ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA
COORDENAÇÃO-GERAL DO CONTENCIOSO JUDICIAL

COORDENAÇÃO-GERAL DE ESTUDOS E PARECERES


 

PARECER n. 00763/2020/CONJUR-MJSP/CGU/AGU

 

NUP: 00734.001194/2020-38 (REF. 00405.016604/2016-91)

INTERESSADOS: FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI E OUTROS

ASSUNTOS:

 

I - Direito Constitucional, Administrativo e Processual Civil. PARECER DE FORÇA EXECUTÓRIA n° 00140/2020/SGCT/AGU, que atesta a executoriedade de decisões singulares exaradas nos autos do RE n° 1.017.365, afetado à técnica da Repercussão Geral; Competência suplementar e residual dos órgãos de Consultoria Jurídica para o assessoramento da autoridade administrativa, quanto ao escorreito adimplemento de decisões judiciais (LC n° 73/93 e, no caso do MJSP, Portaria n° 1.075/17);
II - Comando judicial direcionado à Administração que removeu a eficácia do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU, até  julgamento final de mérito no recurso paradigmático e, mais, externou estar obstado à Administração (em sentido amplo, FUNAI e MJSP) "rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até que seja julgado o Tema 1031".
III - Possibilidade de juízo decisório nos processos administrativos de demarcação de terras indígenas, desde que em contexto distinto da aplicação do supracitado Parecer vinculante;
IV - O produto do RE nº 1.017.365, por vocação uniformizadora, irradiará seus efeitos não só em face da atividade judicante, mas sobre a função administrativa, sendo fundado o risco de invalidação de ato ou procedimento concluído à revelia da ratio decidendi que se consolidará no recurso paradigmático.
 

 

Senhor Consultor Jurídico Substituto, Dr. Rafael Comparin,

 

I - DO RELATÓRIO

 

A SECRETARIA-GERAL DE CONTENCIOSO (SGCT) direcionou a esta CONJUR-MJSP, por solicitação desta Pasta, o PARECER DE FORÇA EXECUTÓRIA n° 00140/2020/SGCT/AGU, que atesta a executoriedade de decisões singulares exaradas pelo Ministro Edson Fachin, Relator, nos autos do Recurso Extraordinário afetado à técnica da repercussão geral, registrado sob o n° 1.017.365 (TEMA 1031).

 

O case envolve insurgência recursal da FUNAI em face do acórdão do TRF da 4ª Região, que manteve a sentença proferida pelo Juízo da Vara Federal de Mafra – Seção Judiciária de Santa Catarina, a qual julgou procedente ação de reintegração de posse ajuizada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente – FATMA contra indígenas da etnia Xokleng, a FUNAI e, após a emenda à petição inicial, contra a União.

 

O mesmo órgão de Direção Superior da AGU encaminhou o OFÍCIO n. 00927/2020/SGCT/AGU, em 11/05/2020, a este MJSP, oportunidade em que nos cientificou da decisão, expediente que fora levado ao conhecimento da SECRETARIA-EXECUTIVA por meio do Ofício AGU nº 1639/2020/NAJ-CCJ/CCJ/CONJUR/MJ, no bojo destes autos SEI.

 

Nos itens 7 a 8 do PFE, explicitou os contornos das manifestações judiciais, dotadas de eficácia, vejamos:

 

"Em razão dos pedidos formulados, em 06/05/2020, o Min. Rel. Edson Fachi​n determinou, nos termos art. 1.035, § 5º, do CPC, “a suspensão nacional dos processos judiciais, notadamente ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, modulando o termo final dessa determinação até a ocorrência do término da pandemia da COVID-19 ou do julgamento final da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema 1031), o que ocorrer por último, salvo ulterior decisão em sentido diverso”. 
 
Já em 07/05/2020, o Min. Relator concedeu a tutela provisória incidental requerida, nos seguintes termos:
 
Diante de todas as considerações acima expostas, concedo a tutela provisória incidental requerida, nos termos do pedido, a fim de suspender todos os efeitos do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até o final julgamento de mérito do RE 1.017.365 (Tema 1031) já submetido à sistemática da repercussão geral pelo STF.
 
De consequência, determino à FUNAI que se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até que seja julgado o Tema 1031."

