ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA
COORDENAÇÃO-GERAL DE ASSUNTOS DE ENERGIA ELÉTRICA
ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS, BLOCO "U", 9º ANDAR, SALA 935, CEP: 70065-900, BRASÍLIA/DF, FONE: (61) 2032-5252
INFORMAÇÃO JURÍDICA REFERENCIAL nº 00001/2025/CONJUR-MME/CGU/AGU
NUP: 00405.031448/2021-55 (CORESP2R /PRU2R).
INTERESSADO: Procuradoria-Geral da União - PGU.
ASSUNTO: Emissão de Informação Jurídica Referencial - IJR. Casos Idênticos e recorrentes. “CFURH”.
Ementa:
I. Informação Jurídica Referencial - IJR. Processo que lhe deu origem. NUP 00405.031448/2021-55.
II. Subsídios, de fato e de direito, solicitados pela PGU para a defesa da União em ações judiciais em que se discute a tese de que o § 1º do art. 1º do Decreto nº 3.739/2001 seria ilegal, por supostamente deduzir da base de cálculo da CFURH encargos setoriais (vinculados às atividades de geração e de transmissão de energia elétrica) não autorizados pela legislação de regência (Lei nº 7.990/1989), em abuso do poder regulamentar.
III. Informações obrigatórias, conforme art. 9º, inciso I, da Portaria CGU/AGU nº 5/2022.
IV. Fundamentos jurídicos apresentados nesta IJR. Dispensa de análise individualizada pela CONJUR/MME para casos idênticos e recorrentes. Ciência aos órgãos de destino (PGU e seus órgãos de execução).
V. Validade: 02 (dois) anos, a partir de sua aprovação.
Senhora Coordenadora-Geral para Assuntos de Energia,
I. RELATÓRIO
Trata-se de expediente formulado pela Procuradoria-Geral da União - PGU, nos termos do Pedido de Providências nº 00006/2024/PGU/AGU (seq. 45), por meio do qual solicita a apresentação de subsídios referenciais atualizados para auxiliar a atuação das Unidades de Contencioso da AGU, bem como subsidiar a Coordenação Nacional de Infraestrutura e Assuntos Federativo da Procuradoria-Geral da União (PGU) no mister de orientar a atuação de representação judicial da União nas demandas judiciais relacionadas à Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos - CFURH.
Sobre o assunto, após a emissão da Nota Jurídica nº 00822/2021/PGU/AGU (Seq. 1), a PGU determinou a abertura e a instrução deste expediente, tendo sido solicitado da Consultoria Jurídica junto ao Ministério de Minas e Energia - Conjur/MME a formalização de manifestação referencial, com a indicação de interesse jurídico nas demandas citadas, possibilitando a atuação das unidades de execução daquele órgão superior, notadamente da Coordenação Regional de Serviço Público da 1ª Região.
A Conjur/MME, através das Informações nº 00219/2021/CONJUR-MME/CGU/AGU (seq. 3) - antes do advento da Portaria Normativa CGU/AGU nº 05/2022 -, registrou o entendimento de que nas ações em que a União é intimada a se manifestar, deve haver o ingresso do Ente Central nos feitos, por entender que o mérito gira em torno da alegação de abuso de poder regulamentar, bem ainda por considerar os inúmeros impactos setoriais, especialmente, aos consumidores de energia elétrica.
Nesta oportunidade, a PGU solicita da Conjur/MME a apresentação de subsídios referenciais atualizados sobre o tema, inclusive indicando, se for o caso, impactos econômicos e administrativos de decisões desfavoráveis que venham a ser proferidas.
É o relatório necessário dos fatos.
II. PRELIMINAR: A INFORMAÇÃO JURÍDICA REFERENCIAL
II.1. Do Cabimento da Informação Jurídica Referencial no caso em epígrafe
A elaboração de “Informação Jurídica Referencial - IJR” depende da comprovação, sob pena de invalidade, de dois requisitos indispensáveis que estão previstas no art. 8º, § 2º, da Portaria Normativa AGU/CGU nº 05, de 2022:
“Art. 8º Informação Jurídica Referencial é a manifestação jurídica produzida para padronizar a prestação de subsídios para a defesa da União ou de autoridade pública.
§ 1º A IJR objetiva otimizar a tramitação dos pedidos e a prestação de subsídios no âmbito das Consultorias e Assessorias Jurídicas da Administração Direta no Distrito Federal, a partir da fixação de tese jurídica que possa ser utilizada uniformemente pelos órgãos de execução da Procuradoria Geral da União.
§ 2º É requisito para a elaboração da IJR a efetiva ou potencial existência de pedido de subsídios de matéria idêntica e recorrente, que possa justificadamente impactar a atuação do órgão consultivo ou a celeridade dos serviços administrativos.” (grifou-se e sublinhou-se)
No caso em tela, é patente a existência de pedidos recorrentes de subsídios que tratam da matéria objeto da presente manifestação. Aliás, a PF/ANEEL trouxe aos autos (seqs. 56/57) um vasto levantamento das ações judiciais sobre a matéria.
Tendo como referência essa documentação, pode-se afirmar que se formou um grande volume de processos administrativos voltados a apresentar subsídios para a defesa da União em juízo em casos envolvendo o cálculo e o efetivo repasse da CFURH aos Municípios que tenham áreas alagadas por reservatórios de associados a hidrelétricas ou que possuam instalações destinadas à produção de energia elétrica, com base no art. 2º da Lei nº 7.990/1989 e do art. 1º, § 1º, do Decreto nº 3.739/2001.
Esse volume expressivo, além representar objetivamente um número significativo de processos judiciais que tramitam na Coordenação-Geral para Assuntos de Energia – CGAE, impacta também na atuação consultiva, por obrigar a emissão de informações jurídicas individualizadas cada vez que um novo feito dessa natureza aporta neste órgão de assessoramento jurídico.
Ademais, todos os casos trazidos a esta Consultoria possuem o mesmo contexto fático e jurídico: os Municípios que tenham áreas alagadas por reservatórios de associados a hidrelétricas ou que possuam instalações destinadas à produção de energia elétrica alegam, com base no art. 3º da Lei nº 7.990/1989, que o art. 1º, § 1º, do Decreto nº 3.739/2001 excede ao excluir da base de cálculo rubricas que as municipalidades entendem devidas, incorrendo, nesse sentir, em abuso de poder regulamentar.
Tal fato implica dedicação de trabalho desta Consultoria, tanto no aspecto jurídico quanto no administrativo, cujo mérito da demanda judicial é idêntico, podendo ser tratado de forma uniforme, mormente considerando o fato de que a CGAE encontra-se, atualmente, com apenas 03 (três) Advogados da União, além de auxílios episódicos de outras especializadas. A atividade jurídica exercida em tais casos se confina a prestar os mesmos subsídios repetidamente em todas as ações judiciais, já que estas apresentam praticamente os mesmos pedidos e questionamentos, pois derivados dos mesmos fatos e fundamentos jurídicos[1].
Esta IJR, portanto, constituirá em orientação contendo subsídios jurídicos para a defesa da União, em juízo, nas ações judiciais que discutirem a tese de que o § 1º do art. 1º do Decreto nº 3.739/2001 seria ilegal, por deduzir da base de cálculo da CFURH encargos (vinculados às atividades de geração e de transmissão de energia elétrica) além daqueles previstos pela legislação de regência (Lei nº 7.990/1989), observando-se as orientações da Portaria Normativa CGU/AGU nº 05/2022, especialmente os arts. 8º a 12.
Feitas tais considerações, passa-se à efetiva análise jurídico-formal do procedimento.
III. SUBSÍDIOS PARA A ELABORAÇÃO DA DEFESA DA UNIÃO
III.1. PRELIMINARES
III.1.1. Ilegitimidade Ativa do Ente Municipal para Questionar a Base de Cálculo da CFURH
A competência relativa à instituição e arrecadação da Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos - CFURH para fins de energia elétrica é exclusivamente atribuída à União, único sujeito ativo da exação e, portanto, única legitimada para questionar judicialmente eventuais pagamentos a menor por parte dos sujeitos passivos.
