ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
DEPARTAMENTO DE COORDENAÇÃO E ORIENTAÇÃO DE ÓRGÃOS JURÍDICOS
PARECER n. 00021/2020/DECOR/CGU/AGU
NUP: 25000.193248/2018-73
INTERESSADA: CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA SAÚDE (CONJUR/MS)
ASSUNTO: TRATAMENTO DIFERENCIADO E SIMPLIFICADO PARA AS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS.
EMENTA: DIVERGÊNCIA DE ENTENDIMENTO JURÍDICO ESTABELECIDO ENTRE A CONJUR/MS E A PGFN. ART. 146, III, "D", ART. 170, INC. IX, E ART. 179, DA CRFB/88. ART. 47, 48 E 49 DA LEI COMPLEMENTAR N.º 123/2006. TRATAMENTO DIFERENCIADO E SIMPLIFICADO PARA AS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA, AUTÁRQUICA E FUNDACIONAL, FEDERAL, ESTADUAL E MUNICIPAL. ANÁLISE DA VIABILIDADE JURÍDICA DE APLICAÇÃO DO LIMITE DE R$ 80.000,00 (OITENTA MIL REAIS) NAS COTAS RESERVADAS DE ATÉ 25% DO OBJETO DA CONTRATAÇÃO ÀS ME/EPP (ART. 48, INC. I E III, DA LC 123/2006).
I. A CRFB/88 determina que a ordem econômica deve desenvolver-se garantindo o tratamento diferenciado e favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (art. 170, inc. IX c/c art. 146, III, "d", CRFB/88) e ordena que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensem a estas empresas tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei (art. 179, CRFB/88).
II. Neste contexto foi edita da Lei Complementar n.º 123/2006, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa (ME) e da Empresa de Pequeno Porte (EPP).
III. Esta LC prescreve, dentre outros, dois direitos diversos e autônomos às ME e EPP: realização de processo licitatório destinado exclusivamente à participação de ME e EPP nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); e, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, garantia da cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto da contratação às ME e EPP. (art. 48, inc. I e III).
IV. A legislação não impôs para concessão de um destes direitos qualquer subordinação ou condicionante entre eles. E nem e mesmo fez qualquer alusão ao limite de R$80.000,00 (oitenta mil reais) às cotas reservadas à ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível
V. Princípio da legalidade administrativa.
VI. Acórdão n.º 1819/2018 - Plenário do Tribunal de Contas da União e PARECER SEI Nº 2027/2020/ME, seq. 14, da PGFN.
VII. Necessidade da análise da vantajosidade (art. 49, inc. III).
VIII. Da legislação pátria atual, não é possível de se inferir o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para as cotas reservadas à ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inc. I e III, da LC 123/2006).
Exmo. Sr. Coordenador-Geral,
Retornam autos que tratam de expediente encaminhado pela Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde (CONJUR/MS) para ciência deste Departamento sobre a aplicação do que chamou de limite sistemático de R$ 80.000,00 nas cotas reservadas às ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 47 c/c art. 48, inc. I e III, Lei Complementar n.º 123/2006).
A CONJUR/MS possui o entendimento no sentido de que "apesar do limite sistemático não constar expresso na norma reguladora, mantêm-se o entendimento pela sua aplicabilidade sob o prisma de manter uma contratação mais vantajosa em conformidade com os princípios administrativos e com o art. 3º da Lei de Licitações e Contratos Administrativos." Veja:
19. (...) é necessário ter total atenção para o limite sistemático do percentual a ser reservado.
20. Explica-se que deverá ser reservada cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. Observa-se que o legislador estipulou um percentual máximo a ser aplicado nesses casos, ou seja, até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto, mas silenciou quanto ao mínimo que deve ser utilizado pela Administração Pública e como deve ser analisado a escolha dessa porcentagem.
21. Entendemos que faz parte do poder discricionário da Administração o estabelecimento de cota em percentual inferior a este, exceto se houver norma específica que limite essa discricionariedade.