 

Em acréscimo, ressaltou a SGCT as dimensões objetiva e subjetiva do decisum de 07/05/2020, nos seguintes moldes:

 
"Materialmente, observa-se que a ordem consiste na determinação de suspensão de "todos os efeitos do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até o final julgamento de mérito do RE 1.017.365 (Tema 1031)".
 
Quanto à eficácia subjetiva, embora não tenha sido proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mas em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, a tutela provisória incidental possui nítido caráter erga omnes, de modo que o decisum deve ser observado pela Administração Pública Federal."
 

É o breve relatório.

 

II - DA ANÁLISE JURÍDICA

 

II.1 - Das considerações introdutórias sobre as atribuições das Consultorias Jurídicas para a orientação consultiva, acerca dos desdobramentos administrativos no adimplemento de decisões judiciais

 

A análise da exequibilidade de decisões judiciais, em face da Fazenda Pública Federal, reclama interpretação da Portaria n° 1.547/08 da Advocacia-Geral da União, norma que, em apertada síntese, explicita um dos pressupostos indispensáveis para que a elas se empreste eficácia, qual seja, ser a União parte atual ou potencialNessa linha, confira-se o teor de seu art. 6º:

 

“Art. 6o Incumbe ao advogado público federal, ao qual for distribuído o processo ou a intimação contendo decisão judicial dotada de exequibilidade, comunicá-la aos órgãos  jurídicos consultivos da Administração Pública Federal direta, autárquica ou fundacional, conforme o caso, para que estes comuniquem os órgãos, entidades e autoridades, por eles assessorados, responsáveis pelo cumprimento.
§ 1o Para fins desta Portaria, é dotada de exequibilidade a decisão judicial, desfavorável ou favorável à Administração Pública Federal, que determine a adoção de providência administrativa para o seu cumprimento, inclusive em face da suspensão de execução, revogação, cassação ou alteração de decisão anterior, desde que não exista medida ou recurso judicial que suspenda o seu cumprimento.”
 

A norma reproduzida fixa a atribuição da unidade de contencioso para análise da força executória de decisões judiciais, vale dizer, para a interpretação da exequibilidade e seus contornos. Aferir as repercussões administrativas decorrentes do cumprimento da decisão, ou seja, questões não tratadas no processo, integra a esfera de atuação da Consultoria Jurídica, conforme previsão do art. 11, I, da LC nº 73/93 e do art. 131 da CRFB/88: "Art. 11 - Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente: I - assessorar as autoridades indicadas no caput deste artigo;"

 

Na mesma toada, o art. 9, V, do Regimento Interno da Consultoria Jurídica junto ao MJSP, aprovado pela Portaria n° 1.075, de 21 de novembro de 2017: "Art. 9º - À Coordenação de Contencioso Judicial compete: (...) V - acompanhar e orientar, no âmbito do Ministério e de suas entidades vinculadas, a implementação e o exato cumprimento das determinações judiciais;"

 

II.2 - Da compreensão consultiva sobre a motivação considerada pela AGU, para confecção do Parecer nº GMF-05 (Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU)

 

O Parecer nº GMF-05, aprovado pela Advocacia-Geral da União e publicado na Imprensa Oficial juntamente com Despacho de aquiescência do Exmo. Sr. Presidente da República, no dia 20 de julho de 2017, apresenta conclusão no sentido de que a Administração Pública Federal deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da Pet. nº 3.388/RR, fixou as salvaguardas institucionais às terras indígenas, determinando sua aplicação a todos os processos de demarcação de terras indígenas, em consonância com o que esclarecido e definido pelo STF no aresto proferido no julgamento dos Embargos de Declaração opostos na referida petição e em outras decisões posteriores, todas analisadas no parecer, quais sejam, no RMS nº 29.087/DF, no ARE nº 803.462/MS e no RMS nº 29.542/DF. Consta da parte conclusiva do ato (fls. 38):

 

"9. Conclusões
Estas são as razões pelas quais se concluiu que a Administração Pública Federal deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da PET n. 3.388/RR, fixou as "salvaguardas institucionais às terras indígenas", determinando a sua aplicação a todos os processos de demarcação de terras indígenas, em consonância com o que também esclarecido e definido pelo Tribunal no acórdão proferido no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED n. 3.388/RR) e em outras de suas decisões posteriores, todas analisadas neste parecer (ex.: RMS n. 29.087/DF; ARE n. 803.462/MS; RMS n. 29.542/DF)." 

