ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CÂMARA NACIONAL DE PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E INOVAÇÃO - CNPDI/DECOR/CGU


 

PARECER n. 00002/2019/CNPDI/CGU/AGU

 

NUP: 00688.000724/2019-90

INTERESSADO: Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos - DECOR/CGU/AGU.

ASSUNTO: Manifestação jurídica consultiva. Art. 20 da Lei nº 10.973/2004 e arts. 27 a 33 do Decreto nº 9.283/2018.

 

 

EMENTA: 
I. Parecer jurídico. Exame da aplicabilidade do art. 20 da Lei nº 10.973/2004 às empresas estatais. Como as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias se sujeitam ao estatuto jurídico de que trata a Lei nº 13.303/2016, questiona-se se as empresas estatais, em particular as federais, estão autorizadas a aplicar o art. 20 da Lei nº 10.973/2004 na hipótese de celebração do contrato de encomenda tecnológica.
II. Em matéria de encomenda tecnológica, as empresas estatais seguem as normas contidas no art. 20 da Lei nº 10.973/2004 e na Lei nº 13.303/2016. Havendo divergência entre as duas Leis, a solução do conflito deve ser resolvida em favor da Lei nº 10.973/2004, em virtude do princípio da especialidade das normas jurídicas. Diversamente do que acontece com a administração pública direta, autárquica e fundacional, as normas contidas na Lei nº 8.666/1993 não se aplicam às contratações feitas pelas empresas estatais, qualquer que seja a sua modalidade, nem mesmo às encomendas tecnológicas.
III. A nível regulamentar, os contratos de encomendas tecnológicas conduzidos pelas empresas estatais federais devem obediência ao Decreto nº 9.283/2018 (arts. 27 a 32). Eventuais normas complementares de que trata o art. 33 do citado Decreto, editadas pelos Ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (atual Ministério da Economia), não alcançam as empresas estatais federais, na medida em que estas possuem regulamento próprio de licitações e contratos.
IV. É juridicamente possível que uma empresa estatal seja contratada para executar, isoladamente ou em consórcio, uma encomenda tecnológica em favor de órgão ou entidade da administração pública contratante, desde que esse negócio esteja relacionado com os objetivos sociais da estatal. Neste caso, em que a empresa estatal é a demandada (executora da encomenda tecnológica), incide o art. 28, § 3º, inciso I, da Lei nº 13.303/2016, o qual afasta, no que toca à empresa, o dever de licitar ou mesmo de instaurar processo de contratação direta quando da comercialização, prestação ou execução, de forma direta, de produtos, serviços ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetos sociais. Na outra ponta, o ente público demandante instaurará o processo de contratação direta por dispensa de licitação. 
 

 

I. RELATÓRIO

 

Trata-se de parecer jurídico que aborda a aplicabilidade às empresas estatais do contrato de encomenda tecnológica de que trata o art. 20 da Lei nº 10.973/2004.

 

Considerando que as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios se sujeitam ao estatuto jurídico de que trata a Lei nº 13.303/2016, questiona-se se as empresas estatais, em particular as federais, estão autorizadas a aplicar o art. 20 da Lei nº 10.973/2004 na hipótese de celebração do contrato de encomenda tecnológica. 

 

É o breve relatório.   

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

 

II.a. Definição do problema

 

As encomendas tecnológicas são uma modalidade especial de compra pública pela qual a administração pública, na qualidade de demandante, contrata o esforço tecnológico de uma organização pública ou privada, tendo por objeto a solução de um problema específico através do desenvolvimento de algo inovador, ou seja, de produto, serviço, processo ou sistema não disponível no mercado.

 

A encomenda tecnológica pressupõe a superação de um grau de incerteza que ameaça a entrega efetiva do objeto contratado, em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide pela realização da ação (risco tecnológico).

 

O contratante da encomenda é a administração pública. O executante da encomenda (contratado) pode ser uma organização com personalidade jurídica de direito público ou de direito privado, como uma Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação – ICT, uma organização sem fins lucrativos ou uma sociedade empresária (com finalidade lucrativa), isoladamente ou em consórcio.

