ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA
COORDENAÇÃO-GERAL DE ESTUDOS E PARECERES


 

PARECER n. 00071/2020/CONJUR-MJSP/CGU/AGU

 

NUP: 08129.012370/2019-73

INTERESSADOS: SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS - SENAD

ASSUNTOS: ATOS ADMINISTRATIVOS

 

CONSULTA. ADMINISTRATIVO. PERDIMENTO DE BENS (CONFISCO). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA. FUNDOS. CONCOMITÂNCIA DE DESTINAÇÕES. ANTINOMIA.
I - A Lei nº 13.964/2019 previu que, regra geral, os recursos perdidos em favor da União, em razão de sentença penal condenatória, devem ser direcionados tanto ao Funpen quanto ao FNSP, de maneira concomitante, surgindo daí uma antinomia.
II - Os critérios legais e ordinários de solução de antinomia (hierarquia, cronologia e especialidade) são ineficazes para solucionar o impasse, porquanto as previsões legais entraram em vigor na mesma data e são regulados pelo mesmo patamar hierárquico normativo.
III - O operador do Direito não deve manifestar-se sobre a possível melhor decisão alocativa de recursos públicos, porquanto esta é uma esfera eminentemente política, que pressupõe o prévio e devido processo político, legislativo e de mérito administrativo de escolha de alocação de recursos púbicos.
IV - Num quadro de excepcional imperícia legislativa, que levou à uma situação em que os critérios legais e ordinários de solução de antinomias são ineficazes, é viável ao operador do Direito basear-se em decisão do STF e no consequencialismo jurídico para nortear a solução para o impasse do caso concreto, mantendo-se distante do mérito político, legislativo e administrativo de escolha alocativa de recursos públicos.
V - Após a alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019, o Funpen continua sendo a regra geral de destinação de recursos e bens perdidos em favor da União, sob pena de se esvaziar a decisão do STF na ADPF nº 347, que reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário nacional, bem como porque o Funpen sobressairia proporcionalmente mais prejudicado caso deixasse de obter essa fonte de ingresso de recursos públicos.  
VI - Por força de legislação especial, o confisco decorrente de crimes previstos na Lei nº 11.343/2006 continua sendo destinado ao Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso - Funad (Art. 243, parágrafo único, CF; CP; Art. 91, inc. II, CP, Art. 2º, Lei nº 7.560/1986; Art. 2º, § 13 da Lei nº 9.613/1998. Art. 63, § 1º da Lei nº 11.343/2006); o decorrente de crime de lavagem de lavagem de dinheiro, se este for processado e julgado pela Justiça estadual, deverá ser revertida ao respectivo Estado (Art. 4º-A, § 10º, Lei nº 9.613/1998) e o confisco decorrente de atividade criminosa perpetrada por milicianos continuam sendo vertido ao FNSP (Art. 3º, inc. II, alínea "c" da Lei nº 13.756/2018).
VII - As fianças quebradas ou perdidas, nos termos da legislação penal e processual penal, devem ser destinadas ao FNSP, por força do Art. 3º, inc. VII, da Lei nº 13.756/2018, com redação dada pela Lei nº 13.964/2019.
 
 
 

DO RELATÓRIO

 

Trata-se de consulta da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas - Senad acerca da destinação de recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, na forma da nova Lei nº 13.964/2019, que promoveu alterações na legislação penal e processual penal.

A consulta foi vazada da seguinte forma:

 

A recente aprovação do pacote anticrime, sancionado pelo Presidente da República no dia 24/12/19, trouxe algumas inovações, em especial quanto a destinação dos recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal. Para a correta aplicação das disposições legais por parte dessa Secretaria, apresentamos essa consulta à CONJUR com o objetivo de que reste definido para onde devem ser direcionados esses recursos. 
Foram aprovadas as seguintes inovações:
 
Art. 17. O art. 3º da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, passa a vigorar com as seguintes alterações: (FUNDO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA)
"Art. 3º ...................................................................................................................
...........................................................................................................................................
V - os recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras;
VI - os recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal;
VII - as fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal;
VIII - os rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FNSP.
 
Art. 133. Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado ou do Ministério Público, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público cujo perdimento tenha sido decretado.
§ 1º Do dinheiro apurado, será recolhido aos cofres públicos o que não couber ao lesado ou a terceiro de boa-fé.
§ 2º O valor apurado deverá ser recolhido ao Fundo Penitenciário Nacional, exceto se houver previsão diversa em lei especial." (NR)
 
Além disso, a lei que regulamenta o Fundo Penitenciário Nacional, Lei Complementar nº 79/94, também dispõe sobre a destinação dos bens, não tendo sido revogada pela novel legislação:
 
Art. 2º Constituirão recursos do FUNPEN:
I - dotações orçamentárias da União;
II - doações, contribuições em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis, que venha a receber de organismos ou entidades nacionais, internacionais ou estrangeiras, bem como de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras;
III - recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras;
IV - recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal, excluindo-se aqueles já destinados ao Fundo de que trata a Lei nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986;
 
Nesse cenário, apresenta-se a seguinte indagação:
 
1 - os recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal devem ser destinados ao FUNPEN ou ao FUSP?
 

Em suma, a área técnica pergunta para qual fundo devem ser direcionados os recursos e bens perdidos em favor da União, uma vez que as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019 preveem destinação concomitante para o Funpen e para o FNSP.

