAB pelos entes recebedores após o primeiro ano de execução da Política. Nesse momento, ainda não se trata de analisar prestação de contas, mas de avaliar a adesão dos entes às normas que regem a PNAB e, eventualmente, indicar correções e redirecionamentos necessários à consecução dos objetivos da Política.
Com relação à necessidade de adequação orçamentária, observo que essa obrigação deriva inicialmente do art. 167, inciso V, da Constituição Federal, que dispõe:
Art. 167. São vedados:
(...)
V - a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes;
Por outro lado, a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF (Lei Complementar n. 101/2000), aplicável a todos os entes da federação, dispõe:
Art. 15. Serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos arts. 16 e 17.
Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de: (Vide ADI 6357)
I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;
II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.
§ 1o Para os fins desta Lei Complementar, considera-se:
I - adequada com a lei orçamentária anual, a despesa objeto de dotação específica e suficiente, ou que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício;
II - compatível com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, a despesa que se conforme com as diretrizes, objetivos, prioridades e metas previstos nesses instrumentos e não infrinja qualquer de suas disposições.
§ 2o A estimativa de que trata o inciso I do caput será acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.
(...)
Assim, ainda que a Lei e o Decreto da PNAB não exigissem a adequação orçamentária, os entes estariam obrigados nesse sentido pela Constituição e pela LRF. O que a Lei e o Decreto da PNAB estabeleceram foi o prazo para o cumprimento de tal obrigação e a consequência para o descumprimento.
Resta saber se o descumprimento do prazo estabelecido pela PNAB importa a nulidade do ato de adequação orçamentária exigido pela Constituição Federal e, portanto, a necessidade de devolução dos recursos correspondentes.
Nesse ponto, é preciso considerar, primeiramente, que o ato de adequação orçamentária é de responsabilidade do Ente Público que recebeu o recurso, ou seja, um Ente dotado de autonomia (art. 18 da CF) e sujeito à mesma legislação financeira que rege a União (Constituição Federal e Lei de Responsabilidade Fiscal).
Vale notar, ainda, que a adequação orçamentária depende de um ato do Poder Legislativo de cada ente (art. 22 da Lei n. 4.320/1964), consistente em uma Lei que autoriza a abertura de crédito adicional especial ao orçamento vigente, após confirmada a disponibilidade do recurso (no caso, da PNAB).
Na consulta em tela, relata-se que dois Municípios realizaram o ato de adequação orçamentária por meio de Leis publicadas após o prazo de 180 dias estabelecido pela PNAB, porém com efeitos retroativos a esse momento.
Sobre a retroatividade, pode-se dizer que esta é a condição ou qualidade de determinada norma jurídica de produzir efeitos sobre atos que ocorreram em momento anterior à sua vigência.
De acordo com a Enciclopédia Jurídica da PUC-SP [1]:
Em linhas gerais, a retroatividade é entendida como a qualidade do ato ou da ação que seja apta a surtir efeitos em acontecimentos que já sucederam. Retroagir implica modificar o que está feito. Assim, por interferir em atos e fatos pretéritos, a retroatividade é exceção no sistema jurídico vigente, podendo ocorrer apenas nos casos expressamente autorizados por lei.
Na prática de alguns atos, a retroatividade de seus efeitos é intrínseca, isto é, é da natureza do próprio ato. São eles a ratificação e a confirmação, pois, em ambos, estar-se-á praticando um novo ato, a fim de convalidar o anteriormente realizado.
Isto posto, a ideia de retroatividade remonta à possibilidade de alteração de acontecimentos pretéritos ou de seus efeitos, pelo que se faz uma exceção em nosso ordenamento jurídico.
Nesses termos, pode-se dizer que a retroatividade é sempre excepcional, podendo acontecer apenas em casos admitidos no ordenamento jurídico vigente. Em alguns casos, a retroatividade é intrínseca ao ato, como nos casos de convalidação, hipótese que também está sujeita a limites legais, como veremos adiante.