O produto da arrecadação da CFURH deve ser compartilhado com os demais entes. Trata-se, aí, de receita transferida. Essa transferência de receita não transfere a tais entes, porém, a legitimidade para discutir os atos relacionados à forma de cobrança, tampouco ao montante recolhido a título de contribuição.
Deste modo, a receita oriunda da CFURH, tem origem na exploração do patrimônio público da União, classificando-se como receita própria deste ente, de natureza originária (patrimonial). Para Estados e Municípios, trata-se de receita transferida (a qual continua tendo natureza originária e não tributária), que possui origem no preço cobrado pela União pela exploração de seu patrimônio (receita originária).
Fica evidente a existência de duas relações jurídicas distintas: uma entre o ente privado (sujeito passivo da exação) e a União (sujeito ativo da exação); outra entre a União (titular do bem e da competência) e os Municípios (entes que recebem parte do produto da arrecadação por força do federalismo fiscal patrimonial). Veja-se esquematicamente essa diferença na figura abaixo:
A repartição de parte da receita da CFURH aos entes municipais, não confere a estes quaisquer direitos subjetivos de questionar os valores arrecadados pela União ou os critérios adotados pela regra matriz de incidência da exação patrimonial. Tais entes não fazem parte da relação jurídica relativa à cobrança da CFURH, que compete e diz respeito ao interesse exclusivo da União.
No caso da presente ação, questiona o município a base de cálculo utilizada pela União para a cobrança da CFURH da concessionária que explora o potencial de energia hidrelétrica. Observa-se, claramente, que tal demanda insere-se na Relação Jurídica 1 acima identificada a qual tem como partes EXCLUSIVAMENTE, a União (sujeito ativo) e a concessionária (sujeito passivo).
Ora, o Município não é sujeito ativo dessa cobrança, tampouco é titular do patrimônio explorado. O Cógido de Processo Civil - CPC é claro, no sentido de que:
“Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.
Art. 18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico.”
No caso dos autos, repita-se, tratando-se de exação patrimonial cujo sujeito ativo é a União, não há como se admitir qualquer legitimidade ao Requerente para questionar a base de cálculo da cobrança. Diante do exposto, deve ser indeferida a petição inicial, por força do disposto no art. 330, II do CPC, tendo em vista a ilegitimidade do Requerente para a propositura da ação.
II.1.2. Necessidade de formação do Litisconsórcio Passivo Necessário
Ante de adentrar ao mérito propriamente dito, há de se destacar que a obrigatoriedade da formação do litisconsórcio passivo necessário, cujo processo não pode prosseguir e o magistrado não pode julgar validamente, decorre de 02 (duas) razões: da imposição da lei ou da relação jurídica de direito material, consoante previsto no art. 114 do NCPC:
“Art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.”
Fredie Didier, ao analisar o mencionado dispositivo legal, afirma que “(...) há litisconsórcio necessário quando a sua formação for obrigatória”, estando esse ligado “à indispensabilidade da integração do polo da relação processual por todos os sujeitos, seja por conta da própria natureza da relação jurídica discutida (unitariedade), seja por imperativo legal”[2].
No caso, pela natureza da relação jurídica de direito material posta em juízo, é necessário que o titular da outorga de concessão ou autorização com o Poder Público para a exploração do potencial hidráulico, que é o responsável pelo pagamento da compensação financeira questionada, integre o polo passivo, sendo diretamente a atingido, conforme art. 17 da Lei nº 9.649/1998:
“Art. 17. A compensação financeira pela utilização de recursos hídricos de que trata a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989, será de 7% (sete por cento) sobre o valor da energia elétrica produzida, a ser paga por titular de concessão ou autorização para exploração de potencial hidráulico aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios em cujos territórios se localizarem instalações destinadas à produção de energia elétrica, ou que tenham áreas invadidas por águas dos respectivos reservatórios, e a órgãos da administração direta da União.”
Pelo que se percebe, eventual liminar ou sentença de procedência repercutirá financeiramente na esfera jurídica dos geradores, entes responsáveis por suportar o pagamento da compensação financeira e, por consequência, eventual diferença entre o valor atual da compensação e aquele porventura determinado por decisão judicial favorável a um Município Requerente.
Nesse diapasão, registre-se que a ausência dos geradores no polo passivo inviabilizará a eficácia da sentença, que não pode atingir terceiros, conforme art. 506 do Código de Processo Civil, verbis:
“Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.”
Face ao exposto, requer seja providenciada a intimação do Requerente para que providencie a inclusão do gerador porventura responsável pelo pagamento da CFURH àquela municipalidade, na qualidade de litisconsorte passivo necessário, sob pena de extinção do processo, nos termos do art. 115, parágrafo único, do NCPC.
II.1.3. Vício de representação processual nas ações movidas por Municípios a partir de escritórios privados
Vale destacar a existência de vício de representação em demandas judiciais relacionadas à CFURH, movidas por Municípios a partir de escritórios privados. Nesta oportunidade, rememora-se o Despacho nº 00044/2025/CONJUR-MME/CGU/AGU[3], de lavra da Advogado da União GISELLI DOS SANTOS, que explica a questão muito bem, a saber:
“2. Nesta oportunidade, acrescento tão somente que analisando-se o presente processual virtual, verifica-se que se trata de ação movida por ente federativo representado por escritório particular de advocacia, e não por "Procuradoria Municipal", que desfruta de mandato ex lege.
3. Assim, para além da procuração juntada aos autos e subscrita pelo Prefeito, faz-se necessária a apresentação em Juízo de procedimento licitatório (seja sua ocorrência, seja sua dispensa ou inexigibilidade) a fim de verificar a regularidade da representação do Município, uma vez que, nos termos do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal, a Administração Pública direta dos Municípios somente pode contratar serviços mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, ressalvados os casos especificados na legislação (como são as hipóteses de dispensa e inexigibilidade).
4. E não se trata de filigrana. Pelo contrário. A falta de prévio procedimento administrativo licitatório no Município para fins de contratação do escritório de advocacia desagua em nulidade absoluta da representação processual do ente federativo (capacidade postulatória), e, via de consequência, na inexistência de pressuposto de constituição e validade do processo.
5. Dessa forma, nos termos do art. 76 do Código de Processo Civil, verificada a irregularidade da representação da parte, deve o juiz suspender o processo e designar prazo razoável para que seja sanado o vício e, se acaso descumprida a determinação, deve o processo ser extinto, sem julgamento de mérito, conforme inciso IV do art. 485 do Código de Processo Civil, como tem ocorrido em ações envolvendo FUNDEB propostas perante a Seção Judiciária do Distrito Federal (sentenças em anexo).
6. Acrescente-se ainda o recentíssimo julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, do recurso extraordinário 656.558 (tema 309 da repercussão geral), em que foi decidido que é possível haver contratação de serviços advocatícios pela Administração Pública "por inexigibilidade de licitação", nos seguintes termos:
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou prejudicado o RE 610.523/SP. Por maioria, apreciando o tema 309 da repercussão geral, deu provimento ao RE nº 656.558/SP, a fim de se restabelecer a decisão em que se julgou improcedente a ação, e fixou a seguinte tese: "a) O dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), de modo que é inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos arts. 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária. b) São constitucionais os arts. 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993, desde de que interpretados no sentido de que a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar: (i) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e (ii) cobrança de preço compatível com a responsabilidade profissional exigida pelo caso, observado, também, o valor médio cobrado pelo escritório de advocacia contratado em situações similares anteriores." Tudo nos termos do voto aditado do Relator, vencidos parcialmente os Ministros Luís Roberto Barroso (Presidente), Edson Fachin, André Mendonça e Cármen Lúcia. Plenário, Sessão Virtual de 18.10.2024 a 25.10.2024.
Em outras palavras: o STF inegavelmente entende que deve haver um procedimento administrativo FORMAL que consubstancie - ainda que seja - a contratação por inexigibilidade!”