Posto que interessados na consulta, foi solicitado manifestação da Senasp e do Depen (SEI 10690616), os quais responderam tempestivamente (SEI 10709624 e 10726400), cada um defendendo que os recursos do confisco sejam direcionados para os respectivos fundos que administram.

 

É o breve relatório

 

DA FUNDAMENTAÇÃO

 

Em primeiro lugar, insta notar o Departamento Penitenciário Federal - Depen administra o Funpen (Art. 1º, LC nº 79/1994; Art. 32, inc., VIII, Dec. 9.662/2019), a Secretaria Nacional Antidrogas - Senad administra o Funad (Art. 1º da Lei nº 7.560/1986; Art. 20, inc. IV, Dec. 9.662/2019) e a Secretaria Nacional de Segurança Pública - Senasp administra o Fundo Nacional de Segurança Pública - FNSP (Art. 2º, parágrafo único da Lei nº 13.756/2018 c/c Art. 26 do Decreto nº 9.662/2019).

A Senad, portanto, formulou consulta acerca de um fundo que não é por ela administrado, razão pela qual foi solicitado manifestação da Senasp e do Depen.

 

Do fundo destinatário do perdimento de bens.

 

O tema da consulta é o perdimento de bens (ou confisco) decorrente de sentença penal condenatória, nos termos do Código Penal e também do Código de Processo Penal. Conforme o CP, o confisco é efeito secundário da pena:

 

Art. 91 - São efeitos da condenação:         (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;         (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:         (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;
b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.
 

Antes da publicação da Lei nº 13.964/2019, a qual possui um prazo curto de vacatio legis (30 dias - Art. 20), os recursos, bens, direitos e valores, sejam instrumentos ou produtos de crime, confiscados pelo Estado (lato sensu) eram destinados, em regra ao Fundo Penitenciários Federal - Funpen (Art. 48, §3º, CP; Art. 91, inc. II, CP; Art. 2º, Lc nº 79/1994). Em razão de previsão específica, o confisco decorrente de crimes previstos na Lei nº 11.343/2006 era destinado ao Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso - Funad (Art. 243, parágrafo único, CF; CP; Art. 91, inc. II, CP, Art. 2º, Lei nº 7.560/1986; Art. 2º, § 13 da Lei nº 9.613/1998. Art. 63, § 1º da Lei nº 11.343/2006). Porém, quanto ao crime de lavagem de lavagem de dinheiro, se este for processado e julgado pela Justiça estadual, deverá ser revertida ao respectivo Estado (Art. 4º-A, § 10º, Lei nº 9.613/1998). Por fim, confisco decorrente de atividade criminosa perpetrada por milicianos são vertidas ao FNSP (Art. 3º, inc. II, alínea "c" da Lei nº 13.756/2018).

Portanto, tínhamos 04 (quatro) possibilidades de destinação dos recursos e bens perdidos em razão de sentença penal condenatória: a) Funpen e excepcionalmente b) Funad, c) FNSP, e d) Estados (entes federativos). Depreende-se, então, que, regra geral, o confisco era destinado ao Funpen, salvo regramento especial em relação àquela lei geral.

Com a edição da Lei nº 13.964/2019, tal dinâmica pode ter sido alterada, mas sem revogar expressamente lei anterior, ocasionando dúvida no gestor público, objeto da presente consulta.

A segurança jurídica é a essência do Direito, o que demanda métodos interpretativos para se afastar supostas disposições legais em conflito. Essa antinomia (conflito aparente de normas) é resolvido pelo critério hierárquico, cronológico e o da especialidade, conforme a estrutura normativa hierárquica brasileira e a Lei de Introdução às Normas Brasileiras - LIDB:

 

Art. 2o  Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1o  A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2o  A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3o  Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
Art. 3o  Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
Art. 4o  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

 

A doutrina explica a aplicação de tais critérios:

 

No plano hermenêutico, a teoria das antinomias jurídicas está ligada ao problema da coerência do sistema jurídico. Para que um sistema seja coerente, é necessário que os seus elementos não entrem em contradição entre si. No Direito, os elementos que compõem um sistema jurídico podem entrar em conflito, surgindo, assim, as chamadas antinomias jurídicas. Geralmente isso ocorre quando diferentes normas jurídicas permitem e proíbem um mesmo comportamento, o que suscita uma situação de indecidibilidade que requer uma solução.
(...)
Diante da ocorrência de antinomias jurídicas, deverão ser utilizados os critérios de solução, hierárquico, cronológico e da especialidade. De todos estes critérios, o mais importante é o hierárquico, prevalecendo, inclusive, sobre todos os demais. Pelo critério hierárquico, havendo antinomia entre uma norma jurídica superior e uma norma jurídica inferior, prevalece a norma jurídica superior, dentro da concepção piramidal e hierarquizada do sistema jurídico.
(...)
Pelo critério cronológico, havendo antinomia entre a norma jurídica anterior e a norma jurídica posterior que verse sobre a mesma matéria, ambas de mesma hierarquia, prevalece a norma jurídica posterior.
Pelo critério da especialidade, havendo contradição entre uma norma jurídica que regule um tema genericamente e uma norma que regule o mesmo tema do modo específico, sendo ambas de mesma hierarquia, prevalece a norma jurídica especial. (g.n.) (SOARES, Ricardo Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica, 4ª edição, p. 114-116)
 

Assim, temos as seguintes regras: a) lei lato sensu hierarquicamente superior prevalece sobre as demais, b) lei especial prevalece sobre a geral e c) lei moderna prevalece sobre lei antiga, caso sejam de mesma hierarquia.