 

Os contratos de encomenda tecnológica têm previsão legal no art. 20 da Lei nº 10.973/2004 (com redação dada pela Lei nº 13.243/2016). No âmbito federal, a matéria encontra-se regulamentada pelos arts. 27 a 33 do Decreto nº 9.283/2018.

 

A questão que se coloca é se tais normativos se aplicam às empresas estatais. Para responder a essa questão, cumpre inicialmente perscrutar a divisão de competências legislativas prevista na Constituição Federal de 1988.

 

II.b. Competência legislativa

 

O inciso XXVII do art. 22 da Constituição estabelece que compete privativamente à União estabelecer normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI (define a licitação pública como regra, ressalvadas as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade), e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III (estatuto jurídico próprio).

 

Além disso, o art. 24, IX, da Constituição preconiza que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação. No exercício dessa “competência legislativa concorrente”, a competência da União deve ficar limitada ao estabelecimento de normas gerais. Fixadas as normas gerais pela União, caberá aos Estados e ao Distrito Federal complementar a legislação nacional, na chamada “competência suplementar dos Estados-membros” (art. 24, §§ 1º e 2º). 

 

Portanto, a teor do art. 22, XXVII, c/c art. 24, IX e § 1º, da Constituição, a União tem competência para editar normas gerais sobre os contratos públicos de encomendas tecnológicas.

 

Em relação à administração direta, autárquica e fundacional, as normas gerais sobre as encomendas tecnológicas são aquelas que constam nas Leis nºs 10.973/2004 (Lei Geral de Inovação) e 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos).

 

Embora tenha previsão legal no art. 20 da Lei Geral de Inovação, é preciso destacar que a encomenda tecnológica não é inteiramente regulada por esse singelo dispositivo. Afinal, salvo disposição legal em contrário, a Lei nº 8.666/1993 contém normas gerais incidentes sobre quaisquer modalidades de licitações e contratos firmados pela administração pública direta, autárquica e fundacional.

 

Além disso, a despeito das encomendas serem dispensáveis de licitação, sabe-se que a Lei nº 8.666/1993 não regula somente o certame licitatório, e sim todo o processo de contratação pública desde o planejamento prévio até as etapas de gestão do contrato (acompanhamento e fiscalização da execução) e de recebimento do objeto. Aliás, a Lei nº 8.666/1993 faz referência expressa às encomendas tecnológicas nos seus arts. 24, caput, inciso XXXI, e 57, caput, inciso V, o que reforça que tais modalidades especiais de compras públicas estão sujeitas às normas da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos.[1]

 

No entanto, frise-se que, por força do princípio da especialidade, as normas gerais de contratação pública contidas na Lei nº 8.666/1993 não se aplicam às encomendas tecnológicas quando (a) houver disposição contrária na legislação específica, é dizer, no art. 20 da Lei nº 10.973/2004, ou (b) as normas gerais de contratação forem incompatíveis com a natureza das encomendas, com destaque para a presença do risco tecnológico e para o fato de que estes ajustes lidam com soluções não disponíveis no mercado.

 

Noutras palavras: no âmbito da administração pública direta, autárquica e fundacional, os contratos de encomendas tecnológicas são regidos pelas normas gerais contidas no art. 20 da Lei nº 10.973/2004 e na Lei nº 8.666/1993, prevalecendo, no caso de antinomia, as disposições legais próprias das encomendas.

 

No que tange às normas específicas, as encomendas tecnológicas são regulamentadas, no âmbito federal, pelos arts. 27 a 33 do Decreto nº 9.283/2018. Cabe relembrar, ainda, que o Decreto nº 9.245/2017 faz menção às encomendas na área da saúde.[2]

 

Essas normas gerais e específicas se aplicam, induvidosamente, aos contratos de encomendas tecnológicas celebrados por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Doravante, será examinada a situação das empresas estatais federais.