II.2. PREJUDICIAL AO MÉRITO: Ocorrência da prescrição quinquenal
Em respeito ao princípio da concentração, requer sejam afastados todos os valores que já tenham sido alcançados pela prescrição quinquenal, tendo como marco o ajuizamento da presente demanda.
II.3. DO MÉRITO PROPRIAMENTE DITO:
II.3.1. Compreensão do Litígio. Regime Jurídico aplicável à Cobrança da CFURH pela União.
A CFURH foi instituída pela Constituição Federal, tratando-se de um percentual que as concessionárias de geração hidrelétrica recolhem pelo uso dos potenciais hídricos de geração de energia, que são bens públicos de titularidade da União. Esta exação, de natureza não-tributária, é cobrada pela União como preço pela exploração de bem de sua titularidade por particulares.
Uma parte da receita arrecadada pela União é transferida aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios, com base no art. 20, inciso VIII, e § 1º, da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos, verbis:
“Art. 20 – São Bens da União:
[. . .]
§1º É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.” (grifou-se e sublinhou-se)
A integração legislativa necessária, e muitas vezes desconsiderada, adveio com a edição das Leis nº 7.990/1989; nº 8.001/1990; nº 9.648/1998; nº 9.993/2000; nº 9.984/2000 e nº 10.195/2001. A Lei nº 7.990/1989 assim dispôs:
“Art. 1º O aproveitamento de recursos hídricos, para fins de geração de energia elétrica e dos recursos minerais, por quaisquer dos regimes previstos em lei, ensejará compensação financeira aos Estados, Distrito Federal e Municípios, a ser calculada, distribuída e aplicada na forma estabelecida nesta Lei.” (grifou-se e sublinhou-se)
Percebe-se que a compensação financeira se dá em razão da exploração e aproveitamento dos recursos hídricos para geração de energia elétrica e, com base nesta premissa, os contornos para o cálculo da referida compensação serão formados. A Lei nº 7.990/1989 também previu a forma de cálculo da cobrança, atribuindo, expressamente, competência ao DNAEE (atual ANEEL) para fixar a TAR, que é levada em consideração para a definição do montante da compensação financeira, veja-se:
“Art. 3º O valor da compensação financeira corresponderá a um fator percentual do valor da energia constante da fatura, excluídos os tributos e empréstimos compulsórios.
[. . .]
§ 2º Compete ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica - DNAEE, fixar, mensalmente, com base nas tarifas de suprimento vigentes, uma tarifa atualizada de referência, para efeito de aplicação das compensações financeiras, de maneira uniforme e equalizada, sobre toda a hidreletricidade produzida no País.
[. . .]
Art. 10. O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo máximo de 90 (noventa) dias da data de sua publicação.” (grifou-se e sublinhou-se)
Por sua vez, a Lei nº 9.648/1998, editada anos após o advento da Lei nº 7.990/1989, define a base de cálculo da CFURH, como sendo o valor da energia produzida, nos termos do art. 17 reproduzido a seguir, in verbis:
“Art. 17. A compensação financeira pela utilização de recursos hídricos de que trata a Lei no 7.990, de 28 de dezembro de 1989, será de 7% (sete por cento) sobre o valor da energia elétrica produzida, a ser paga por titular de concessão ou autorização para exploração de potencial hidráulico aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios em cujos territórios se localizarem instalações destinadas à produção de energia elétrica, ou que tenham áreas invadidas por águas dos respectivos reservatórios, e a órgãos da administração direta da União. (Redação dada pela Lei nº 13.360, de 2016)
§ 1º Da compensação financeira de que trata o caput: (Incluído pela Lei nº 9.984, de 2000)
I - 6,25% (seis inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) do valor da energia produzida serão distribuídos entre os Estados, Municípios e órgãos da administração direta da União, nos termos do art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, com a redação dada por esta Lei; (Redação dada pela Lei nº 13.360, de 2016)
II – setenta e cinco centésimos por cento do valor da energia produzida serão destinados ao Ministério do Meio Ambiente, para aplicação na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, nos termos do art. 22 da Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e do disposto nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 9.984, de 2000)
§ 2º A parcela a que se refere o inciso II do § 1º constitui pagamento pelo uso de recursos hídricos e será aplicada nos termos do art. 22 da Lei nº 9.433, de 1997. (Incluído pela Lei nº 9.984, de 2000)” (grifou-se e sublinhou-se)
À luz do que dispõe a Lei nº 7.990/1989, o Decreto nº 3.739/01 regulamentou a forma de cálculo da TAR que, multiplicada pelo montante de energia de origem hidráulica efetivamente verificada (em MWh), individualiza o valor total da energia produzida para fins de cálculo da compensação financeira. Esmiuçou, portanto, como se daria o cálculo dessa tarifa.
Assim, o art. 1°, §1°, do Decreto nº 3.739/2001 dispõe que a TAR (que é utilizada para o cálculo do proveito econômico da exploração do potencial hidráulico para produção de energia) será fixada pela ANEEL com base nos preços de venda de energia destinada ao suprimento das concessionárias de distribuição, excluídos os encargos setoriais vinculados à atividade de geração, os tributos, os empréstimos compulsórios e os custos incorridos na transmissão de energia elétrica. Vejamos:
“Art. 1º O valor total da energia produzida, para fins da compensação financeira de que trata o art. 1o da Lei no 8.001, de 13 de março de 1990, será obtido pelo produto da energia de origem hidráulica efetivamente verificada, medida em megawatt-hora, multiplicado pela Tarifa Atualizada de Referência-TAR, fixada pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL.
§ 1º A ANEEL fixará a TAR com base nos preços de venda de energia destinada ao suprimento das concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica, excluindo-se os encargos setoriais vinculados à atividade de geração, os tributos e empréstimos compulsórios, bem como os custos incorridos na transmissão de energia elétrica.” (grifou-se e sublinhou-se)
Como se infere do bloco normativo disciplinador da compensação financeira, o valor a ser considerado para fins de apuração da TAR é o da energia de origem hidráulica (art. 1º, caput) adquirida pelas concessionárias de distribuição, excluindo-se os custos agregados. Portanto, o cálculo definido no § 1º do art. 1º do Regulamento leva em consideração o volume total de energia produzida, apenas deixando clara a necessidade de verificação por parte da Agência Reguladora.
Todavia, parte-se da premissa equivocada de que o § 1º do art. 1º do Decreto nº 3.739/2001 seria ilegal, pois teria violado o conteúdo do art. 3º da Lei nº 7.990/1989. Tal norma encontra-se em vigor há décadas, tendo sido aplicada desde então sem problemas e agora, passados mais de 25 anos de sua edição, questiona-se o regulamento, alegando que o mesmo alterou a base de cálculo da CFURH, incluindo descontos não previstos em lei, redundando num decréscimo no repasse.
Compreender-se-á, porém, que não há ilegalidade e que não assiste razão ao Município: a uma, porque a matéria em questão possui disciplina constitucional sobre a participação no resultado da exploração de recursos hídricos para fins de energia elétrica, e, a duas, a Lei e o Decreto guardam perfeita obediência ao comando constitucional, além de possuírem harmonia entre si.
II.3.2. Disciplina Constitucional. Participação no Resultado da Exploração. Valor da Energia Produzida
O Supremo Tribunal Federal - STF sempre decidiu que, apesar do uso da terminologia “Compensação Financeira”, a cobrança dos Royalties está atrelada ao resultado obtido com a exploração do bem público, aproximando-se mais do sentido de “participação no produto da exploração”. Confira a seguir o julgado do RE228800, assim ementado, in verbis:
“Bens da União: (recursos minerais e potenciais hídricos de energia elétrica): participação dos entes federados no produto ou compensação financeira por sua exploração (CF, art. 20, e § 1º): natureza jurídica: constitucionalidade da legislação de regência (L. 7.990/89, arts. 1º e 6º e L. 8.001/90). 1. O tratar-se de prestação pecuniária compulsória instituída por lei não faz necessariamente um tributo da participação nos resultados ou da compensação financeira previstas no art. 20, § 1º, CF, que configuram receita patrimonial. 2. A obrigação instituída na L. 7.990/89, sob o título de "compensação financeira pela exploração de recursos minerais" (CFEM) não corresponde ao modelo constitucional respectivo, que não comportaria, como tal, a sua incidência sobre o faturamento da empresa; não obstante, é constitucional, por amoldar-se à alternativa de "participação no produto da exploração" dos aludidos recursos minerais, igualmente prevista no art. 20, § 1º, da Constituição. (RE 228800, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 25/09/2001, DJ 16-11-2001 PP-00021, EMENT VOL-02052-03 PP-00471, grifo nosso).