Prosseguindo na consulta, tem-se que a Lei nº 13.964/2019 (reforma do CP e CPP) alterou o Código de Processo Penal e a Lei nº 13.756/2018 (Lei do Susp) e da seguinte forma:

 

Art. 3º O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 133. Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado ou do Ministério Público, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público cujo perdimento tenha sido decretado.
§ 1º Do dinheiro apurado, será recolhido aos cofres públicos o que não couber ao lesado ou a terceiro de boa-fé.
§ 2º O valor apurado deverá ser recolhido ao Fundo Penitenciário Nacional, exceto se houver previsão diversa em lei especial.” (NR)

 

 

Art. 17. O art. 3º da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 3º ................................................................................................

.............................................................................................................

V - os recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras;

VI - os recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal;

VII - as fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal;

VIII - os rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FNSP.

 

A antinomia, pois, se estabelece entre o Código de Processo Penal e a Lei ordinária nº 13.756/2018, com as novas redações dada pela Lei nº 13.964/2019. E mais, ainda resta a redação da LC nº 79/1994, que versa sobre o Fundo Penitenciário, e que não foi expressamente revogado. Segue quadro para fins de comparação didática:

 

 

LC nº 79/1994 - Funpen Código de Processo Penal Lei nº 13.756/2018 - Susp

Art. 2º Constituirão recursos do FUNPEN:

I - dotações orçamentárias da União;

II - doações, contribuições em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis, que venha a receber de organismos ou entidades nacionais, internacionais ou estrangeiras, bem como de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras;

III - recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras;

IV - recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal, excluindo-se aqueles já destinados ao Fundo de que trata a Lei nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986;

V - multas decorrentes de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado;

VI - fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal;

IX - rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FUNPEN;

VII -                     (Revogado pela Lei nº 13.500, de 2017)

VIII -                    (Revogado pela Lei nº 13.756, de 2018)

X - outros recursos que lhe forem destinados por lei.

 

Art. 133. Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado ou do Ministério Público, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público cujo perdimento tenha sido decretado.     (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 1º Do dinheiro apurado, será recolhido aos cofres públicos o que não couber ao lesado ou a terceiro de boa-fé.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 2º O valor apurado deverá ser recolhido ao Fundo Penitenciário Nacional, exceto se houver previsão diversa em lei especial.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

 

 

 

Art. 3º Constituem recursos do FNSP:

I - as doações e os auxílios de pessoas naturais ou jurídicas, públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras;

II - as receitas decorrentes:

a) da exploração de loterias, nos termos da legislação; e

b) das aplicações de recursos orçamentários do FNSP, observada a legislação aplicável;

c) da decretação do perdimento dos bens móveis e imóveis, quando apreendidos ou sequestrados em decorrência das atividades criminosas perpetradas por milicianos, estendida aos sucessores e contra eles executada, até o limite do valor do patrimônio transferido;      (Incluído pela Lei nº 13.886, de 2019)

III - as dotações consignadas na lei orçamentária anual e nos créditos adicionais; e

IV - as demais receitas destinadas ao FNSP.

V - os recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras;      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

VI - os recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal;      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

VII - as fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal;      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

VIII - os rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FNSP.      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

 

Ao passo que o Art. 2º da LC nº 79/94 e o novo Art. 133 do CPP preveem que o perdimento de bens e as fianças quebradas ou perdidas vão para o Funpen, o novo Art. 3º, inc. VI da Lei nº 13.756/2018 prevê que tais recursos irão para o FNSP, sobressaindo-se daí uma antinomia.

Em primeiro lugar, deve-se abordar a questão de uma lei ordinária em face de uma lei complementar. Embora não haja uma revogação explícita, a lei ordinária em comento tenciona sim revogar a lei complementar, porquanto regulou inteiramente a mesma matéria (destinação do confisco em razão de sentença penal condenatória), sendo este um dos modos de revogação implícita, conforme Art. 2º, § 1º, Lindb supratranscrito.

A questão que se impõe saber é: pode uma lei ordinária revogar uma lei complementar? Ao contrário do que se possa imaginar a princípio, não existe relação de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, consoante há muito pacificado pelo Supremo Tribunal Federal:

 

Embargos de divergência em agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Acórdão recorrido destoa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 3. Revogação, pelo art. 56 da Lei 9.430/96, de isenção da COFINS concedida às sociedades civis de profissão legalmente regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. Legitimidade 4. Inexistência de relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente constitucional relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 5. A Lei Complementar 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1 - Moreira Alves, RTJ 156/721. 6. Embargos de divergência aos quais se dá provimento.(RE 509300 AgR-EDv, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-122 DIVULG 13-06-2016 PUBLIC 14-06-2016)

 

Portanto, o critério meramente hierárquico não soluciona a questão. Porém, é de se perceber que, caso uma lei ordinária regule matéria própria de lei complementar, então haveria aí um vício de inconstitucionalidade. Mas a recíproca não é verdadeira, ou seja, lei complementar pode regular matéria de lei ordinária, tendo em vista que o quorum daquela abrange o desta. Nesse sentido, a histórica decisão na ADC nº 1 - STF:

 

A jurisprudência desta Corte, sob o império da Emenda Constitucional nº 1/69 - e a Constituição atual não alterou esse sistema -, se firmou no sentido de que só se exige lei complementar para as matérias para cuja disciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e, se porventura a matéria, disciplinada por lei cujo processo legislativo observado tenha sido o da lei complementar, não seja daquelas para que a Carga Magna exige essa modalidade legislativa, o dispositivos que tratam dela se têm como dispositivos de lei ordinária (trecho do voto do Min. Moreira Alves - ADC 1)
 

Chega-se, então, à uma outra questão: a destinação do confisco em razão de sentença penal condenatória é matéria de lei  complementar ou lei ordinária?