 

II.c. Lei das Estatais

 

Entende-se por empresa estatal federal aquela entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, cuja maioria do capital votante pertença direta ou indiretamente à União. A expressão abrange as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as respectivas subsidiárias e as demais sociedades em que a empresa estatal detenha o controle acionário majoritário. 

 

De acordo com o art. 173, § 1º, III, da Constituição Federal, a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo, entre outros pontos, sobre licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.

 

Em cumprimento ao mandamento constitucional, foi promulgada a Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), que se aplica a toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista, dependente ou não, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos. Também se submete ao regime a sociedade empresária, inclusive a de propósito específico, que seja controlada, direta ou indiretamente, pelo Poder Público.

 

A Lei das Estatais foi regulamentada, no âmbito da União, pelo Decreto nº 8.945/2016.

 

As regras sobre licitações e contratos nas estatais estão previstas nos Capítulos I e II do Título II (arts. 28 a 84) da Lei nº 13.303/2016, as quais se aplicam tanto para as estatais dependentes quanto para as não dependentes. Quando o § 2º do art. 1º da Lei nº 13.303/2016 frisa que tais regras se aplicam “inclusive à empresa pública dependente”, a intenção do legislador é afirmar que, embora as empresas dependentes possam realizar as suas contratações com o custeio de recursos recebidos do ente federativo controlador, tal situação não atrai a incidência do regime jurídico aplicável à administração direta, autárquica e fundacional (GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 22).

 

As licitações e contratos das empresas estatais, portanto, não se sujeitam à Lei nº 8.666/1993; regem-se, isto sim, pela Lei das Estatais. Não obstante, a Lei nº 13.303/2016 tem sofrido críticas porque grande parte das suas disposições são meras reproduções da Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC), ou mesmo remetem para a Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), sem ruptura radical com a legislação aplicável às entidades submetidas ao regime jurídico de direito público.

 

Ademais, a Lei nº 13.303/2016 também é criticada por ter trazido regras uniformes a todas as empresas estatais, independentemente se exercem atividade econômica em sentido estrito ou se prestam serviços públicos, se atuam sob regime de livre concorrência ou de monopólio, se são dependentes ou não dependentes. A despeito da pertinência desta crítica, não se pode olvidar que a Lei das Estatais trouxe uma espécie de conteúdo mínimo, cabendo às empresas estatais publicar seu regulamento interno de licitações e contratos, compatível com o disposto na citada Lei, que lhe sirva de complemento, atenta às particularidades intrínsecas a cada uma delas. No âmbito da União, o prazo para editar esse regulamento próprio se encerrou no dia 30 de junho de 2018.

 

O regulamento interno pode incorporar outros temas, a depender dos objetivos estratégicos almejados pela organização, principalmente para conter normas relativas ao planejamento da contratação, em especial critérios para a identificação precisa da necessidade administrativa, para descrição do objeto da contratação, elaboração de orçamento estimativo, bem como elaboração de termos de referência e de projetos básicos (GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Op. cit., p. 39).

 

Do exposto até aqui, pode-se concluir que, diversamente do que acontece com a administração pública direta, autárquica e fundacional, as normas contidas na Lei nº 8.666/1993 não se aplicam às contratações feitas pelas empresas estatais, qualquer que seja a sua modalidade, nem mesmo às encomendas tecnológicas. Mas e quanto à Lei nº 10.973/2004?

 

II.d. Aplicabilidade da Lei nº 10.973/2004 às empresas estatais

 

A Lei nº 10.973/2004 não contém previsão expressa sobre a sua aplicabilidade às empresas estatais, mas também não contém nenhum dispositivo que aponte no sentido contrário. A bem da verdade, a Lei Geral de Inovação traz definições que, prima facie, englobam as estatais, tais como “agência de fomento” e “Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação – ICT”. Além disso, o art. 3º e vários outros fazem menção genérica a “empresas”, sem aparente restrição às estatais ou particulares. O art. 3º-A faz menção expressa a uma empresa estatal, a Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP (empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), porém em um contexto bem específico.