 

Em nossa leitura, a orientação da AGU nada mais fez que homenagear a jurisprudência - atual - do Pretório Excelso, exortando as premissas contidas no julgado paradigmático do STF - reafirmado - e, em última análise, os valores da segurança jurídica, isonomia, unidade e da força normativa da Constituição, de modo a permitir que a Administração Pública, Direta e Indireta, ao analisar pedidos de demarcação de terras indígenas, faça-o amparada na adequada exegese do texto constitucional.

 

II.3 - Da orientação nuclear contida no PFE 00140/2020/SGCT/AGU

 

Contudo, como visto, não foi essa a compreensão prevalente quando do enfrentamento do pedido de tutela provisória, pelo STF. O ato enunciativo da SGCT elucida a existência de tutela provisória incidental exarada no bojo do RE em Repercussão Geral n° 1.017.365 que removeu a eficácia do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU, até que advenha julgamento final de mérito no recurso paradigmático e, mais, externou estar obstado à Administração (em sentido amplo, FUNAI e MJSP) "rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até que seja julgado o Tema 1031".

 

II.4 - Dos caminhos administrativos, a partir da tutela provisória incidental, nos autos do RE 1.017.365, submetido ao rito da repercussão geral

II.4.1 - Do aproveitamento dos precedentes do STF

 

Um primeiro questionamento que pode ser feito pelos órgãos/entidades competentes para a prática de atos no seio de processos administrativos de demarcação de terras tradicionais (indígenas) é: (i) estaria vedado à Administração (MJSP e FUNAI) a tomada de decisões nestes procedimentos, direcionados à sua conclusão/finalização?

 

Em análise do comando dispositivo do decisum, não identificamos vedação absoluta para o seguimento e juízo decisório administrativo nos procedimentos de demarcação de terras em curso. Na linha do que se pode extrair do próprio PFE da SGCT e da decisão, o comando é mais restrito, a proibir que se aproveite o Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, para revisar.

 

Dito de outro modo, seria dado à Administração a tomada de decisões em processos de reconhecimento da tradicionalidade, desde que não se esteja a aplicar o Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU. Quanto ao MJSP, a decisão singular do STF proíbe a expedição da portaria declaratória dos limites da terra indígena, a que alude o art. 2º, §10, I, da Portaria n° 1.775, de 08 de janeiro de 1996, mediante o aproveitamento do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU.

 

(ii) A tutela provisória do Ministro Relator veda o aproveitamento da jurisprudência do próprio STF, no exercício das competências constitucionais e legais do MJSP, em demarcação de terras indígenas? Entendemos que a resposta é negativa. Parece-nos que a ratio decidendi do julgado orienta que não se aproveite as salvaguardas da PET 3388 de forma dissociada dos fatos que conferiram suporte àquelas conclusões, de modo que, se a Administração realizar esforço argumentativo (na motivação do ato) para demonstrar o liame, a semelhança fática entre o caso concreto e o precedente que se pretende aproveitar, não incidiria em descumprimento.

 

É a intelecção, a contrario sensu, do seguinte trecho decisório:

 

"Assim, a pretensão de interpretar o julgado sem levar em consideração todo o contexto no qual fora prolatado, aplicando as referidas salvaguardas de forma automática, não parece coadunar-se coma melhor hermenêutica constitucional"
 

Em suma, em havendo a escorreita aplicação da técnica do distinguishing (ou da comparação), para demonstrar a (des)semelhança entre o precedente que se pretende invocar e o caso concreto sob análise administrativa (processo revisional ou de demarcação inaugural) estaria autorizado à Administração impulsionar o feito, postura processual que, de todo modo, não depende da vigência e eficácia do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU. A propósito e sem pretensões de exaurimento do tema, compartilhamos, a seguir, breves considerações sobre como "aplicar" validamente um precedente judicial, à luz dos ensinamentos da doutrina especializada sobre o tema.

 

As regras são vocacionadas ao aproveitamento pela técnica da subsunção. Já os verbetes sumulares e os precedentes reclamam a técnica da comparação. Segundo a doutrina de DIERLE NUNES, “raciocinar por precedentes é, essencialmente, raciocinar por comparações. Comparam-se situações, fatos, hipóteses, qualidades e atributos" para extrair das comparações se há uma situação de similitude forte ou fraca, a fim de definir o aproveitamento do precedente ao caso pendente de julgamento. Ou seja, acaso queira justificar o aproveitamento do precedente, a argumentação jurídica deverá demonstrar a SIMILITUDE FÁTICA.