A Constituição Federal não previu que tal disciplina seja abrangida por lei complementar. De outro lado, por se tratar de regulamentação de fundos, então resta imperioso a análise do Art. 165, §9º, inc. II da CF:

 

Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
§ 9º Cabe à lei complementar:
II - estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos.

 

Insta saber se a regra que estabelece a destinação do confisco em razão de sentença penal condenatória pode ser considerada como "condição para a instituição e funcionamento de fundos" a demandar lei complementar. E a resposta é negativa, na esteira do entendimento do STF. A escolha para qual fundo irão os recursos, bens e valores perdidos em favor da União não consubstanciam instituição ou funcionamento de fundos. O STF (Tribunal Pleno) já entendeu que o Art. 165, § 9º, inc. II, da CF demanda lei complementar para tratar do funcionamento geral dos fundos, o que já é dado pela Lei nº 4.320/64, recepcionada como lei complementar:

 

MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.061, DE 11.11.97 (LEI Nº 9.531, DE 10.12.97), QUE CRIA O FUNDO DE GARANTIA PARA PROMOÇÃO DA COMPETIVIDADE - FGPC. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 62 E PAR. ÚNICO, 165, II, III, §§ 5º, I E III, E 9º, E 167, II E IX, DA CONSTITUIÇÃO. 1. A exigência de previa lei complementar estabelecendo condições gerais para a instituição de fundos, como exige o art. 165, § 9º, II, da Constituição, está suprida pela Lei nº 4.320, de 17.03.64, recepcionada pela Constituição com status de lei complementar; embora a Constituição não se refira aos fundos especiais, estão eles disciplinados nos arts. 71 a 74 desta Lei, que se aplica à espécie: a) o FGPC, criado pelo art. 1º da Lei nº 9.531/97, é fundo especial, que se ajusta à definição do art. 71 da Lei nº 4.320/63; b) as condições para a instituição e o funcionamento dos fundos especiais estão previstas nos arts. 72 a 74 da mesma Lei. 2. A exigência de prévia autorização legislativa para a criação de fundos, prevista no art. 167, IX, da Constituição, é suprida pela edição de medida provisória, que tem força de lei, nos termos do seu art. 62. O argumento de que medida provisória não se presta à criação de fundos fica combalido com a sua conversão em lei, pois, bem ou mal, o Congresso Nacional entendeu supridos os critérios da relevância e da urgência. 3. Não procede a alegação de que a Lei Orçamentária da União para o exercício de 1997 não previu o FGPC, porque o art. 165, § 5º, I, da Constituição, ao determinar que o orçamento deve prever os fundos, só pode referir-se aos fundos existentes, seja porque a Mensagem presidencial é precedida de dados concretos da Administração Pública, seja porque a criação legal de um fundo deve ocorrer antes da sua consignação no orçamento. O fundo criado num exercício tem natureza meramente contábil; não haveria como prever o FGPC numa Lei Orçamentária editada nove antes da sua criação. 4. Medida liminar indeferida em face da ausência dos requisitos para a sua concessão, não divisados dentro dos limites perfunctórios do juízo cautelar.(ADI 1726 MC, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/1998, DJ 30-04-2004 PP-00027 EMENT VOL-02149-03 PP-00431 RTJ VOL-00191-03 PP-00822)
 

Logo, não há nenhum óbice para que lei ordinária trate da destinação do confisco oriundo de sentença penal condenatória, pois a determinação constitucional de lei complementar para regramento geral de fundos está concretizada na Lei nº 4.320/64, recepcionada como lei complementar. As demais matérias, então, podem ser disciplinadas por lei ordinária, à míngua de previsão constitucional de lei complementar para fins de determinar a destinação do confisco decorrente de sentença penal condenatória.

Esclarecidas tais premissas, e retornando à antinomia, temos aqui um caso bastante inusitado. Veja-se que o critério da hierarquia já foi afastado. Restando os critérios cronológicos e o da especialidade.

O critério cronológico talvez seria útil, no presente caso, para se analisar se o Art. 2º, incs. IV e VI da LC nº 79/1994 foram implicitamente revogados, em razão de lei posterior (Lei nº 13.964/2019) regular inteiramente mesma matéria (regra geral de destinação de confisco em razão de sentença penal condenatória). Todavia, como uma parte da lei posterior prevê a mesma destinação da LC nº 79/1994, isto é, para o Funpen, então prejudicialmente insta pesquisar a solução para a antinomia antes de se concluir pela revogação ou não do Art. 2º, incs. IV e VI da LC nº 79/1994.