22. No entanto, deve-se ter atenção para o chamado limite sistemático do percentual a ser reservado, de modo que não ultrapasse o valor de R$ 80.000. Esse limite, apesar de não se encontrar expressamente previsto na norma, é decorrência de uma interpretação sistemática dos seus dispositivos. A este respeito, veja-se exemplo trazida por Ronny Charles:
(...)23. O limite sistemático busca, justamente, conferir coerência ao sistema, de modo a evitar que crie-se uma licitação exclusiva em valor superior ao definido pelo inciso I do art. 48 da Lei Complementar nº 123, dentro de um certame maior (Isso porque, entende-se que cada item num certame é considerado uma licitação independente).
(DESPACHO n. 04239/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU, seq. 2, aprovado pelo DESPACHO n. 04244/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU, seq. 3)
III- DA APLICABILIDADE DO LIMITE SISTEMÁTICO NAS COTAS DE ATÉ 25% PARA ME/EPP
13. Conforme já devidamente retratado por esta Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde caso a área não tenha comprovado o prejuízo da aplicação das cotas reservadas em alguma aquisição específica, é necessário ter total atenção para o limite sistemático do percentual a ser reservado.
14. Explica-se que deverá ser reservada cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. Observa-se que o legislador estipulou um percentual máximo a ser aplicado nesses casos, ou seja, até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto, mas silenciou quanto ao mínimo que deve ser utilizado pela Administração Pública e como deve ser analisado a escolha dessa porcentagem.
15. Entendemos que faz parte do poder discricionário da Administração o estabelecimento de cota em percentual inferior a este, exceto se houver norma específica que limite essa discricionariedade.
16. No entanto, deve-se ter atenção para o chamado limite sistemático do percentual a ser reservado, de modo que não ultrapasse o valor de R$ 80.000. Esse limite, apesar de não se encontrar expressamente previsto na norma, é decorrência de uma interpretação sistemática dos seus dispositivos.
(...)
17. O limite sistemático busca, justamente, conferir coerência ao sistema, de modo a evitar que crie-se uma licitação exclusiva em valor superior ao definido pelo inciso I do art. 48 da Lei Complementar nº 123, dentro de um certame maior (Isso porque, entende-se que cada item num certame é considerado uma licitação independente).
(PARECER n. 00427/2019/CONJUR-MS/CGU/AGU, seq. 7, aprovado pelo DESPACHO n. 02156/2019/CONJUR-MS/CGU/AGU, seq. 8)
Assim, pela NOTA n. 00254/2019/DECOR/CGU/AGU, seq. 10, aprovada pelo DESPACHO n.º 801/2019/DECOR/CGU/AGU, seq. 11, visando a instrução do feito e apuração de divergência de entendimento jurídico a ser dirimida, os autos foram encaminhados à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e ao Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal (DEPCONSU/PGF).
Então, a PGFN, pelo DESPACHO Nº 70/2019/CGLA/PGACD/PGFN-ME, seq. 12/HTML1, encaminhou os autos à Secretaria de Gestão do Ministério da Economia (SEGES/ME) para manifestação.
A SEGES/ME, pela Nota Técnica SEI nº 15368/2019/ME, seq. 13, elucidou que não acompanha o entendimento da CONJUR/MS, pois os incisos I e III do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06 são independentes, cada um representa um privilégio distinto:
Assim, esta Secretaria não acompanha o entendimento que a cota reservada não pode extrapolar os R$ 80.000,00, por se tratar de benefícios diferentes, consoante já explicado no item 5 desta Nota Técnica. (...) a cota reservada recai essencialmente na divisibilidade do objeto. Já o processo licitatório destinado exclusivamente à microempresas e empresas de pequeno porte - licitação exclusiva até R$ 80.000,00 (oitenta mil) -, está calcado, como prediz a literalidade da LC nº 123, de 2006, no valor da compra. Portanto, não se comunicam. Se fosse para limitar a cota reservada até R$ 80.000,00 (oitenta mil), indubitavelmente, deveria haver previsão expressa nesse sentido tanto na Lei Complementar nº 123, de 2006, quanto no Decreto nº 8.538, de 2015, o que não ocorre. Não pode haver interpretações ao largo da lei, sobrepujando-a. Isso em face do princípio da estrita legalidade. (grifos do original)
Ato contínuo, veio o PARECER SEI Nº 2027/2020/ME, seq. 13, que, na mesma linha do entendimento da SEGES/ME, demonstrou que não há subordinação entre os incisos I e III do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06, portanto estes dispositivos legais devem ser interpretado de forma autônoma, cada qual com suas finalidades e hipóteses de aplicabilidade específicas:
Desse modo, cada privilégio atribuído a Microempresas e Empresas de Pequeno Porte deve ser lido de forma autônoma, já que todos possuem a mesma hierarquia normativa, lógica e topológica. A imposição do limite do inciso I do art. 48 no inciso III implicaria subordinar este a aquele, o que não é previsto na lei ou na sua regulamentação, muito menos se mostra como medida necessária para salvaguardar a legalidade ou constitucionalidade da cota reservada, nos moldes em que prevista na redação literal do inciso III e na regulamentação do art. 8º do Decreto nº 8.538/15.