Em consonância com a perspectiva constitucional, o art. 3° da Lei nº 7.990/1989 previu ser a CFURH calculada sobre o valor da energia constante da fatura, ou, para usar a expressão designada pelo art. 17 da Lei nº 9.648/98, ao valor da energia produzida, o que revela sua íntima ligação com o resultado da exploração da energia elétrica.
Exatamente pela natureza da CFURH - de participação nos resultados da exploração - é que o art. 3º da Lei nº 7.990/1989 determina que sejam excluídos do seu cálculo os tributos e os empréstimos compulsórios, por não possuírem qualquer relação com o resultado da exploração de potenciais hidráulicos, devendo, portanto, serem excluídas desse cálculo .
Além disso, a Lei nº 9.648/1998, ao definir como base de cálculo da CFURH o valor da energia elétrica produzida, deixa claro que não devem ser incluídos os encargos setoriais vinculados à atividade de geração, os tributos e empréstimos compulsórios, bem como os custos incorridos na transmissão da energia elétrica, uma vez que não se inserem no valor da energia elétrica produzida, tampouco no resultado da exploração da venda da energia elétrica.
No mesmo sentido, o Decreto nº 3.739/2001 também prevê que o cálculo da CFURH se dará com base no valor de venda da energia elétrica. O complemento que é feito no art. 1°, § 1°, do Decreto, apenas externa a racionalidade já constante no art. 3º da Lei nº 7.990/1989 de que somente o valor da energia, isto é, o valor do bem que constitui o produto da exploração do recurso hídrico, é que deve compor o cálculo da referida “compensação” que, como visto, tem natureza de participação no resultado.
II.3.3. Da Natureza Jurídica dos Encargos Setoriais. Elementos Estranhos ao Valor da Energia Gerada. Legalidade do Decreto nº 3.739/2001. Lógica da exclusão dos encargos e custos estranhos.
A Lei nº 7.990/1989 (art. 3º) determina que a CFURH incida sobre o valor da energia, o que se constitui em uma decorrência lógica do fato de que tal exação decorre do uso do potencial de energia hidráulica, que é bem público da União.
A análise acurada de cada um dos elementos deduzidos do custo da energia distribuída demonstra claramente que os mesmos não correspondem ao valor que remunera a energia obtida pela exploração do potencial hidrelétrico, e sim a valores repassados a outros entes, em razão dos diversos elementos que compõem a política energética nacional. Além disso, tratam-se de encargos surgidos posteriormente ao advento da Lei nº 7.990/1989 e sem pertinência com o resultado da exploração dos potenciais hidráulicos, não se incluindo no cálculo da participação no produto da exploração (“valor da energia produzida”).
De modo sintético e simplificado, vejamos a explicação na tabela abaixo:
A partir da tabela, observa-se que os valores deduzidos correspondem todos a encargos, tributos e custos não gerenciáveis pelo gerador de energia, e que não correspondem ao valor da energia por ele produzida, representando apenas valores arrecadados pelo gerador para repasse a outros entes. Não são produto da geração de energia, não se trata de “resultado” financeiro em favor do gerador, ao contrário, esses valores são incluídos na fatura de energia e apenas transitam para serem repassados aos entes que os gerenciam.
Neste ponto, a Nota Informativa nº 56/2018/ASSEC explica que o decote dos encargos setoriais retromencionados preserva a base de cálculo da CFURH, tendo em vista não serem fatores que refletem o valor da energia elétrica produzida, entretanto, a sua inclusão (indevida) irá majorar o preço da energia paga pelo consumidor de energia. Veja:
“3.11. O atendimento do pedido feito pelo autor, no sentido de não excluir “encargos setoriais vinculados à atividade de geração, os tributos e empréstimos compulsórios, bem como os custos incorridos na transmissão de energia elétrica”, majoraria o preço da energia ao consumidor pelo aumento da TAR, sendo que a definição da TAR é competência da Aneel.
[. . .]
3.15. Afinal, a CFURH paga pelo gerador é repassada ao consumidor final, ao compor o valor da energia vendida pela concessionária de geração à concessionária de distribuição. Resta claro que não deve ser verificado apenas o benefício dos municípios em detrimento dos consumidores de energia elétrica, dos quais depende o próprio pagamento da referida compensação.” (sublinhou-se)
Verifica-se, a partir daí, que a alegação dos Autores no sentido de que estariam sendo descontados da base de cálculo da CFURH ilegalmente os encargos setoriais e os custos com a transmissão de energia não têm fundamento, uma vez que a compensação somente pode incidir sobre o montante de energia gerado, sendo que os encargos setoriais e encargos de transmissão e distribuição não têm qualquer relação com exploração do recurso público objeto da compensação financeira em tela.
Se a compensação destinada aos Municípios tem como incidência o valor auferido na produção/geração de energia hidráulica, os encargos incidentes sobre tal produção, por óbvio, não se incluem no valor intrínseco do recurso hídrico utilizado.
Dessa forma, os encargos setoriais vinculados à atividade de geração e custos de transmissão de energia elétrica não representam ganhos econômicos para a concessionária ou autorizatária da exploração, sendo, em verdade, custos suportados pela operação e exploração da atividade, e, por essa razão, não há ilegalidade na previsão de exclusão de tais rubricas do cálculo do repasse, a exemplo do que ocorre com os tributos e empréstimos compulsórios (art. 3°, Lei n° 7.990/1980), de forma que o art. 1°, §1°, do Decreto n° 3.379/2001, encontra-se em harmonia com o disposto na lei e na CF/88.
Assim, eventual majoração estará completamente dissociada dos elementos que servem de base para a compensação, não tendo os encargos e os custos de transmissão qualquer relação com a exploração do recurso público objeto daquela exação.
II.3.4. Evolução do tratamento legal dado as tarifas de energia elétrica
Importante salientar que não se poderia exigir do legislador ordinário, em 1989, ano de edição da Lei nº 7.990/1989, a apresentação de rol mais abrangente de rubricas que não poderiam integrar a base de cálculo da CFURH, incluindo encargos setoriais relativos à atividade de geração e os custos referentes à transmissão de energia, pois o sistema regulatório era bem distinto.
O setor elétrico brasileiro possuía uma configuração completamente distinta à época. A exploração dos serviços de energia elétrica ficava a cargo praticamente de empresas estatais, criadas a partir da metade dos anos 50 do século passado, que o faziam de forma verticalmente integrada. Vale dizer, a produção, transmissão e distribuição de energia eram exercidas, não raras vezes, pelo mesmo incumbente. Não estava sedimentada ainda, portanto, a noção de que o custo de transporte de energia deveria ser tratado de forma separada (infraestrutura) ao custo de produção da energia elétrica (bem). Tampouco que o gerador de energia, por ser usuário da rede de infraestrutura, deveria arcar com o pagamento do uso do sistema de transmissão.
Diante disso, é preciso reconhecer as profundas alterações regulatórias da tarifa de energia à época em que a Lei nº 7.990/1989 foi promulgada em comparação com o novo modelo do setor elétrico brasileiro.
Somente a partir da implementação do novo modelo do setor elétrico, arquitetado pelas Leis nº 8.987/1995, nº 9.074/1995, nº 9.427/1996 e nº 9.648/1998, é que se individualizou regime jurídico para cada um dos segmentos da cadeia da indústria elétrica, os quais passaram a ser explorados por diferentes agentes com tarifas e regras específicas. Como consequência dessa individualização dos diferentes serviços de energia elétrica, surgiram novas relações jurídicas e, assim, novas obrigações foram firmadas entre os agentes. Aos agentes incumbidos de gerir a infraestrutura responsável pelo transporte da energia passou a ser previsto o pagamento de tarifa em contraprestação ao uso do sistema, a ser paga pelos usuários, englobando os consumidores e geradores, somando-se, ainda, custos para o financiamento de vários elementos que estruturam a política energética nacional.