Cumpre notar que o critério cronológico não resolve a antinomia interna presente na Lei nº 13.964/2019, pois esta mesma lei previu, concomitantemente, que, regra geral, os recursos do confisco em razão de sentença penal condenatória irão para o Funpen (Art. 3º da Lei nº 13.964/2019 que alterou o Art. 133 do CPP) e também para o FNSP (Art. 17 da Lei nº 13.964/2019 que alterou o Art. 3º da Lei nº 13.756/2018). Logo, por entrarem em vigência no mesma dia 23.01.2020, a cronologia normativa é ineficaz para inferir qual fundo será o destinatário, via regra geral, dos bens confiscados em razão de sentença penal condenatória.

O critério da especialidade igualmente não se presta a resolver a questão. Isso porque há 02 (duas) normas gerais, que regulam a mesma questão e que entraram em vigor na mesma data.

A interpretação do Art. 133, § 2º do CPP conduz ao entendimento de que todos os bens perdidos em favor da União deverão ser encaminhados ao Funpen, ressalvadas exceções da legislação especial. De igual modo, o Art.  3º, inc. VI, também prevê que todos os bens perdidos em favor da União deverão ser encaminhados ao FNSP.

Veja-se que, por "legislação especial", entende-se aquela que especificamente destinam bens de determinados crimes à um fundo outro. Por exemplo, o Funad recebe os bens oriundos do crime de tráfico de drogas; o Estado recebe os bens oriundos de lavagam de dinheiro, quando o processo tramitou na respectiva Justiça Estadual, e o FNSP já recebe aqueles bens oriundos de crimes perpetrados por milicianos, nos termos das respectivas leis supracitadas.

No momento em que um dispositivo legal prevê que todos os demais bens perdidos irão para este ou aquele fundo, essa norma é geral e não especial. Logo, temos 02 (duas) normas gerais, que entraram em vigência na mesma data.  Trata-se, à toda evidência, de imperícia legislativa do Congresso Nacional, que criou uma situação inusitada (sendo eufemista neste adjetivo), para a qual vias ordinárias de solução de antinomia não são eficazes.

  A Lei de Introdução às Norma do Direito Brasileiro é omissa quanto à solução de uma antinomia consistente na existência de regras gerais, que regulam inteiramente a mesma matéria, e que entraram em vigência na mesma data. Dada esta omissão, a mesma lei concede o norte ao operador do Direito:

 

Art. 4o  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

 

Com efeito, não se vislumbra analogia ou costumes aplicável ao caso em apreço, restando os princípios gerais de direito.

A questão é que não se sabe ao certo quais princípios de direito seriam gerais, mas é razoável assumir que, para a Administração Pública, os princípios previstos no Art. 37 da Constituição Federal são gerais, quais sejam: princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

O problema dos princípios é eles não possuem uma pré-definição conhecida e, por isso mesmo, abrem espaço para inserção de julgamentos morais e filosóficos do aplicador do Direito, que por vezes podem não reverberar um nível de aceitabilidade geral exigido pela segurança jurídica. Daí que a maioria dos princípios elencados não são especialmente adequados para resolver a questão posta nos autos. Talvez o princípio da eficiência possa auxiliar na solução do impasse. Mas a pergunta que impende ressaltar é: eficiência visando o quê? Existe algum bem jurídico que deva ser especialmente protegido em detrimento de outro?

A controvérsia aqui envolve, em suma, destinar mais recursos ao Fundo Penitenciário Nacional ou ao Fundo Nacional de Segurança Pública, os quais devem gastar recursos públicos para atingirem as seguintes finalidades:

 
LC nº 79/1994
Art. 3º Os recursos do FUNPEN serão aplicados em:
I - construção, reforma, ampliação e aprimoramento de estabelecimentos penais;
II - manutenção dos serviços e realização de investimentos penitenciários, inclusive em informação e segurança;                  (Redação dada pela Lei nº 13.500, de 2017)
III - formação, aperfeiçoamento e especialização do serviço penitenciário;
IV - aquisição de material permanente, equipamentos e veículos especializados, imprescindíveiafuncionamento e à segurançdos estabelecimentos penais;                  (Redação dada pela Lei nº 13.500, de 2017)
V - implantação de medidas pedagógicas relacionadas ao trabalho profissionalizante do preso e do internado;
VI - formação educacional e cultural do preso e do internado;
VII - - elaboração e execução de projetos destinados  à reinserçãsociadpresosinternados egressosinclusivpomeidrealizaçãde cursos técnicos e profissionalizantes;                  (Redação dada pela Lei nº 13.500, de 2017)
VIII - programas de assistência jurídica aos presos e internados carentes;
IX - programa de assistência às vítimas de crime;
X - programa de assistência aos dependentes de presos e internados;
XI - participação de representantes oficiais em eventos científicos sobre matéria penal, penitenciária ou criminológica, realizados no Brasil ou no exterior;
XII - publicações e programas de pesquisa científica na área penal, penitenciária ou criminológica;
XIII - custos de sua própria gestão, excetuando-se despesas de pessoal relativas a servidores públicos já remunerados pelos cofres públicos.
XIV - manutenção de casas de abrigo destinadas a acolher vítimas de violência doméstica.               (Incluído pela Lei Complementar nº 119, de 2005)
XV – implantação e manutenção de berçário, creche e seção destinada à gestante e à parturiente nos estabelecimentos penais, nos termos do § 2º do art. 83 e do art. 89 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal.               (Incluído pela Lei Complementar nº 153, de 2015)
XVI - programas de alternativas penais à prisão com o intuito do cumprimento de penas restritivas de direitos e de prestação de serviços à comunidade, executadosdiretamente ou mediante parceriasinclusivpomeidviabilizaçãde convênios e acordos de cooperação; e                  (Redação dada pela Lei nº 13.500, de 2017)
XVII - financiamento e apoio a políticas e atividades preventivas, inclusive da inteligência policialvocacionadas à reduçãdcriminalidade e da população carcerária.                  (Redação dada pela Lei nº 13.500, de 2017)
 