O DEPCONSU/PGF, pelo DESPACHO n. 00154/2020/DEPCONSU/PGF/AGU, seq. 16, registrou que "em pesquisa no repositório de manifestações do DEPCONSU, não foi encontrada manifestação jurídica sobre o aludido tema."
É o que importa relatar.
Passa-se a analisar.
Preliminarmente, deve-se destacar que o objeto ora em análise circunscreve-se à divergência de entendimento jurídico estabelecido entre a CONJUR/MS e a PGFN sobre a possibilidade jurídica de imposição do limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para as cotas reservadas às ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inc. I e III, da LC 123/2006).
Esta apreciação se dá em tese, com o objetivo de orientar e uniformizar entendimentos jurídicos sobre a situação de direito versada, nos moldes e limites trazidos pelo oficiante.
Deve-se deixar claro que não se analisa, neste momento, o ajuste propriamente dito de onde se originou a demanda, já que transborda a competência deste Departamento - que está delimitada pela Lei Complementar n.º 73/1993 e Decreto nº 7.392/2010.
Na mesma medida, providências administrativas, judiciais, e (ir)regularidades documentais, que recaiam sobre a eventual celebração do pacto, bem como análises que importem em considerações de ordem técnica, financeira ou orçamentária, e a conveniência e oportunidade da prática do ato, também não integram a apreciação do DECOR.
Pois bem. Avancemos.
Desde já adiantamos que nos filiamos a tese desenvolvida pela PGFN no sentido de que não se infere da legislação pátria o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) nas cotas reservadas às ME/EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inc. I e III, da LC 123/2006), pelas razões que passamos a expor.
A Constituição Federal determina que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, que tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, deve desenvolver-se garantindo o tratamento diferenciado e favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (art. 170, inc. IX c/c art. 146, III, "d", CRFB/88). Ordena ainda que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensem a estas empresas tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei (art. 179, CRFB/88).
Neste cenário, foi editada a Lei Complementar n.º 123/2006, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa (ME) e da Empresa de Pequeno Porte (EPP).
Segundo o Prof. Dr. André Rufino do Vale[1], "a Lei Complementar n. 123, de 2006, com as alterações promovidas pela LC 147, de 2014, que atualmente estabelecem o Estatuto Nacional da Micro e Pequena Empresa, cumpre essa tarefa de conformação legislativa do âmbito de proteção do direito fundamental assegurado na Constituição. Sua finalidade precípua é compor um completo sistema normativo que permita às micro e pequenas empresas o pleno exercício de seus direitos, de acordo com as prescrições constitucionais." Portanto:
Há um conteúdo mínimo ou essencial que a Constituição exige que seja respeitado e garantido pela legislação. Em suma, esse conteúdo jurídico tem duas dimensões básicas:
1. Tratamento isonômico: a exigência de isonomia, que já decorre de um princípio geral de direito e também, especificamente, do direito de igualdade protegido pelo artigo 5º, caput, do próprio texto constitucional, significa imposição de tratamento especial em razão do caráter jurídico e fático essencialmente distinto das micro e pequenas empresas em relação às demais atividades empresariais. A desigualdade na lei é logicamente oriunda da desigualdade fática que se consubstancia no tamanho ou porte diferenciado da atividade empresarial. Fundamentalmente, a diferenciação legal deve ter como objetivo a simplificação, a redução ou a eliminação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias.