 

É o aproveitamento, no processo administrativo, mutatis mutandis, do art. 489, §1º, V, do CPC-15: "§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;"

 

II.4.2 - Da possibilidade residual de consideração do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU

 

Se, de um lado, identificamos lastro jurídico para a sequência administrativa nos processos de demarcação pelo aproveitamento de precedentes do Supremo Tribunal Federal, com as cautelas explicitadas em tópico anterior, acerca do adequado diálogo entre a motivação do ato e os fatos da decisão que funcionou como parâmetro, noutro giro, seria interpretação apressada compreender pela inexistência de margem atual para que o Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU continue a funcionar como vetor administrativo.

 

Isto porque a decisão abarca restrição ao juízo decisório revisional em virtude da dissonância entre o procedimento inicial de demarcação e as orientações agasalhadas pelo supracitado parecer. Por outro lado, smj, não nos parece existir óbice à consideração do ato normativo suspenso como baliza de instrução dos autos administrativos, com diferimento do juízo decisório para momento posterior ao advento da decisão final de mérito no RE, ante a sua vocação para a vinculatividade, endo e extraprocessual.

 

II.5 - Da irradiação dos efeitos de futuro acórdão no RE 1.017.365 em face dos procedimentos administrativos de demarcação pendentes (Da insegurança jurídica)

 

Os Tribunais de Superposição do Poder Judiciário Brasileiro (STJ e STF) foram constituídos para emprestar a adequada exegese em matéria infraconstitucional (legislação federal) e constitucional, de modo que seus pronunciamentos são, naturalmente, vocacionados a funcionarem como parâmetro-modelo de aplicação, em homenagem a valores como isonomia, segurança jurídica e integridade.

 

Dessarte, a função da Corte Suprema não se adstringe à reforma de julgados ou mesmo a solucionar casos concretos. Sua atuação transborda os interesses meramente inter partes, pelo que visa orientar a atuação da sociedade e dos demais órgãos jurisdicionais, por meio da fixação da correta exegese da norma constitucional (STF) ou infraconstitucional (STJ), com vista a criar uma norma-jurídica geral, que possa ser aproveitada em outras ações.

 

Nessa linha, o entendimento do Ministro Gilmar Mendes. Ao reconhecer a multiplicidade de recursos extraordinários que vinham sendo interpostos perante o Pretório Excelso, afirmou a impossibilidade do seu funcionamento como uma simples Corte de Justiça, pelo que deixou implícita a necessidade de mudança, para que os recursos em comento passassem a ser apreciados com um viés objetivo. Observe-se o trecho que permite este raciocínio:

 

 “A fórmula da Lei n. 8.038, de 1990, pode ensejar a ilusão de que os Tribunais Superiores podem continuar a ser Cortes de Justiça para cada caso concreto, o que é absolutamente impossível, aqui ou alhures. De alguma forma, os diversos sistemas jurídicos acabam encontrando mecanismos de racionalização para evitar que as Cortes Superiores se ocupem de causas repetidas”. (Curso de Direito Constitucional, saraiva, 2014. p. 888).

 

Tal conclusão decorre do crescente aproveitamento dos precedentes emanados destes Tribunais que, em sede de recursos extraordinários (aqui compreendidos o especial e o extraordinário, strito sensu) e ações originárias, têm repercutido sobre os demais órgãos, cada vez mais, de forma vinculante, sendo possível que, diante da não observância deliberada da decisão paradigmática, sobrevenha a cassação do pronunciamento ou escorreita impugnação judicial do ato administrativo.

 

Pois bem, com estas breves linhas, objetivamos demonstrar que o produto do RE nº 1.017.365, por vocação uniformizadora, irradiará seus efeitos não só em face da atividade judicante, mas sobre a função administrativa, sendo fundado o risco de invalidação de ato ou procedimento concluído à revelia da ratio decidendi que se consolidará no recurso paradigmático. Isto por que, diante de provável judicialização, se o desfecho administrativo se divorciar das diretrizes do precedente vinculante, a dinâmica processual internalizada pelo Codificador de 2015 orienta aos juízes a observância destes julgados, cuja aplicação apenas é afastada pela demonstração de que são casos distintos (distinguishing) ou que há elementos fáticos que permitem a defesa de sua superação (overruling).