Dito isso, observo que a retroatividade das leis é vedada pela Constituição Federal apenas em três situações específicas, a saber:
a) O art. 5º, XXXVI, dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
b) O art. 5º, XL estabelece a irretroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu.
c) O art. 150, III/'a' estabelece a irretroatividade da lei tributária, vedando a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.
Assim, abordando a questão sob o ângulo contrário, pode-se dizer que a Constituição permite que a lei estabeleça efeitos retroativos, desde que obedecidas as limitações impostas pela própria Carta Magna.
O STF já se pronunciou sobre o tema e concluiu que, caso a atuação estatal não se revele tendente a macular nenhum dos valores constitucionais, inexiste vedação à edição de atos normativos retroativos. Esse entendimento foi consignado no voto do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a ADI 605 MC, in verbis:
O princípio da irretroatividade “somente” condiciona a atividade jurídica do estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do poder público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5º, XL), (b) ao status subjectionais do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III, a) e (c) a segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI). Na medida em que a retroprojeção normativa da lei “não” gere e “nem” produza os gravames referidos, nada impede que o Estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. As leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, “ordinariamente”, dispor para o futuro. O sistema jurídico-constitucional brasileiro, contudo, “não” assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade. (STF, ADI 605 MC, rel. Min. Celso de Mello, j. 23.10.1991.)
Por meio do referido julgado, o STF decidiu, portanto, que apesar de as leis disporem, em regra, para o futuro, o sistema jurídico-constitucional brasileiro não tem como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade, sendo admissível a retroatividade da Lei desde que esta não produza restrição gravosa: (a) ao direito de liberdade da pessoa (CF, art. 5º, XL), (b) aos direitos do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III/a) e (c) à segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI).
Voltando ao caso em análise, e com base no que foi dito acima, percebe-se que a retroatividade em si não é um problema, desde que respeitados os limites constitucionais. Com efeito, a adequação orçamentária (autorização legislativa para abertura de crédito adicional especial) não é questão penal ou tributária, e tampouco interfere na segurança jurídica nas relações sociais, já que a retroatividade da autorização não alcançaria direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada.
Assim, tendo em vista a possibilidade de edição de leis com efeitos retroativos (desde que respeitados os limites da Constituição Federal), considerando a autonomia dos Entes da Federação, e considerando, ainda, os princípios da razoabilidade e da eficiência, pode-se concluir que não cabe ao Ministério da Cultura determinar como se dará o ato de adequação orçamentária a ser realizado em procedimento conjunto pelo Executivo e Legislativo das demais esferas.
Por outro lado, ainda que se defenda a tese da existência de irregularidade na adequação orçamentária extemporânea, há que se perquirir se tal irregularidade é suficiente para decretar a nulidade do ato.
Com efeito, quando a Administração Pública pratica, por meio de seus agentes, atos administrativos viciados, há dois caminhos a serem seguidos em busca da boa prática administrativa: a convalidação, com o aproveitamento dos atos que contenham vícios superáveis, e correção dos seus defeitos; ou a anulação, situação em que a convalidação não será possível.
A convalidação busca materializar os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da boa-fé das relações com os administrados, bem como da presunção de validade e legitimidade dos atos administrativos, fazendo-se a ponderação entre eles, quando necessário.
O instituto está previsto no art. 55 da Lei nº 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo), que assim preconiza:
Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.
É, desta forma, o procedimento pelo qual a Administração produz um novo ato, com efeitos ex tunc (ou seja, retroativos), corrigindo um anterior praticado com defeito. A contrario sensu, se um ato não puder ser reproduzido validamente na atualidade, não será passível de convalidação [2]. Nesse sentido, confira-se o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, verbis:
A convalidação é o suprimento da invalidade de um ato com efeitos retroativos. Este suprimento pode derivar de um ato da Administração ou de um ato do particular afetado pelo provimento viciado.