 
 
Lei nº 13.756/2018
Art. 5º Os recursos do FNSP serão destinados a:
I - construção, reforma, ampliação e modernização de unidades policiais, periciais, de corpos de bombeiros militares e de guardas municipais;
II - aquisição de materiais, de equipamentos e de veículos imprescindíveis ao funcionamento da segurança pública;
III - tecnologia e sistemas de informações e de estatísticas de segurança pública;
IV - inteligência, investigação, perícia e policiamento;
V - programas e projetos de prevenção ao delito e à violência, incluídos os programas de polícia comunitária e de perícia móvel;
VI - capacitação de profissionais da segurança pública e de perícia técnico-científica;
VII - integração de sistemas, base de dados, pesquisa, monitoramento e avaliação de programas de segurança pública;
VIII - atividades preventivas destinadas à redução dos índices de criminalidade;
IX - serviço de recebimento de denúncias, com garantia de sigilo para o usuário;
X - premiação em dinheiro por informações que auxiliem na elucidação de crimes, a ser regulamentada em ato do Poder Executivo federal; e
XI - ações de custeio relacionadas com a cooperação federativa de que trata a Lei nº 11.473, de 10 de maio de 2007 .
§ 1º Entre 10% (dez por cento) e 15% (quinze por cento) dos recursos do FNSP devem ser destinados a aplicação em programas:
I - habitacionais em benefício dos profissionais da segurança pública; e
II - de melhoria da qualidade de vida dos profissionais da segurança pública.
 

Em outras palavras, existe alguma preponderância entre os bem jurídicos consistentes no a) investimento em presídios e ressocialização de presos e b) formação de policiais e tecnologias para melhorar a segurança pública?

Afora as tentativas da doutrina e da jurisprudência em objetivar e sistematizar uma "ponderação de valores" ou um "método epistemológico de aplicação de princípios", que mais parecem tentar justificar superpoderes ao Judiciário, a verdade é que a resposta para aquela pergunta é obviamente política. A decisão alocativa de recursos pertence aos representantes do povo brasileiro, mediante o devido processo legislativo e democrático de escolha de gastos públicos. Não cabe, em regra, ao operador do Direito escolher quais desses bens jurídicos deverão ser privilegiados. Assim, o operador do Direito não deve se manifestar sobre a possível melhor decisão alocativa de recursos públicos, pois esta que pressupõe o prévio e devido processo político, legislativo e de mérito administrativo de escolha de alocação de recursos púbicos.

Todavia, num quadro de excepcional imperícia legislativa, que levou à uma situação em que os critérios legais e ordinários de solução de antinomias são ineficazes, é demandado do operador do Direito valer-se de outros instrumentos para se solucionar o impasse, sob pena de inoperância da máquina pública, mas mantendo-se distante do mérito político, legislativo e administrativo de alocação de recursos públicos, bem como do tortuoso e indeterminado caminho de "ponderação de interesses" ou de "métodos de aplicação de princípios".

O caso em apreço apresenta duas particularidades que pavimentam a solução para a antinomia, quais sejam: i) a ADPF nº 347 e ii) o consequencialismo jurídico.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, por meio do qual o Supremo Tribunal Federal, em processo que tendente a ser estrutural, proferiu a seguinte decisão liminar:

 

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.(ADPF 347 MC, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016)

 

Temos, então uma decisão, ainda que liminar, do Pleno do Supremo Tribunal, que reconhece falhas estruturais no sistema penitenciário nacional, notadamente quanto ao desrespeito aos direitos fundamentais dos custodiados. Em razão disso, o STF determinou i) a implantação da audiência de custódia e ii) o descontingenciamento do Funpen.

Esses são os parâmetros da conclusão da ADPF nº 347 e, em verdade, daí não se pode pressupor que em razão de tal decisão judicial se deva resolver a antinomia em favor do Funpen. Não há relação de causa e efeito. Descontingenciamento não implica (necessariamente) em proibição de excluir fontes de custeio do Funpen. Por outro lado, impende observar que, caso o Congresso Nacional resolvesse reduzir drasticamente as fontes de recursos do Funpen, então, de maneira transversa, estar-se-ia descumprimento decisão do STF. Sobre esse ponto (diminuição de fontes de recursos), o Depen foi objetivamente esclarecedor acerca da parca condição financeira do Depen:

 