 

Em particular, o art. 20 autoriza a celebração das encomendas tecnológicas entre “órgãos e entidades da administração pública”, de um lado, e “ICT, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empresas”, do outro lado. Vê-se que, seja na qualidade de demandante, seja na qualidade de demandada, não se faz qualquer restrição explícita à participação das empresas estatais.

 

Essas constatações, porém, são insuficientes para solução do problema.

 

Retomemos, então, o exame da Lei das Estatais.

 

O art. 28 da Lei nº 13.303/2016 define que a licitação continua sendo a regra geral que se impõe às estatais por ocasião da contratação de serviços, inclusive de engenharia e de publicidade, aquisição, locação e alienação de bens, execução de obras e implementação de ônus real sobre os bens e ativos integrantes do seu patrimônio. Porém, a licitação é dispensável e inexigível, respectivamente, nas hipóteses previstas nos arts. 29 e 30.   

 

Dentre as hipóteses de dispensa de licitação no art. 29 da Lei das Estatais, destaca-se a que afasta o certame licitatório “nas contratações visando ao cumprimento do disposto nos arts. 3º, 4º, 5º e 20 da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, observados os princípios gerais de contratação dela constantes” (art. 29, XIV). Essa hipótese de dispensa é idêntica àquela contida no art. 24, caput, XXXI, da Lei nº 8.666/1993 para a administração direta, autárquica e fundacional.

 

A expressa menção à Lei nº 10.973/2004 nos parece um indicativo claro de que a Lei das Estatais reconhece a incidência da Lei Geral de Inovação no domínio das empresas estatais. Mesmo que o inciso XIV do art. 29 da Lei nº 13.303/2016 não existisse, ainda assim caberia reconhecer a plena aplicabilidade da Lei nº 10.973/2004. A um, porque a Lei Geral de Inovação tem fundamento também no inciso V do art. 23 da Constituição (e não apenas no art. 22, XXVII, c/c art. 173, § 1º, III), de modo que cabe à União legislar sobre o regime jurídico da ciência, tecnologia, pesquisa e inovação não só no âmbito da administração pública direta, autárquica e fundacional, mas também das empresas estatais. A dois, porque não se constata divergência de fundo entre a Lei nº 10.973/2004 e a Lei nº 13.303/2016, tampouco esta última afasta a incidência de legislações que regulam modalidades de contratação específicas regidas pelo direito privado ou público.

 

Também se aplicam às encomendas tecnológicas conduzidas pelas empresas estatais as demais normas contidas na Lei nº 13.303/2016, ressalvadas aquelas eventualmente incompatíveis com a Lei nº 10.973/2004 ou com a natureza dos contratos de encomenda. Havendo divergência entre as duas Leis, a conflito deve ser resolvido em favor da Lei nº 10.973/2004, em virtude do princípio da especialidade das normas jurídicas.[3]

 

Como a Lei nº 8.666/1993 não se aplica às empresas estatais, temas como a instrução do processo de contratação direta e o prazo de vigência dos contratos de encomendas tecnológicas são regidos, respectivamente, pelo § 3º do art. 30 e pelo art. 71, caput, II, da Lei das Estatais, senão vejamos:

 

Art. 30. (...) 
§ 3o  O processo de contratação direta será instruído, no que couber, com os seguintes elementos: 
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso; 
II - razão da escolha do fornecedor ou do executante; 
III - justificativa do preço.
 
Art. 71. A duração dos contratos regidos por esta Lei não excederá a 5 (cinco) anos, contados a partir de sua celebração, exceto:
I - para projetos contemplados no plano de negócios e investimentos da empresa pública ou da sociedade de economia mista;
II - nos casos em que a pactuação por prazo superior a 5 (cinco) anos seja prática rotineira de mercado e a imposição desse prazo inviabilize ou onere excessivamente a realização do negócio.
Parágrafo único.  É vedado o contrato por prazo indeterminado.

 

Não se aplicam, pois, às encomendas feitas pelas empresas estatais quaisquer normas contidas na Lei nº 8.666/1993, nem mesmo aquela prevista no art. 57, caput, inciso V, que determina que os contratos de encomendas tecnológicas terão duração máxima de 120 meses.