Essas alterações evidenciam as alterações dos parâmetros regulatórios quando da edição da Lei nº 7.990/1989, onde não havia a separação, com precisão, de todos os elementos componentes da tarifa de energia elétrica, em comparação com o novo marco do setor elétrico. Para tornar mais clara essa constatação, a Nota Técnica nº 00008/2021/ASSEC, explica que:
“3.1. A Lei 7.990/89 prevê compensação financeira sobre “a geração de energia elétrica e dos recursos minerais” tendo por base o aproveitamento de recursos hídricos. A lei menciona a geração de forma restrita; ela não prevê direitos, a qualquer ente federativo, sobre outras atividades envolvendo o setor elétrico, nem sobre receitas de políticas públicas associadas a este fim.
3.2. O sistema regulatório hoje vigente é distinto do então existente em 1989, quando a lei foi aprovada. Hoje, um complexo de obrigações regulatórias agrega, à tarifa, uma série de atividades econômicas e mandamentos de políticas públicas. Quando o consumidor paga sua tarifa, ele está pagando um preço agregado que não inclui apenas o valor de geração, e sim uma série de pagamentos por serviços e obrigações regulatórias.
3.3. Isso significa que valores cobrados, hoje, podem ser segregados entre o valor da geração e o valor de outras atividades. É isso que o decreto fez, esclarecendo que a cobrança seria, como a lei prevê, sobre a “geração de energia”.
3.4. Trata-se de opção regulatória plenamente compatível com a legislação, e conducente à provisão de um sistema justo e eficiente. Afastar este entendimento implica graves consequências a consumidores e à segurança energética no Brasil.” (grifou-se e sublinhou-se)
Com efeito, o sistema regulatório hoje vigente é bastante distinto do então existente em 1989, período no qual a tarifa de energia não era calculada da forma técnica e discriminada como se faz atualmente, com todos os componentes minuciosamente apresentados. Sobre o assunto, a Nota Técnica nº 10/2021/CGPR/DGSE/SEE corrobora que:
“4.18. Um ponto que não pode passar despercebido é que, à época em que a Lei nº 7.990 foi promulgada, a tarifa de energia não era calculada da forma técnica e discriminada como se faz atualmente, com todos os componentes minuciosamente apresentados. A tarifa de energia não tinha qualquer relação com os custos, sendo decidida politicamente (tendo em vista que o foco, à época, era o controle da inflação) e com um mesmo valor para todo o país (esse quadro começou a mudar com a desequalização tarifária promovida pela Lei nº 8.631/93). Dessa forma, a aparente incongruência entre a Lei nº 7.990 e o Decreto nº 3.739/2001 é reflexo, muito mais, de dois momentos diferentes da regulamentação do setor elétrico do que de um suposto abuso da agência reguladora.
4.19. De fato, o que o Decreto nº 3.739/2001 faz é compatibilizar a Lei nº 7.990/89 à atual estrutura tarifária brasileira, tecnicamente fundamentada, de forma garantir que na aplicação daquela Lei os seus objetivos (a compensação financeira por prejuízos oriundos da inundação de terras) sejam alcançados, sem prejudicar os consumidores, que, de outro modo, seriam onerados pagando custos sem justificativa.
4.20. Assim sendo, entende‐se que a interpretação literal (a mais pobre das hermenêuticas) tende a induzir a um entendimento equivocado sobre a compatibilidade entre o Decreto, a Lei e a realidade do setor elétrico, quando, na realidade, não há qualquer incongruência entre eles.
[. . .]
b) não existe incompatibilidade entre o Decreto nº 3.739/2001 e a Lei nº 7.990/89. As aparentes incongruências refletem momentos distintos de regulação do setor elétrico e o Decreto permite compatibilizar os objetivos da Lei ao quadro regulatório atual, no qual a tarifa de energia elétrica é calculada de forma técnica, com discriminação de todos os seus componentes, permitindo isolar claramente a parcela relativa à geração de origem hídrica, ou seja, aquele relacionada à inundação de terras;” (grifou-se e sublinhou-se)
Assim, o Decreto nº 3.739/2001, que veio a lume mais de dez anos depois da Lei nº 7.990/1989, inserido dentro de um contexto fático e jurídico do setor elétrico completamente distinto àquele vivenciado pelo legislador de 1989, apenas promoveu a adequação, do ponto de vista legal, à nova realidade que então se apresentava, sem distorcer, contudo, a natureza de participação no resultado da exploração, que se dessume dos contornos jurídicos da “compensação financeira” instituída pela Lei nº 7.990/1989.
Atualmente, para cumprir o compromisso de fornecer energia elétrica com qualidade, a distribuidora de energia tem custos que devem ser avaliados na definição das tarifas, dividindo-os em três custos distintos, conforme figura abaixo:
A exclusão dos encargos setoriais e dos custos de transmissão de energia do cálculo da CFURH, por obra do Decreto nº 3.779/2001, atua em benefício da clareza e da conformidade legal do instituto, que é de participação nos resultados da exploração dos potenciais para fins de energia elétrica, de forma que o valor pago pelo gerador de energia ao Município corresponda a um fator percentual do valor da energia constante da fatura ou, mais precisamente, do valor da energia produzida, como expressamente referido no art. 17 da Lei 9.648/98, sem qualquer outro elemento exógeno ao resultado da exploração da venda de energia.
Nesse sentido, o que o Decreto nº 3.739/2001 faz é compatibilizar a Lei nº 7.990/1989 à atual estrutura tarifária, tecnicamente fundamentada, garantindo a aplicação daquela Lei os seus objetivos - a compensação financeira - sejam efetivamente alcançados, sem prejudicar os consumidores, que, de outro modo, seriam onerados pagando custos sem justificativa. De fato, a base de cálculo deve ser o valor da energia elétrica gerada, que efetivamente não inclui o transporte e os demais encargos setoriais.
Quando o consumidor paga sua tarifa de energia, paga um preço agregado que não inclui só o valor de geração, mas também vários serviços e obrigações regulatórias. Logo, os valores cobrados hoje podem ser segregados entre o valor da geração e o valor de outras atividades. É isso que o Decreto fez: esclarecer que a cobrança se dará sobre a base de cálculo “geração de energia”.
Pelo exposto, os pedidos formulados violam a definição regulatória de “valor de energia”! Os ajustes estabelecidos não excedem o poder regulamentar, mas ao contrário, está em total aderência às legislações setoriais supervenientes que dispõe sobre a estrutura da tarifa de energia e ao próprio funcionamento setor elétrico com o advento do novo modelo regulatório.
II.3.5. Ausência de Fundamento Lógica e Jurídico para Incluir Encargos e outros Custos na Base de Cálculo da Contribuição que é Amparada Apenas na Geração de Energia (CFURH). Enriquecimento Sem Causa do Requerente
Não há sentido lógico-jurídico em elevar o valor dos repasses aos Municípios com base em encargos e custos de transmissão, pois os parâmetros legais não os inserem no cálculo da CFURH, mas apenas o valor de venda da energia verificada.
Esses encargos setoriais e custos de transmissão e distribuição de energia elétrica que, como dito, não possuem qualquer relação com a receita transferida a que têm direito os Municípios, tratam-se de meras obrigações setoriais dos agentes do sistema elétrico, sem qualquer correlação com a energia de origem hidráulica efetivamente verificada.
Considerando que o cálculo da CFURH se baseia na geração mensal efetiva das usinas hidrelétricas, não há razão para a inclusão de custos e encargos não associados àquela base de cálculo. Perceba que a transmissão e distribuição são etapas posteriores à geração de energia, e que com esta não se confundem, não havendo pertinência da inclusão desses, e de outros encargos, na base de cálculo da CFURH, até mesmo porque as legislações que tratam da matéria também não o previram.