Nesse contexto, esclarece-se que o Funpen constantemente vem sofrendo perdas de arrecadação. Sobre o assunto, o inciso VIII do art. 2º da Lei Complementar nº 79/1994 previa como recursos do Funpen 3% do montante arrecadado dos concursos de prognósticos, sorteios e loterias, no âmbito do Governo Federal. Contudo, a revogação deste dispositivo pela Lei nº 13.756/2018, com a adoção de novos percentuais, impactou diretamente a arrecadação proveniente de loterias.
A título ilustrativo, a arrecadação da modalidade de prognósticos numéricos, que concentra a arrecadação massiva das loterias, como a Mega-Sena, Quina e Lotofácil, antes ocorria na base de 3% para o Funpen e agora apenas na proporção de 1%.
Vale registrar que esta Coordenação vem realizando o acompanhamento sistemático da arrecadação do Funpen por meio dos sistemas estruturantes do Governo Federal, a fim de compatibilizar o ingresso de recursos financeiros do Fundo com a composição das fontes de recursos da dotação orçamentária. Ao longo do exercício de 2019, o acompanhamento pari passu da arrecadação sinalizou a possibilidade de haver o referido descompasso no final de 2019, o que ensejou o pedido de troca de fontes na segunda janela orçamentária em abril/maio daquele exercício. Esclarece-se que o "fonteamento" foi efetivado pela Secretaria de Orçamento Federal do Ministério da Economia (SOF/ME), a partir da utilização do superávit financeiro do próprio Funpen. Naquele momento, não apenas a Fonte 118 (loterias) se encontrava com expectativa de frustração de arrecadação. A própria Fonte 150 e a Fonte 180 (remuneração das disponibilidades) precisaram ser ajustadas (Nota Técnica n.º 2/2020/COFIPLAC/DIREX/DEPEN/MJ)

 

Assim, dado esse contexto fático de constante lapidação das fontes de ingresso de recursos no Funpen, é possível vislumbrar violação à decisão liminar prolatada na ADPF nº 347, caso se resolvesse o impasse em favor do FNSP. Não porque se abstrai da decisão do STF uma tese absoluta de proibição de diminuição de fontes de recursos, mas sim porque, concretamente, o Funpen tende a progressivamente perder fontes de ingresso de recursos, o que pode inviabilizar a execução orçamentária visando a diminuição das violações aos direitos fundamentais dos presos, refletindo em desobediência da decisão do STF.

Afora o peso de uma decisão do STF, as consequências de se retirar recursos do Funpen são mais prejudiciais do que se fosse do FNSP.

Embora o consequencialismo decisório seja uma vertente exegética controvertida, o fato é que o reconhecimento, pelo STF, de falhas estruturais na proteção de direitos fundamentais dos custodiados e, sobretudo, em razão da falência dos meios ordinários de solução de antinomia, a análise das consequências de cada possível solução da antinomia é medida que razoavelmente sobressai necessária. 

Tal demanda não é inédita. Parte da doutrina reconhece que "a consideração das consequências somente deva entrar em cena se as técnicas jurídicas convencionais supostamente não forem capazes de reduzir o conjunto das decisões juridicamente adequadas a um único elemento, i.e., a uma única decisão correta" (SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem. Revista de Direito Administrativo. In: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/27041/41531-86603-1-PB.pdf, p. 131. Acessado em 05.02.2020). No mesmo sentido, "as consequências exercem um papel residual nas decisões, sendo utilizadas, somente, quando argumentos institucionais não forem capazes de determinar uma solução, o que se poderia denominar de consequencialismo residual" (Consequencialismo judicial na modulação de efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade nos julgamentos de direito tributário. LEAL,  Fernando; DIAS, Danieal Gueiros. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Vol. 7, nº 03, dez/2017, pg. 825).

Aliás, o STF utiliza-se, com certa frequência, da retórica consequencialista. No âmbito tributário,  "os argumentos consequencialistas desempenharam um papel central em sua tomada de decisão, inclusive maior do que própria interpretação semântica da regra de incidência tributária" (Consequencialismo judicial na modulação de efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade nos julgamentos de direito tributário. LEAL,  Fernando; DIAS, Danieal Gueiros. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Vol. 7, nº 03, dez/2017, pg. 820).

Pode-se dizer que o consequencialismo é "a consideração dos impactos na realidade de alternativas de decisão ou cursos de ação" (LEAL,  Fernando; DIAS, Daniela Gueiros. Consequencialismo judicial na modulação de efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade nos julgamentos de direito tributário. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Vol. 7, nº 03, dez/2017, pg. 825).

Nessa esteira, o Depen informou que o perdimento de bens perfaz cerca de R$ 29,5 milhões, correspondendo a 9,60% do orçamento total do Funpen:

 

Inicialmente cabe destacar ser de R$ 307.589.798,00 a dotação orçamentária de 2020 do Fundo Penitenciário Nacional - Funpen. Deste valor, R$ 29.558.941,00, ou seja, 9,60% da dotação inicial, possui como fonte a arrecadação de recursos confiscados, aqueles provenientes da alienação de bens perdidos em favor da União Federal, bem como fianças quebradas ou perdidas, concentrados todos na Fonte 150 (Nota Técnica n.º 2/2020/COFIPLAC/DIREX/DEPEN/MJ - SEI 10726400)

 

Por sua vez, orçamento do FNSP é de R$ 1,51 bilhão (vide http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/30911-fundo-nacional-de-seguranca-publica. Acessado em 05.02.2020). Tomando-se o mesmo valor estimado de perdimento de bens em favor da União (R$ 29.558.941,00) tem-se que este corresponde a 1,9% do orçamento previsto para o FNSP. Como aquele valor bilionário foi buscando no site portal da transparência, talvez o mesmo não corresponda à exata realidade, porém, supõe-se tratar-se minimamente de um valor aproximado.

De qualquer modo, é consabido que o Funpen possui um orçamento muito inferior ao do FNSP, sobressaindo aquele por demais prejudicado caso perdesse tal fonte de custeio.