2. Tratamento proporcional: a isonomia está intrinsecamente relacionada à proporcionalidade ou à razoabilidade da intervenção legislativa. A reserva legal estabelecida pelo artigo 179 da Constituição é também reserva legal proporcional, na medida em que exige que o legislador adote medidas proporcionais (adequadas, necessárias e razoáveis) de tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas. Aqui sempre estará presente o necessário controle de proporcionalidade da lei, seja na qualidade de proibição de excesso (Übermassverbot) ou em sua versão de proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot). Portanto, nesse âmbito, o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) pode ser traduzido como princípio da reserva legal proporcional (Vorberhalt des verhältnismässigen Gesetzes).
Assim, tal normativo dispõe, dentre diversas matérias, sobre, no Capítulo V, o acesso aos mercados e o tratamento diferenciado e simplificado destas empresas nas aquisições públicas (art. 42 a 49).
Para tanto, no que interessa no caso dos autos, prevê que a administração pública deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); e deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. Veja:
Art. 47. Nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
Parágrafo único. No que diz respeito às compras públicas, enquanto não sobrevier legislação estadual, municipal ou regulamento específico de cada órgão mais favorável à microempresa e empresa de pequeno porte, aplica-se a legislação federal. (Incluído pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública: (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
II - poderá, em relação aos processos licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, exigir dos licitantes a subcontratação de microempresa ou empresa de pequeno porte; (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
III - deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
§ 1o (Revogado). (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
§ 2o Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública poderão ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas.
§ 3o Os benefícios referidos no caput deste artigo poderão, justificadamente, estabelecer a prioridade de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente, até o limite de 10% (dez por cento) do melhor preço válido. (Incluído pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
(grifo nosso)
Da leitura da norma observa-se que a realização do processo licitatório destinado exclusivamente à participação de ME e EPP nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) (art. 48, inc. I) e a destinação da cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de ME e EPP em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inc. III) são direitos diversos e autônomos garantidos às ME e EPP.
Cada um destes direitos ocupa um inciso próprio de um mesmo artigo da norma, então eles possuem a mesma hierarquia normativa e topológica.
A legislação não impôs para concessão destes direitos qualquer subordinação ou condicionante entre eles.
Além disso, não há qualquer menção no texto legal sobre o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) na destinação das cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de ME e EPP em certames para aquisição de bens de natureza divisível.
Conforme sabido, o princípio da legalidade, que está previsto no caput, do art. 37, da CRFB/88[2] "significa que a Administração Pública nada pode fazer senão o que a lei determina", assim "a função do ato administrativo só poderá ser a de agregar à lei nível de concreção; nunca lhe assistirá instaurar originalmente qualquer cerceio a direitos de terceiros".[3]
E, como já dito, o tratamento favorecido concedido às ME e EPP pela LC 123/2006 visa permitir a estas empresas o pleno exercício de seus direitos de acordo com as prescrições constitucionais.
Portanto, parece-nos forçosa a conclusão no sentido de que da legislação pátria atual - art. 48, inc. I e III da Lei Complementar n.123/2006, não é possível de se inferir o limite sistemático de R$ 80.000,00 nas cotas reservadas às ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível, nos moldes defendidos pela CONJUR/MS.
Interpretar de forma diversa do aqui defendido parece-nos restringir direitos assegurados à ME e EPP onde a lei não restringiu, de forma a inovar o ordenamento pátrio, o que é vedado pelo princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput, CRFB/88).
No mesmo está o Acórdão n.º 1819/2018 - Plenário do Tribunal de Contas da União ao enunciar que "a aplicação da cota de 25% destinada à contratação de microempresas e empresas de pequeno porte em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inciso III, da LC 123/2006) não está limitada à importância de oitenta mil reais, prevista no inciso I do mencionado artigo." Veja:
Acórdão:
9.3. dar ciência à Secretaria de Educação do Estado do Paraná, em razão dos fundamentos constantes do voto que fundamenta o presente acórdão, de que:
9.3.1. não há, na Complementar Lei 123/2006, e no decreto que a regulamenta, determinação no sentido de que a aplicação da cota de 25%, de que trata o inciso III do art. 48 da referida lei, estaria limitada à importância de R$ 80.000,00, prevista no inciso I do referido dispositivo, razão pela qual não procede o entendimento de que esses incisos devem ser interpretados de forma cumulativa;
(grifo nosso)
E também o PARECER SEI Nº 2027/2020/ME, seq. 14, a PGFN que, ao entender pela "inviabilidade jurídica de aplicação do limite previsto no inciso I do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06 às cotas reservadas previstas no inciso III do mesmo artigo", esclareceu que:
10. (...) o inciso III possui a mesma hierarquia do inciso I (normativa pois estão na mesma lei; topológica pois são incisos do mesmo artigo e lógica porque não são estabelecidos condicionamentos mútuos de qualquer natureza) e é plenamente capaz de excepcioná-lo. Desse modo, realmente, a cota reservada poderia em tese superar o limite do inciso I, mas essa situação não traz problemas lógicos, não é inconstitucional ou ilegal, muito menos abusiva ou excessiva. São privilégios independentes e autônomos entre si: a cota reservada do inciso III possui a exata mesma força normativa do que a licitação reservada do inciso I e é plenamente possível que, na prática, aquela venha a gerar uma situação que não seria possível pela mera aplicação desta. Novamente: trata-se da lei excepcionando a si mesma.