Note-se, por exemplo, que dentro dos encargos, encontra-se incluída a TFSEE (Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica) que consiste, inegavelmente, em tributo, demonstrando o quão incoerente é o pleito formulado pelo Requerente em relação à própria argumentação por ele apresentada. Sobre esses encargos, a Nota Técnica nº 0008/2021/ASSEC explica que:
“4.2. A lógica da Lei 7.990/89 é compensar o ente federativo pela geração de riqueza decorrente de recursos localizados em seu território. Por isso a compensação restringe-se ao aproveitamento “para fins de geração”.
4.3. A autora, contudo, deseja receber pagamentos por valores para os quais ela nem contribuiu nem tem direito, como se observa de sua petição: “A partir do que foi decidido acima, é possível relacionar os encargos que são equivocadamente deduzidos do PMEH (Preço Médio da Energia Elétrica) para se chegar à TAR, sendo eles: a) Reserva Global de Reversão (RGR), b) Pesquisa e Desenvolvimento (PeD), c) Uso do Bem Público (UBP), d) Contribuição Associativa (ONS), e) Encargos de Serviço do Sistema (ESS), d) Valor do Pagamento Anual (VPP), e) Custo de Transmissão (CT), f) Custo de Distribuição(CD).”4.4. Isso significa que a autora quer receber uma porcentagem de custos de transmissão em todo o país, sem ter jamais contribuído para sua instalação. Quer receber um adicional sobre atividades de pesquisa e desenvolvimento jamais realizadas em seu território. Deseja ser paga pelos serviços prestados pelo Operador Nacional do Sistema.
4.5. Estas atividades, entre outras, não têm nenhuma relação com o potencial hídrico do Município. Não se observa qualquer razão de direito ou economia para que ele receba compensação por ações plenamente alheias ao ente federativo.” (sublinhou-se)
Não se deve esquecer que os consumidores de energia, regulados e livres, já pagam por esses custos e encargos, os quais, caso sejam providos os pedidos formulados, passarão a compor também a Tarifa Anual de Referência - TAR, que compõe o cálculo da compensação financeira aqui discutida, a implicar indiscutivelmente em “bis in idem”.
Caso os encargos setoriais e os custos de transmissão sejam incluídos no cálculo da TAR, utilizada para apurar o valor da CFURH, haverá completa distorção do conceito de participação no resultado da exploração. Isso porque os Municípios Geradores passariam a se tornar “sócios” não apenas do produto da exploração da atividade econômica de geração, mas também da receita arrecadada pelos geradores em prol de outros agentes e finalidades diversas.
Dessa forma, a receita, enquanto base de cálculo da CFURH, está diretamente associada ao valor da energia produzida, ou seja, ao montante de energia de origem hidráulica efetivamente verificada (em MWh), que gera o valor total da energia produzida para compensação. Sobre este aspecto, a Nota Técnica nº 0010/2021/CGPR/DGSE/SEE esclarece que:
“4.16. O que faz, então, a Aneel ao calcular a TAR? Busca o valor efetivamente vinculado à produção de energia oriunda de áreas alagadas por hidrelétricas. E por uma questão de coerência e justiça, todos os encargos cuja exclusão foi aqui mencionada precisam ser abatidos da tarifa cobrada dos consumidores para que se chegue à TAR, vale dizer, à tarifa efetivamente vinculada à produção de energia nas hidrelétricas. De outra forma, os beneficiários da CFURH estariam se locupletando indevidamente e prejudicando os consumidores brasileiros, num autêntico enriquecimento sem causa.
4.17. É preciso não esquecer que a justificativa da existência da CFURH é compensar estados e municípios pelos prejuízos que a inundação de áreas lhes traz. É importante salientar: trata-se de uma compensação, não de um mecanismo para proporcionar vantagens. Destarte, sua natureza jurídica não é comparável, por exemplo, à de royalties. Assim, não parece adequado que os municípios aufiram receita sobre, por exemplo, os custos de transmissão, os investimentos feitos em pesquisas ou, ainda pior, sobre a taxa de fiscalização ou o financiamento do ONS. Além de contrariar o propósito da lei nº 7.990/89, que é o de meramente oferecer uma compensação por eventuais perdas provocadas pela atividade de geração de origem hídrica, isso prejudicaria os consumidores, pois além de pagar regularmente todos os encargos já mencionados, ainda teriam que pagar, sobre eles, os percentuais referentes à CFURH sem, em retribuição, receber qualquer melhoria no serviço. Na realidade, não realizar tais descontos geraria um desvirtuamento, não só, dos objetivos da Lei nº 7.990/89, mas também da Lei nº 8.987/95 que no seu art. 6º, § 1º, inclui entre os requisitos para um serviço adequado, a modicidade tarifária.” (sublinhou-se)
A Constituição prevalece para dizer que a participação ou a compensação se dará em razão da exploração de recursos hídricos para a geração de energia elétrica, sendo esta a estrita dicção do Decreto nº 3.739/2001. Ampliar a base de cálculo da TAR para incluir encargos setoriais ou custos, que, pela própria natureza jurídica, não integram o conceito constitucional (CF, art. 20, § 1º), é que, de fato, representará verdadeira ilegalidade e prejuízo à modicidade tarifária e à segurança jurídica.
Assim, tanto a Lei quanto o Decreto estão aderentes ao art. 20, §1º, da CRFB, que prevê que Estados, o Distrito Federal e Municípios possuem assegurada participação no resultado da exploração de recursos hídricos.
Ou seja, os encargos, objeto de questionamento nestas ações, devem ser abatidos da tarifa cobrada dos consumidores para que se chegue ao resultado efetivamente vinculado à produção de energia nas hidrelétricas. Se não for assim, os beneficiários da CFURH se locupletarão indevidamente, prejudicando os consumidores brasileiros, num nítido enriquecimento sem causa.
Portanto, o Requerente não tem direito algum a participação sobre encargos setoriais ou custos, de modo que a retirada dessas rubricas da base de cálculo de sua participação, como dispõe o Decreto nº 3.739/2001, possui amparo constitucional. A concessão do pleito autoral irá interferir no cálculo do resultado de exploração, ao inflar a receita de venda com elementos exógenos a ela, que são os encargos setoriais vinculados à atividade de geração e os custos incorridos na transmissão de energia elétrica.
II.3.6. Perigo de Dano Inverso. Oneração Indevida dos Consumidores. Desorganização da Política Tarifária Vigente há mais de 20 anos. SLS nº 2988/DF e SLS nº 1000281-02.2022.4.01.0000
Por fim, a procedência dos pedidos trará grave “periculum in mora inverso”, com sério prejuízo ao interesse público e à garantia da legalidade, implicando não apenas em insegurança jurídica para todo o sistema elétrico, mas, especificamente, em prejuízo direto para os consumidores, que serão agravados com o “bis in idem” em relação aos encargos e custos de transmissão.
Isto porque, o afastamento do Decreto nº 3.739/2001 provocará profunda alteração no quadro regulatório, definido há mais de 24 anos, trazendo instabilidade setorial grave, com reflexo direto nos contratos de concessão dos segmentos de geração e de distribuição, a repercutir em aumento expressivo do valor das tarifas cobradas do consumidor.
Na hipótese de o gerador de energia, instado a pagar o valor da CFURH a mais, não apenas com base no resultado da exploração dos recursos hídricos, mas incluindo encargos setoriais, irá exigir o repasse da diferença no preço da tarifa, com base nas cláusulas contratuais que garantem a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de compra e venda de energia.
Majorado o preço da tarifa, a distribuidora passará a arcar com custo adicional de aquisição de energia, sendo que o contrato de concessão lhe garante a neutralidade para esse item. Em última análise, a diferença entre o que seria devido a título de CFURH, consoante normas vigentes, e o que foi imposto, com base na pretensão autoral, recairá nas tarifas pagas pelos consumidores.