Ressalta-se que nesta análise consequencialista tentou-se não recair naquilo que tão bem Schuartz denuncia como sendo a "oposição de resistência aos resultados de decisões alternativas às preferidas e determinadas por aplicações prosaicas de regras jurídicas"  (SCHUARTZ, op., cit., p. 151), pois aqui não há solução preferida, notadamente considerando que ambos os fundos são pertencentes à União. A dita "preferência" não foi estabelecida a priori, mas sim por influência de decisão do STF na ADPF nº 347.

Assim, após a alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019, o Funpen continua sendo a regra geral de destinação de recursos e bens perdidos em favor da União, sob pena de se esvaziar a decisão do STF na ADPF nº 347, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional, bem como porque o Funpen sobressairia proporcionalmente mais prejudicado caso deixasse de obter essa fonte de ingresso de recursos públicos.  

Relembro que, por força do critério da especialidade, o Funad, os Estados e a FNSP continuam recebendo recursos de confisco, nos termos em prevê a respectiva legislação específica. Isso porque do enfrentamento entre lei especial anterior e lei geral posterior (antinomia de segundo grau), o critério da especialidade continua preponderante. Confira-se a doutrina: 

 
As antinomias de primeiro grau são solucionadas pelos seguintes critérios: o hierárquico (“a norma superior prevalece sobre a inferior”), o cronológico (“a norma posterior revoga a anterior”) e o da especialidade (“a norma especial pre- valece sobre a geral naquilo que dispõe”).
As antinomias de segundo grau (conflito entre normas e entre os critérios de solução) são resolvidas do seguinte modo: no conflito entre o critério hierárquico e o cronológico, prevalece o hierárquico. No conflito entre o critério da especialidade e o cronológico, prevalece o da especialidade. No conflito entre o critério hierárquico e o da especialidade, em geral, prevalece o hierárquico (Filho, Magalhães, Glauco Barreira. Curso de Hermenêutica Jurídica, 5ª edição, p. 102-103).

 

Destarte, o confisco decorrente de crimes previstos na Lei nº 11.343/2006 continua sendo destinado ao Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso - Funad (Art. 243, parágrafo único, CF; CP; Art. 91, inc. II, CP, Art. 2º, Lei nº 7.560/1986; Art. 2º, § 13 da Lei nº 9.613/1998. Art. 63, § 1º da Lei nº 11.343/2006); o decorrente de crime de lavagem de lavagem de dinheiro, se este for processado e julgado pela Justiça estadual, deverá ser revertida ao respectivo Estado (Art. 4º-A, § 10º, Lei nº 9.613/1998) e o confisco decorrente de atividade criminosa perpetrada por milicianos continuam sendo vertido ao FNSP (Art. 3º, inc. II, alínea "c" da Lei nº 13.756/2018).

 

Análise de ofício. Da fiança quebrada.

 

De ofício, procedo a análise da destinação das fianças quebradas ou perdidas, nos termos da legislação penal e processual penal. Aqui não houve a mesma antinomia do confisco. A lei posterior, isto é, a Lei nº 13.964/2019 previu que tais recursos são agora destinados ao FNSP, conforme Art. 3º, inc. VII, da Lei nº 13.756/2018, restando implicitamente revogado o Art. 2º, inv. VI, da LC nº 79/1994.

Nada obsta à revogação de uma lei complementar por uma lei ordinária, nos termos expostos acima. Ademais, considerando que o critério cronológico resolveu esta específica antinomia, ao operador do Direito não é dado valer-se de critérios residuais (consequencialismo jurídico) para resolvê-la.

 

DA CONCLUSÃO

 

Ante o exposto, sugere-se responder à consulta esclarecendo que a Lei nº 13.964/2019, notadamente em razão de sua antinomia interna, não produziu alteração no quadro de destinações de bens e recursos perdidos em razão de sentença penal condenatória. Assim, regra geral, os recursos e bens devem continuar sendo encaminhados ao Fundo Penitenciário Nacional - Funpen, por força do Art. 133, § 2º, do CPP; os recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens decorrente de crimes previstos na Lei nº 11.343/2006 continuam sendo destinados ao Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso - Funad (Art. 243, parágrafo único, CF; CP; Art. 91, inc. II, CP, Art. 2º, Lei nº 7.560/1986; Art. 2º, § 13 da Lei nº 9.613/1998. Art. 63, § 1º da Lei nº 11.343/2006); o decorrente de crime de lavagem de dinheiro, se este for processado e julgado pela Justiça estadual, continuará sendo revertido ao respectivo Estado (Art. 4º-A, § 10º, Lei nº 9.613/1998) e o confisco decorrente de atividade criminosa perpetrada por milicianos continuam sendo vertidos ao FNSP (Art. 3º, inc. II, alínea "c" da Lei nº 13.756/2018).

As fianças quebradas ou perdidas, nos termos da legislação penal e processual penal, devem ser destinadas ao FNSP, por força do Art. 3º, inc. VII, da Lei nº 13.756/2018.

Caso aprovado, sugere-se dar ciência deste parecer à Secretaria Executiva, à Senad, ao Depen e à Senasp.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 06 de fevereiro de 2020.

 

 

RAFAEL MELO CARNEIRO

Advogado da União

Coordenador-Geral de Estudos e Pareceres Substituto

 

 

 

 

 

 


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