 

Sobre a qualidade paradigma para futuros casos dos fundamentos determinantes do julgamento em RE admitido pela repercussão geral, são as lições do Professor Guilherme Marinoni:

 

"Resolvida a questão, a solução formulada deverá disciplinar todos os casos idênticos (arts. 1.039 e 1.040). Vale dizer: as razões oriundas do julgamento servem tendencialmente como precedente e nessa linha devem irradiar seus efeitos para todas as questões idênticas e semelhantes". (In Curso de Direito Processual Civil, Vol. 2, RT, 4ª ed., 2018: p. 572).
 

A propósito, a Advocacia-Geral da União, por meio da Portaria n° 487, de 27 de julho de 2016, apresenta diretrizes aos Advogados da União com atuação nos órgãos de contencioso para a redução do índice de litigiosidade, por meio de desistência de recurso, abstenção de resposta ou, até mesmo, reconhecimento jurídico do pedido, norma alinhada e que homenageia o sistema de precedentes do CPC-15, o que reforça provável insucesso na defesa de eventual ato administrativo contrário a acórdão extraído do julgamento em repercussão geral.

 

Em termos objetivos, em advindo ato administrativo que se revele contraditório com o precedente vinculante, o interessado prejudicado poderá alçar a controvérsia ao Poder Judiciário, que afastará o aproveitamento do julgado se e somente se restar demonstrado que são casos distintos ou que os fundamentos restaram superados (distinguishing ou overruling). Ausente estas circunstâncias, o desfecho do feito será a invalidação do ato, para a conformação aos fundamentos jurídicos do julgado vinculante. Observe-se a seguinte ementa, do STJ:

 

RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA. DIREITO DE RENÚNCIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. PRONUNCIAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL. JUÍZO DE RETRATAÇÃO.ART. 1.040, II, DO CPC. DISTINÇÃO. DESAPOSENTAÇÃO RECONHECIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM MEDIANTE DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS PELO INSS. QUESTÃO NÃO IMPUGNADA PELA AUTARQUIA FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL DO AGRAVADO.1. Retornam os autos para novo julgamento por determinação da Suprema Corte, para observância do paradigma em repercussão geral.2. O Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 661.256/SC, declarou, em repercussão geral, que, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à 'desaposentação', sendo constitucional a regra do art. 18, § 2º, da Lei 8213/91".3. Assentou a Suprema Corte, ainda, a irrepetibilidade dos valores alimentares recebidos de boa-fé, por força de decisão judicial, até a proclamação do resultado do julgamento.4. Hipótese em que o Tribunal de origem reconheceu o direito à desaposentação mediante a devolução dos valores recebidos diante do gozo do antigo benefício, sem a impugnação pela Autarquia Federal.5. Deve ser reconsiderado o aresto para manter a devolução do quantum  auferido, tal como firmado no acórdão proferido em apelação, ante o trânsito em julgado para o INSS.6. Agravo regimental provido para negar provimento ao recurso especial interposto por Rubens Puff (art. 1.040, II, CPC).(AgRg no REsp 1225241/SC, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 23/06/2020)

 

Acrescente-se que a decisão ora objeto de ateste de executoriedade, conquanto não tenha obstado revisões/decisões em processos administrativos de demarcação de terras indígenas, carece de maior clareza sobre em quais hipóteses seria dado à Administração decidir, constitucionalmente, em momento anterior ao julgamento de mérito do RE, por exemplo, se estaria repristinado o procedimento então adotado anteriormente ao Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU e ao julgamento da PET 3388, se remanesceria o aproveitamento, casuisticamente, dos precedentes da própria Corte - o que defendemos -, para além da possibilidade de uma mudança na jurisprudência.

 

Nesta ordem de ideias e diante de decisões que determinaram o sobrestamento de processos judiciais que debatam a tradicionalidade de terras e a posse indígena - comando aos juízes - e a não revisão de procedimentos de demarcação de terras indígenas lastreada no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU - diretriz à atividade administrativa -, identifica-se insegurança jurídica para o exercício, pela Administração, de suas competências constitucionais na matéria, o que pode recomendar o aguardo do julgamento do RE, ao menos, para a tomada de decisões administrativas, postura que guardaria simetria com o status atual dos feitos judiciais (sobrestados, por decisão do STF). 