Não é razoável supor que a CFURH incida sobre encargos setoriais e sobre custos de transmissão, que já são pagos pelo consumidor de energia e que não guardam nenhuma relação com o recurso explorado. Na remota hipótese de confirmação do pleito, o consumidor incorrerá em “bis in idem”, pois já paga por esses custos e encargos, os quais passariam a compor também a tarifa atualizada de referência - TAR, que compõe a base de cálculo dessa compensação, e que é paga pelo consumidor.
Em termos de tarifa, estima-se um impacto de R$ 1,5 bilhão por ano a ser pago por consumidores, cujo montante tem provocará aumento significativo da inflação, conforme apontado pela Assessoria Econômica do MME, ao explicar que:
“7.1. O impacto mais óbvio da pretensão da autora é o aumento de tarifas. Como mencionado em documento da ANEEL, estima-se um impacto de R$ 1,5 bilhão por ano a ser pago por consumidores.
7.2. Note-se que a geração por fonte hidráulica representa 64,9% da matriz energética brasileira. A imposição de custos adicionais sobre um serviço tão ubíquo pode resultar em pressão inflacionária no país.
8.1. Caso a autora tenha sucesso em seu pleito, a produção de energia por fonte hídrica passará a observar desvantagem em comparação a outras fontes, que não teriam de pagar os 7% sobre os demais encargos e custos regulatórios. Isso pode implicar desincentivo a uma fonte ambiental, técnica e economicamente desejável.
8.2. A substituição da geração hidrelétrica por fontes térmicas implica geração de emissões de carbono. Trata-se de comportamento contrário à necessidade mundial de contenção de aquecimento global.
8.3. Do ponto de vista técnico, outras fontes não possuem a mesma flexibilidade de operação. Algumas fontes possuem restrições sazonais (eólica e solar); outras não podem ser ativadas e moduladas com a mesma facilidade (nuclear, combustíveis fósseis).
8.4. Finalmente, do ponto de vista econômico, trata-se de desincentivar projetos que normalmente dependem de grandes investimentos e prazo mais alongado de execução. Isso significa potencial menor oferta, energia mais cara e menor produção econômica.” (grifou-se e sublinhou-se)
Em outro aspecto, a ASSEC registrou que tais pretensões representam um grande entrave à promoção de políticas públicas federais, por impor um custo adicional aos usuários de energia elétrica, em total contramão à modicidade tarifária e à segurança energética. Neste ponto, confira o fragmento extraído mais uma vez da Nota Técnica nº 00008/2021/ASSEC:
“5.1. Os encargos e custos impostos sobre tarifas decorrem de políticas públicas integradas voltadas à modicidade tarifária e à segurança energética. Em outras palavras, trata-se de pagamentos que o sistema regulatório impõe a todos para baixar tarifas e para garantir que não haja outro apagão no Brasil.
5.2. A pretensão dos autores impõe um custo adicional de 7% sobre tais encargos. Isso constrange a capacidade da agência reguladora de determinar a provisão e o custeio de serviços essenciais ao bom funcionamento do sistema elétrico.
5.3. A capacidade de pagamento de consumidores não é ilimitada. Impor um adicional de 7% de custo sobre vários serviços críticos pode forçar o regulador a reduzir a provisão de tais serviços. Trata-se, assim, de prejudicar todos os usuários de energia para privilegiar entes associados apenas à geração em si de energia por fonte hidráulica.” (sublinhou-se.)
Não só isso! Haverá também violação à isonomia no mercado de energia de energia, como bem explica novamente a Nota Técnica nº 0008/2021/ASSEC, no que importa, a saber:
“6.1. A cobrança sobre o potencial hídrico também implica quebra de isonomia entre geradores de energia de fontes distintas.
6.2. A comercialização de energia elétrica faz-se majoritariamente no âmbito de leilões promovidos pela ANEEL. Uma prioridade regulatória tem sido eliminar distinções entre fontes distintas de energia para incentivar o desenvolvimento dos mecanismos mais eficientes de geração.
6.3. A pretensão da autora caminha em sentido diretamente oposto a esta política. Trata-se de impor, aos geradores por fonte hidráulica, um custo adicional de7% sobre todos os encargos que já tem de pagar. Como outros geradores não teriam este encargo, trata-se de quebra de isonomia em prejuízo da forma mais eficiente de provisão de energia (vide item 8).” (sublinhou-se)
Com efeito, no cenário atual há uma grande pressão sobre as tarifas de energia elétrica em um momento de grande vulnerabilidade da capacidade de pagamento dos consumidores, a gravidade do dano inverso é tal, que é capaz de levar à configuração de lesão à ordem pública, motivo pelo qual Ministro do STJ Jorge Mussi, na Suspensão de Liminar e de Sentença - SLS nº 2988/DF, reconheceu existir prejuízo ao interesse público, lesão à ordem, à segurança e à economia públicas, senão confira:
“Da análise dos autos, verifica-se a presença de risco concreto de grave lesão à ordem administrativa, porquanto as decisões que anteciparam a tutela interferem de forma direta no cálculo da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos, que já vem sendo praticado há mais de 20 anos, nos moldes do Decreto n. 3.739, de 31 de janeiro de 2001.
Ademais, as decisões cujos efeitos se pretende suspender têm relação com a atuação administrativa e com regulação especializada e técnica, de modo que, ao menos em juízo de cognição sumária, deve prevalecer até julgamento de mérito da apontada incongruência na operação do quanto devido aos Municípios.
Com efeito, qualquer alteração na forma de cálculo da compensação imprescinde de instrução exauriente e análise especializada dos possíveis impactos que tal medida possa gerar em todo o sistema. Esse panorama se mostra ainda mais temerário à ordem administrativa diante da possível ocorrência de efeito multiplicador, tendo em vista o número de Municípios que se encontram na mesma situação jurídica, o que poderia causar desequilíbrio no setor. Quanto ao ponto, essa Corte registra precedente no sentido de que "o Poder Judiciário, quando instado a se manifestar acerca de algum ato administrativo, deve agir com cautela, nos estreitos limites da legalidade, mormente em se tratando de questões concernentes a atos administrativos de agências reguladoras, cujo âmbito de atuação se dá com fulcro em legislação com ampla especificidade técnica sobre o mercado regulado" (AgRg na SS n. 2.727-DF, relator Ministro Felix Fischer, Corte Especial, DJe de 16/10/2014).
[. . .]
No caso em exame, a lesão à ordem pública emerge da intervenção do Poder Judiciário na esfera administrativa, alterando critérios técnicos que incumbem ao órgão regulador a partir da observância da legislação incidente à espécie.
De sua vez, é possível se antever que as decisões de e-STJ fls. 104-108, 186-190 e 267-270 têm o condão de configurar lesão à ordem econômica, porquanto, por meio de provimento de caráter precário e não exauriente, acabaram por fixar forma diversa daquela já praticada no cálculo da compensação, fato que pode gerar efeitos em cascata sobre todo o sistema.
Tal realidade tem o condão de demonstrar a existência de risco de instabilidade, tendo em vista o reflexo da medida nos contratos que envolvem a geração e a distribuição de energia.
Quanto ao ponto, apenas para demonstrar a especificidade e a peculiaridade da matéria, a demandar maior cautela na intervenção judicial, haja vista as possíveis consequências da medida para todos os envolvidos e, em última análise, para a própria coletividade, destaco os seguintes trechos extraídos do memorando elaborado pelo Superintendente de Gestão Tarifária da ANEEL:
[. . .]
Depreende-se dos excertos transcritos a plausibilidade do direito invocado pelas requerentes, sendo forçoso concluir que a decisão do juízo de origem, ao indeferir o pedido liminar, representa medida que melhor resguarda a supremacia e a indisponibilidade do interesse público, bem como a ordem administrativa e econômica. Ante o exposto, com fundamento no art. 271, c/c o art. 22, caput, d o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, defere-se o pedido para sustar os efeitos das decisões proferidas nos Agravos de Instrumento n. 1030223-50.2020.4.01.0000, n. 1006431-33.2021.4.01.0000 e n. 1023100-64.2021.4.01.0000, em trâmite no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.” (grifo no original) (STJ - SLS: 2988 DF 2021/0268938-0, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data da Publicação: DJ 02/09/2021)”
Tamanha é a preocupação que o Tribunal da Cidadania, neste mesmo incidente processual, deferiu a extensão dos efeitos para outros precedentes, por restar configurada a identidade de objeto entre a decisão a ser suspensa e as antecipações da tutela já suspensas nos presentes autos, e no mérito, manteve a decisão liminar, conforme Acórdão reproduzido a seguir:
“AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ENERGIA ELÉTRICA. INTERVENÇÃO NO MERCADO REGULADO. GRAVE LESÃO À ORDEM PÚBLICA. AGRAVO IMPROVIDO.