11. Subordinar o inciso III ao inciso I configura inovação na lei. Em momento algum a lei ou o legislador (muito menos a regulamentação respectiva) determinou a utilização do patamar de R$80.000,00 em qualquer situação que não para a licitação exclusiva do inciso I. A subcontratação (privilégio autônomo) pode perfeitamente gerar um ganho econômico superior a R$80.000,00 para a ME/EPP e da mesma forma a cota reservada (também um privilégio autônomo em relação ao inciso I). É plenamente possível que os 5% ou 10% do empate ficto (art. 44 da Lei Complementar nº 123/06) represente um montante superior a R$80.000,00 em licitações de elevada monta. Alegar que não limitar a cota seria "abuso" nos afigura como ilógico, já que a lei traz vários outros privilégios que ultrapassam essa limitação e sobre os quais, salvo melhor juízo, não recai qualquer dúvida sobre sua razoabilidade.
12. Ao nosso ver, como já explicitado pela Secretaria de Gestão, ainda que a operacionalização dos incisos I e III ocorra de forma similar, cada um representa um privilégio distinto, cabendo ao administrador escolher qual se enquadra na situação, aplicando-o de forma autônoma. O inciso I (licitação exclusiva) é dirigida a contratações de quaisquer natureza de pequeno vulto: serviços continuados em órgãos pequenos com baixo número de postos, fornecimentos de baixo quantitativo de bens, serviços de baixa complexidade - todos elas tendem a possuir valor do item baixo por natureza. Tais contratações seriam dirigidas às ME/EPP por serem objetos passíveis de execuções por empresas com organização mais simples ou iniciando no mercado etc.
13. Já o inciso III trata também de uma contratação de maior simplicidade, mas não em razão do valor da contratação, mas sim em razão da natureza do objeto: uma aquisição de bens de natureza divisível. Tais tipos de contratos são simples, a princípio, porque demandam apenas a obtenção do produto com fornecedores e a revenda (ou a obtenção de insumos e a construção do produto para venda), sem relações de trato sucessivo, em regra. E se forem mais complexas, nada impede que o privilégio seja afastado, nos termos do art. 10 do Decreto 8.538/15. Para esse tipo de contrato, em que a razão da destinação a ME/EPP não é o seu tamanho, mas a sua natureza, não faz sentido impor um limite de valor (leia-se: de tamanho) não previsto na lei.
14. Se, por exemplo, há a aquisição de bens com custo unitário elevado, mas sem complexidade no seu fornecimento, a aplicação isolada do inciso III continuaria a, em tese, cumprir com os objetivos da lei de "promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional", na medida em que torna acessível à ME/EPP um tipo de contrato que ela seria apta a prestar adequadamente. Essa situação que não ocorreria se houvesee a imposição de um limite de valor artificial, que impediria, na prática, o usufruto desse benefício em situação na qual ele seria potencialmente proveitoso.
15. Desse modo, cada privilégio atribuído a Microempresas e Empresas de Pequeno Porte deve ser lido de forma autônoma, já que todos possuem a mesma hierarquia normativa, lógica e topológica. A imposição do limite do inciso I do art. 48 no inciso III implicaria subordinar este a aquele, o que não é previsto na lei ou na sua regulamentação, muito menos se mostra como medida necessária para salvaguardar a legalidade ou constitucionalidade da cota reservada, nos moldes em que prevista na redação literal do inciso III e na regulamentação do art. 8º do Decreto nº 8.538/15.