 

A nível regulamentar, os contratos de encomendas tecnológicas conduzidos pelas empresas estatais federais devem obediência ao Decreto nº 9.283/2018, exceto com relação ao art. 33, que atribui aos Ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (este último sucedido pelo Ministério da Economia) a competência para “editar as normas complementares sobre o processo de encomenda tecnológica, sem prejuízo de sua aplicação imediata e das competências normativas de órgãos e entidades executores em suas esferas”.

 

Entende-se que tais normas complementares só devem alcançar as encomendas feitas no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. É que as normas complementares são primordialmente voltadas a aspectos operacionais das encomendas, sendo que, no caso das empresas estatais, o art. 40 da Lei nº 13.303/2016 já indica que cabe ao regulamento interno de cada empresa dispor.

 

Com efeito, a principal função do regulamento próprio é estabelecer os procedimentos que serão adotados pelas empresas estatais nas suas licitações e contratos e, dentro desse propósito, detalhar os aspectos que devem ser considerados para a tomada de decisão. Aliás, o inciso IV do art. 40 estabelece que o regulamento interno deverá dispor especialmente quanto aos procedimentos de contratação direta, hipótese em que se enquadram as encomendas. Em virtude das particularidades de cada organização, é preferível que a própria empresa estatal defina, no respectivo regulamento interno, eventuais normas complementares que julgue adequadas, desde que compatíveis com a Lei nº 13.303/2016, a Lei nº 10.973/2004 e o Decreto nº 9.283/2018.

 

À luz do exposto, conclui-se que, em matéria de encomenda tecnológica, as empresas estatais seguem as normas gerais contidas no art. 20 da Lei nº 10.973/2004 e na Lei nº 13.303/2016. Havendo divergência entre tais normas, a solução do conflito favorece a Lei Geral de Inovação. No âmbito federal, as empresas estatais federais também devem observar o Decreto nº 9.283/2018. Eventuais normas complementares de que trata o art. 33 do aludido Decreto, editadas pelos Ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (atual Ministério da Economia), não alcançam as empresas estatais, na medida em que estas se submetem ao seu regulamento interno de licitações e contratos.

 

Para encerrar o presente estudo, remanesce um derradeiro ponto. Toda a abordagem acima parte do pressuposto de que a empresa estatal é a demandante (contratante) do objeto contratual. Porém, em tese, nada impede que uma empresa estatal seja contratada para executar, isoladamente ou em consórcio, uma encomenda tecnológica em favor de órgão ou entidade da administração pública contratante, desde que esse negócio esteja relacionado com os objetivos sociais da estatal.

 

Neste caso, em que a empresa estatal é a demandada (executora ou fornecedora da encomenda tecnológica), incide o art. 28, § 3º, inciso I, da Lei nº 13.303/2016, o qual afasta, no que toca à empresa, o dever de licitar ou mesmo de instaurar processo de contratação direta quando da comercialização, prestação ou execução, de forma direta, de produtos, serviços ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetos sociais. Na outra ponta, o ente público demandante instaurará, naturalmente, o processo de contratação direta por dispensa de licitação.

 

Frise-se, contudo, que nessa hipótese a empresa estatal atua em regime de competição com as organizações privadas que não integram a administração pública. O ente público contratante não poderá conferir tratamento favorecido às empresas estatais que “vendem” seus produtos e serviços pelo simples fato de serem estatais. A escolha do contratado deverá permanecer regida pelos critérios definidos no art. 27, § 8º, inciso II, do Decreto nº 9.283/2018 ("a escolha do contratado será orientada para a maior probabilidade de alcance do resultado pretendido pelo contratante, e não necessariamente para o menor preço ou custo, e a administração pública poderá utilizar, como fatores de escolha, a competência técnica, a capacidade de gestão, as experiências anteriores, a qualidade do projeto apresentado e outros critérios significativos de avaliação do contratado").