Quando promana da Administração, esta corrige o defeito do primeiro ato mediante um segundo ato, o qual produz de forma consonante com o Direito aquilo que dantes fora efetuado de modo dissonante com o Direito. Mas com uma particularidade: seu alcance específico consiste precisamente em ter efeito retroativo. O ato convalidador remete-se ao ato inválido para legitimar seus efeitos pretéritos. A providência corretamente tomada no presente tem o condão de valer para o passado. [3]
Assim, o ato convalidador remete-se ao ato inválido para legitimar seus efeitos pretéritos. A providência corretamente tomada tem o condão de valer para o passado. É claro, pois, que só pode haver convalidação quando o ato possa ser produzido validamente no presente. Importa que o vício não seja de molde a impedir reprodução válida do ato. "Só são convalidáveis atos que podem ser legitimamente produzidos” [4] .
A doutrina tem entendido que são defeitos sanáveis e, portanto, convalidáveis, os atos que possuam vícios de competência, de forma e de procedimento. Por outro lado, são considerados defeitos insanáveis, impedindo a convalidação do ato, aqueles relativos ao motivo, à finalidade e ao objeto.
No caso em tela, não se vislumbram vícios relacionados ao motivo, à finalidade e ao objeto. Todavia, há vício de forma e procedimento, na medida em que o ato de adequação orçamentária deveria ter ocorrido em prazo inferior àquele em que efetivamente ocorreu.
Nesse sentido, nos termos do art. 55 da Lei nº 9.784/1999, o vício identificado pode ser convalidado, desde que haja manifestação de que a correção do vício não acarretará lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros.
Com efeito, o que aparentemente ocorreu nos casos que deram origem à presente consulta foi que o Poder Legislativo Municipal, ciente do prazo extrapolado para adequação orçamentária, fez retroagir os efeitos da Lei à data em que esta deveria ter sido aprovada, operando uma espécie de convalidação dos atos pretéritos, nos termos da Lei n. 9.784/1999.
Quanto à questão da existência de lesão ao interesse público ou prejuízo a terceiros, vale notar que a reversão dos recursos ao Estado (nos termos do art. 8º, §1º, da Lei da PNAB) visa evitar que o recurso eventualmente não gasto por um Município se perca, podendo ser destinado a outro Município do mesmo Estado que esteja mais empenhado na execução da PNAB.
Nesse sentido, a adequação orçamentária com efeitos retroativos indica a clara intenção do Município de concretizar os objetivos da PNAB, não havendo lesão ao interesse público ou prejuízo a terceiros, mas apenas a busca da eficiência, na medida em que, se repassado a outro ente, o procedimento demandaria ainda mais tempo e recursos públicos para reverter em efeitos concretos, nos termos da Lei n. 14.399/2022.
Portanto, desde que não se verifique lesão ao interesse público ou prejuízo a terceiros, não parece razoável rejeitar os relatórios parciais apresentados pelos entes quando a adequação orçamentária se deu por meio de Lei com efeitos retroativos.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, e ressalvados os aspectos técnicos de conveniência e de oportunidade não sujeitos ao crivo desta Consultoria Jurídica, conclui-se que, tendo em vista a possibilidade de edição de leis com efeitos retroativos (desde que respeitados os limites da Constituição Federal), considerando a autonomia dos entes federativos, e considerando, ainda, os princípios da razoabilidade e da eficiência, não cabe ao Ministério da Cultura determinar como se dará a adequação orçamentária, a ser realizada em procedimento conjunto pelo Executivo e Legislativo das demais esferas da Federação.
Assim, desde que não se verifique lesão ao interesse público ou prejuízo a terceiros, não parece razoável rejeitar os relatórios parciais apresentados pelos entes quando a adequação orçamentária se deu por meio de Lei com efeitos retroativos.
Isso posto, submeto o presente processo à consideração superior, sugerindo que, após aprovação, os autos sejam encaminhados à Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural, para as providências cabíveis.
DANIELA GUIMARÃES GOULART
Advogada da União
Coordenadora-Geral
Notas:
[1] https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/288/edicao-1/retroatividade#:~:text=A%20retroatividade%20implica%20a%20a%C3%A7%C3%A3o,veiculadas%20no%20C%C3%B3digo%20Tribut%C3%A1rio%20Nacional.
[2] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Convalidação: uma célere visão da prática. Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano 6, n. 60, fev. 2006. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=33862. Acesso em: 12 dez. 2012.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 430.
[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 338.
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