Vale colacionarmos que a aferição do patamar de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) nos processo licitatório destinado exclusivamente à participação de ME e EPP nos itens de contratação deve se pautar nas seguintes orientações Orientações Normativas da AGU:
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 10 (*)
A ADVOGADA-GERAL DA UNIÃO, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I, X, XI e XIII, do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, considerando o que consta do Processo nº 00688.000777/2016-68, resolve expedir a presente orientação normativa, de caráter obrigatório a todos os órgãos jurídicos enumerados nos arts. 2º e 17 da Lei Complementar nº 73, de 1993:
"PARA FINS DE ESCOLHA DAS MODALIDADES LICITATÓRIAS CONVENCIONAIS (CONCORRÊNCIA, TOMADA DE PREÇOS E CONVITE), BEM COMO DE ENQUADRAMENTO DAS CONTRATAÇÕES PREVISTAS NO ART. 24, I e II, DA LEI Nº 8.666/1993, A DEFINIÇÃO DO VALOR DA CONTRATAÇÃO LEVARÁ EM CONTA O PERÍODO DE VIGÊNCIA CONTRATUAL E AS POSSÍVEIS PRORROGAÇÕES. NAS LICITAÇÕES EXCLUSIVAS PARA MICROEMPRESAS, EMPRESAS DE PEQUENO PORTE E SOCIEDADES COOPERATIVAS, O VALOR DE R$ 80.000,00 (OITENTA MIL REAIS) REFERE-SE AO PERÍODO DE UM ANO, OBSERVADA A RESPECTIVA PROPORCIONALIDADE EM CASOS DE PERÍODOS DISTINTOS."
INDEXAÇÃO: SERVIÇO. VALOR. CONTRATAÇÃO. PRORROGAÇÕES. LICITAÇÃO EXCLUSIVA PEQUENAS EMPRESAS. EMPRESAS DE PEQUENO PORTE. LICITAÇÃO CONVENCIONAL. DISPENSA EM RAZÃO DO VALOR.
REFERÊNCIA: Arts. 170, inc. IX e 179, da Constituição Federal; Arts. 7º, § 2º, inc. II, 8°, 15, inc. V, 23, caput e incs., §§ 1º e 5º, 24, inc. I e II, e 57, inc. II, da Lei nº 8.666, de 1993. Arts. 44 e 48, da LC nº 123, de 2006; Arts. 5º, 6º e 7º do Decreto n° 6.204, de 2007; Enunciado PF/IBGE/RJ 01. NOTA n. 00085/2016/DECOR/CGU/AGU; Despacho n. 00013/2017/DECOR/CGU/AGU; Parecer PGFN/CJU/COJLC nº 1545/2016; Parecer AGU/CGU/NAJMG 39/2007-MRAK; Acórdãos TCU 177/1994-Primeira Câmara, 260/2002-Plenário,696/2003-Primeira Câmara, 1.560/2003-Plenário, 1.862/2003-Plenário, 740/2004-Plenário, 1.386/2005-Plenário, 186/2008-Plenário, 3.619/2008-Segunda Câmara, 943/2010-Plenário, 1.932/2016 - Plenário.
GRACE MARIA FERNANDES MENDONÇA
PROCESSO Nº 00400.010939/2010-50 e 00688.000777/2016-68
(*) alteradas pelas PORTARIAS AGU Nº 572, DE 13.12.2011 - publicada no DOU I 14.12.2011 e AGU Nº 155, DE 19.04.2017 - publicada no DOU I 20.04.2017
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 47, DE 25 DE ABRIL DE 2014 (*)
"EM LICITAÇÃO DIVIDIDA EM ITENS OU LOTES/GRUPOS, DEVERÁ SER ADOTADA A PARTICIPAÇÃO EXCLUSIVA DE MICROEMPRESA, EMPRESA DE PEQUENO PORTE OU SOCIEDADE COOPERATIVA (ART. 34 DA LEI Nº 11.488, DE 2007) EM RELAÇÃO AOS ITENS OU LOTES/GRUPOS CUJO VALOR SEJA IGUAL OU INFERIOR A R$ 80.000,00 (OITENTA MIL REAIS), DESDE QUE NÃO HAJA A SUBSUNÇÃO A QUAISQUER DAS SITUAÇÕES PREVISTAS PELO ART. 9º DO DECRETO Nº 6.204, DE 2007."