1. A legislação de regência e a jurisprudência do STJ não exigem que a parte requerente do pedido suspensivo seja parte na ação originária.
2. Identifica-se a presença de risco de grave lesão à ordem pública, representada no interesse em manter a estabilidade de um mercado regulado e sensível, como é o da energia elétrica, nas incertezas decorrentes de medidas judiciais de natureza provisória que determinam a revisão de critérios para pagamento/recebimento da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos - CFURH.
3. Mais ainda se justifica a excepcional admissão do pedido de suspensão de liminar e sentença quando se atenta para o potencial “efeito multiplicador” causado pelas decisões suspensas em face da existência de 723 municípios que recebem a CFURH e dezenas de ações similares já ajuizadas. Este cenário autoriza antever "a insegurança jurídica e sistêmica que poderá se instalar caso outros Municípios passem a adotar o mesmo expediente, impondo o caos à ordem administrativa".
4. Agravo interno improvido.”
Esse tema também não passou desapercebido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, quando do julgamento da Suspensão de Liminar e de Sentença - SLS nº 1000281-02.2022.4.01.0000, ocasião em que a Corte Especial reconheceu a presença dos requisitos autorizadores para a concessão da medida, conforme Acórdão transcrito, verbis:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE LIMINAR/ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. LEI N.o 8.437/92. GRAVE LESÃO. ORDEM PÚBLICA. ORDEM ADMINISTRATIVA. ORDEM ECONÔMICA. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. COMPENSAÇÃO FINANCEIRA PELA UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS – CFURH. JUÍZO MÍNIMO DE DELIBAÇÃO. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA.
1. Trata-se de agravo interno interposto pelo MUNICÍPIO DE CALDAS NOVAS/GO E OUTROS, em face da decisão que deferiu o pedido formulado pela AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA - ANEEL para suspender os efeitos da antecipação de tutela, concedida nos autos dos processos nº 1050389-88.2020.4.01.3400, nº 1017803-61.2021.4.01.3400, nº 1049654-21.2021.4.01.3400 e nº 1071466-56.2020.4.01.3400.
2. Destaca-se que na decisão agravada foi deferido pedido, afastando os efeitos das decisões que concederam a antecipação de tutela para determinar que a ANEEL realize o cálculo do valor da Compensação pela Utilização dos Recursos Hídricos – CFURH devida, excluindo-se de sua base de cálculo tão somente os encargos previstos na art. 3º da Lei nº 7.990/1989 (tributos e empréstimos compulsórios), entendendo que o Decreto nº 3.739/2001 extrapolou os ditames da citada lei.
3. Desse modo, a controvérsia reside na alegação de que a definição constante do citado Decreto 3.739/2001 exorbitou ao que foi determinado pela Lei nº 7.990/1989, ao excluir da parcela da CFURH, destinada aos municípios, os encargos setoriais vinculados à atividade de geração, além dos custos incorridos na transmissão de energia elétrica.
4. Na decisão agravada foi claramente demonstrado que não houve exame e definição quanto ao mérito discutido nas ações originárias, o acatamento do pedido de suspensão de tutela de urgência, ocorreu, pois evidenciados os pressupostos legais, com o intuito de evitar grave lesão à ordem administrativa e à economia públicas.
5. Desse modo, verifica-se que a manutenção da antecipação de tutela, quanto ao tema em discussão nas ações originárias, possibilitando o imediato recálculo dos valores da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos – CFURH, constitui temeridade e inegável risco de dano à ordem pública, na sua vertente administrativa e à ordem econômica, pela repercussão que incidirá nas contas dos usuários dos serviços públicos de energia elétrica e ao erário, bem como na interferência indevida do Poder Judiciário nas funções administrativas.
6. E, ao examinar o pedido de SUSPENSÃO DE LIMINAR e de SENTENÇA Nº 2988 - DF (2021/0268938-0) apresentado pela ANEEL, em situação idêntica à analisada nos presentes autos, o eminente Ministro Vice-Presidente do egrégio Superior Tribunal de Justiça reconheceu o risco de grave lesão à ordem pública evidenciada, nos mesmos moldes em que proferida a decisão agravada. Vejamos: “Depreende-se dos excertos transcritos a plausibilidade do direito invocado pelas requerentes, sendo forçoso concluir que a decisão do juízo de origem, ao indeferir o pedido liminar, representa medida que melhor resguarda a supremacia e a indisponibilidade do interesse público, bem como a ordem administrativa e econômica. Ante o exposto, com fundamento no art. 271, c/c o art. 22, caput, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, defere-se o pedido para sustar os efeitos das decisões proferidas nos Agravos de Instrumento n. 1030223- 50.2020.4.01.0000, n. 1006431-33.2021.4.01.0000 e n. 1023100-64.2021.4.01.0000, em trâmite no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.” (grifo e sublinhado no original)
Além disso, uma vez contabilizado o crédito e repassado ao mercado em cascata, dificilmente haverá ressarcimento do consumidor final de energia pelo valor de que foi onerado, atestando que o perigo inverso, este sim, é iminente e irreversível.
Com essas considerações, revela-se clara situação de “periculum in mora inverso” atrelado aos pedidos liminares formulados. A cautela e as decisões judiciais apresentadas demonstram a necessidade de indeferimento da medida liminar requerida.
IV. CONCLUSÃO
Diante do exposto, sugere-se o acolhimento da presente manifestação como Informação Jurídica Referencial, nos termos da Portaria Normativa CGU/AGU nº 05/2022, que deverá ser adotada como parâmetro nos processos com pedidos de subsídios solicitados pelas Procuradorias Regionais da União para defesa da União em ações judiciais em que se discuta a tese de ilegalidade do § 1º do art. 1º do Decreto nº 3.739/2001, por deduzir da base de cálculo da CFURH encargos setoriais (vinculados às atividades de geração e de transmissão de energia elétrica), além daqueles previstos pela legislação de regência (Lei nº 7.990/1989).
Instruem esta manifestação: Notas Técnicas nº 12/2018/CGPT/DGSE/SEE e nº 10/2021/CGPR/DGSE/SEE e Notas Técnicas nº 56/2018/ASSEC e nº 8/2021/ASSEC, cuja juntada deverá ser providenciada pelo Apoio desta Consultoria Jurídica.
Ressalta-se, porém, que este órgão consultivo poderá se pronunciar, de ofício ou por provocação específica, visando à retificação, complementação, aperfeiçoamento ou ampliação de posicionamento lançado na presente Informação Jurídica Referencial, ou destinado a adaptá-la a inovação normativa, mutação jurisprudencial ou entendimento de órgão de direção superior da AGU.
Esta Informação Jurídica Referencial terá validade de 2 (dois) anos, a partir de sua aprovação, nos termos do art. 11 da Portaria Normativa CGU/AGU nº 05, de 31 de março de 2022.
Em atenção ao art. 9º, III, "c", c/c art. 12 da Portaria Normativa CGU/AGU nº 05/2022, dê-se ciência, com registro de que se trata de IJR: (a) à Procuradoria-Geral da União; (b) às Procuradorias Regionais da União; (c) ao Departamento de Informações Jurídico-Estratégicas; e (d) à Secretaria Nacional de Energia Elétrica e à Subsecretaria de Assuntos Econômicos e Regulatórios.
À consideração superior.
Brasília, 15 de janeiro de 2025.
(assinado eletronicamente)
CHRISTIAN DE OLIVEIRA E FERNANDES
Advogado da União
Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em https://supersapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 00405031448202155 e da chave de acesso 90378ff0
Notas