 

Não quer isso dizer, como visto, que estariam obstadas decisões em processos administrativos sobre a matéria, mas que a Administração, em homenagem à segurança jurídica, à uniformidade, e ao princípio da proteção da confiança, em face dos destinatários dos processos de demarcação - indígenas e não indígenas - pode avaliar a conveniência e oportunidade em sobrestar a conclusão dos processos administrativos pendentes, até a finalização do julgamento no RE n° 1.017.365, mesmo porque não é recomendável que a Administração pratique, neste momento, com base em tutela provisória precária por excelência, atos que possam vir a ser irreversíveis, o que contrariaria a lógica do § 3º do art. 300 do CPC.

 

Apenas sugeriríamos, acaso a postura administrativa seja neste sentido, a expedição de ato administrativo motivado, para que a omissão não seja interpretada como mora da Administração, mas, sim, como o aguardo da definição de questão prejudicial.

 

III - CONCLUSÕES E ENCAMINHAMENTOS

 

Em atenção às disposições do art. 11, I, da LC n° 73/93, do art. 9, V, da Portaria n° 1.075, de 21 de novembro de 2017 e da Portaria n° 1/2020 da CONJUR-MJSP, a CGCJ submete à sua deliberação as seguintes conclusões e proposta de direcionamento:

 

i) De acordo com o PFE n° 00140/2020/SGCT/AGU, o ato enunciativo da SGCT elucida a existência de tutela provisória incidental exarada no bojo do RE em Repercussão Geral n° 1.017.365 que removeu a eficácia do Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU, até que advenha julgamento final de mérito no recurso paradigmático e, mais, externou estar obstado à Administração (em sentido amplo, FUNAI e MJSP) "rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até que seja julgado o Tema 1031";
 
ii) Não identificamos vedação absoluta para o seguimento e juízo decisório administrativo nos procedimentos de demarcação de terras em curso. Na linha do que se pode extrair do próprio PFE da SGCT e da decisão, o comando é mais restrito, a proibir que se aproveite o Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, para revisar;
 
iii) A ratio decidendi do julgado orienta que não se aproveite as salvaguardas da PET 3388 de forma dissociada dos fatos que conferiram suporte àquelas conclusões, de modo que, se a Administração realizar esforço argumentativo (na motivação do ato) para demonstrar o liame, a semelhança fática entre o caso concreto e o precedente que se pretende aproveitar, não incidiria em descumprimento;
 
iv) Seria interpretação apressada compreender pela impossibilidade de que o Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU continue a funcionar como vetor administrativo, uma vez que pode ser aproveitado adstrito à instrução processual, diferindo-se, para após a superveniência do julgado vinculante, o juízo decisório;
 
v) O produto do RE nº 1.017.365, por vocação uniformizadora, irradiará seus efeitos não só em face da atividade judicante, mas sobre a função administrativa, sendo fundado o risco de invalidação de ato ou procedimento que se revele, ao final, incompatível com a ratio decidendi que se consolidará no recurso paradigmático;
 
vi) Identifica-se insegurança jurídica para o exercício, pela Administração, de suas competências constitucionais na matéria, o que pode recomendar o aguardo do julgamento do RE, ao menos, para a tomada de decisões administrativas. Apenas sugeriríamos, acaso a postura administrativa seja neste sentido, a expedição de ato administrativo motivado, para que a omissão não seja interpretada como mora da Administração, mas, sim, como o aguardo da definição de questão prejudicial;
 
vii) Corroborada a opinião, sugere-se sejam os autos tramitados à SECRETARIA-EXECUTIVA DO MJSP, a PROCURADORIA-FEDERAL ESPECIALIZADA JUNTO À FUNAI, para cognição do parecer e do PFE n° 00140/2020/SGCT/AGU, e à SGCT.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 07 de julho de 2020.

 

 

     Bruno Luiz Dantas de Araújo Rosa                                                 Giselli dos Santos

                    Advogado da União                                                                 Advogada da União

                        Coordenador-Geral de Contencioso Judicial                            Coordenadora-Geral de Estudos e Pareceres                        

 

 

 

 




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