 

III. CONCLUSÃO

 

Por todo o exposto, CONCLUI-SE que:

 

(i) o art. 20 da Lei nº 10.973/2004 -- que trata do contrato de encomenda tecnológica -- se aplica às empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias (empresas estatais);

 

(ii) em matéria de encomenda tecnológica, as empresas estatais seguem as normas contidas no art. 20 da Lei nº 10.973/2004 e na Lei nº 13.303/2016. Havendo divergência entre as duas Leis, a solução do conflito deve ser resolvida em favor da Lei nº 10.973/2004, em virtude do princípio da especialidade das normas jurídicas; 

 

(iii) diversamente do que acontece com a administração pública direta, autárquica e fundacional, as normas contidas na Lei nº 8.666/1993 não se aplicam às contratações feitas pelas empresas estatais, qualquer que seja a sua modalidade, nem mesmo às encomendas tecnológicas. Bem por isso, temas como a instrução do processo de contratação direta e o prazo de vigência dos contratos de encomendas tecnológicas são regidos, respectivamente, pelo § 3º do art. 30 e pelo art. 71, caput, inciso II, da Lei nº 13.303/2016, e não pelos dispositivos equivalentes da Lei nº 8.666/1993 (arts. 26 e 57, caput, inciso V);

 

(iv) A nível regulamentar, os contratos de encomendas tecnológicas conduzidos pelas empresas estatais federais devem obediência ao Decreto nº 9.283/2018 (arts. 27 a 32). Eventuais normas complementares de que trata o art. 33 do citado Decreto, editadas pelos Ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (atual Ministério da Economia), não alcançam as empresas estatais federais, na medida em que estas possuem regulamento próprio de licitações e contratos; e

 

(v) é juridicamente possível que uma empresa estatal seja contratada para executar, isoladamente ou em consórcio, uma encomenda tecnológica em favor de órgão ou entidade da administração pública contratante, desde que esse negócio esteja relacionado com os objetivos sociais da estatal. Neste caso, em que a empresa estatal é a demandada (executora da encomenda tecnológica), incide o art. 28, § 3º, inciso I, da Lei nº 13.303/2016, o qual afasta, no que toca à empresa, o dever de licitar ou mesmo de instaurar processo de contratação direta quando da comercialização, prestação ou execução, de forma direta, de produtos, serviços ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetos sociais. Na outra ponta, o ente público demandante instaurará o processo de contratação direta por dispensa de licitação.  

 

É o parecer.

 

Brasília, 08 de agosto de 2019.

 

 

(assinado eletronicamente)

CAIO MÁRCIO MELO BARBOSA

ADVOGADO DA UNIÃO

RELATOR

 

 


Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 00688000724201990 e da chave de acesso 500b59f1

Notas

  1. ^ O Projeto de Lei nº 1.292/1995 – que define novo marco legal para as licitações e contratações públicas e revoga a Lei nº 8.666/1993 – contempla relevante novidade em seu art. 3º, inciso II, na medida em que dispõe que não se subordinarão à nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos as “contratações sujeitas a normas previstas em legislação própria”. Na hipótese de aprovação do Projeto, os contratos de encomendas tecnológicas deixarão de se subordinar às normas gerais contidas na nova Lei e ficarão sujeitos, exclusivamente, à legislação própria.
  2. ^ Coerente com a assertiva de que os Estados e o Distrito Federal podem complementar a legislação nacional, o Estado de São Paulo, a título de exemplo, editou o Decreto Estadual nº 62.817, de 4 de setembro de 2017, que "regulamenta a Lei federal nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, no tocante a regras gerais aplicáveis ao Estado, assim como a Lei Complementar [do Estado de São Paulo] nº 1.049, de 19 de junho de 2018, e dispõe sobre outras medidas em matéria da política estadual de ciência, tecnologia e inovação". 
  3. ^ Malgrado específica para as empresas estatais, a Lei nº 13.303/2016, com exceção do inciso XIV do art. 29, não faz qualquer menção à encomenda tecnológica, ao risco tecnológico ou à contratação de soluções não disponíveis no mercado. Sob essa ótica, tem-se que a Lei nº 10.973/2004 é legislação específica, porque atenta às particularidades que envolvem a área de ciência, tecnologia e inovação.  



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