REFERÊNCIA: Art. 146, inc. III, alínea "d", CF; arts. 47 e 48 da Lei Complementar n° 123, de 2006; arts. 6° ao 9°, Decreto n° 6.204, de 2007; NOTA DECOR/CGU/AGU n° 356, de 2008 - PCN; Parecer PGFN/CJU/CLC/n° 2.750, de 2008; Súmula n° 247 do Tribunal de Contas da União.
LUÍS INÁCIO LUCENA ADAMS
(*) Editada pela Portaria AGU nº 124, de 25 de abril de 2014, publicada no DOU I 2.5.2014 p.2-3
Revela-se necessário ainda ressaltar que, conforme preconizado pelo art. 49, inc. III, da LC 123/2006, a análise da vantajosidade à Administração Pública sempre se impõe, pois não deverá ser concedido o tratamento diferenciado e simplificado, previsto pelo art. 48 da LC 123/2006, para as microempresas e empresas de pequeno porte quando não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado. Observe:
Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:
I - (Revogado); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) (Produção de efeito)
II - não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;
IV - a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
(grifo nosso)
Por fim, cumpre-nos esclarecer que no "MODELO DE TERMO DE REFERÊNCIA - PREGÃO PRESENCIAL, ELETRÔNICO (COMPRAS)", atualmente disponibilizado pela AGU a matéria controversa nestes autos não está esclarecida, pois atualmente está explicado apenas que:
Nota explicativa: Nos termos do art. 48, III da Lei Complementar n. 123, de 2006 (atualizada pela LC n. 147/2014), a Administração deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. Por essa razão, parcela de até 25% (vinte e cinco por cento) dos quantitativos divisíveis deverão ser destinados exclusivamente a ME/EPP/COOP beneficiadas pela LC n. 123/2006. Essas “cotas reservadas” deverão ser definidas em função de cada item separadamente ou, nas licitações por preço global, em função do valor estimado para o grupo ou o lote da licitação que deve ser considerado como um único item (art. 9º, inciso I do Decreto n. 8.538, de 2015). O Termo de Referência deverá identificar as cotas reservadas para ME/EPP, assim como os respectivos itens/grupos de origem, de onde foram desmembradas.
A fixação das cotas reservadas poderá ser justificadamente excepcionada nas hipóteses do art. 10, incisos I, II e IV do Decreto nº 8.538, de 2015, a saber: I - não houver o mínimo de três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas [...] capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório; II - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e as empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, justificadamente; (...) IV - o tratamento diferenciado e simplificado não for capaz de alcançar, justificadamente, pelo menos um dos objetivos previstos no art. 1º.
Considera-se “não vantajosa a contratação” quando: I - resultar em preço superior ao valor estabelecido como referência; ou II - a natureza do bem, serviço ou obra for incompatível com a aplicação do benefício (Decreto nº 8.538, de 2015, art. 10, parágrafo único).
Nota explicativa: A indicação das cotas reservadas, nos termos do inciso III do art. 48, da LC n. 123, de 2006, não é aplicável para os itens e grupos alcançados pela exclusividade de que trata o inciso I do mesmo dispositivo (nota explicativa anterior) ou pela possibilidade de afastamento do tratamento diferenciado previsto no art. 49.
Disponível em: https://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/373175
Assim sendo, por todo o exposto, em resposta a consulta formulada pela CONJUR/MS, conclui-se que não é possível de se inferir da legislação pátria atual o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) nas cotas reservadas às ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inc. I e III, da LC 123/2006).
Ultimada a aprovação da presente manifestação, recomenda-se seja aberta tarefa SAPIENS à CONJUR/MS, à PGFN e ao DEPCONSU/PGF, para ciência e eventuais providências. Sugere-se também seja avaliada a conveniência de ciência à Comissão Permanente de Modelos de Licitações e Contratos para que verifique a necessidade de inserção de Nota Explicativa sobre a matéria onde couber.
À consideração superior.
Brasília, 23 de março de 2020.
DANIELA C. MOURA GUALBERTO
ADVOGADA DA UNIÃO
DECOR/CGU/AGU
Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 25000193248201873 e da chave de acesso a34197ba
Notas