ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CÂMARA NACIONAL DE CONVÊNIOS E INSTRUMENTOS CÔNGENERES - CNCIC/DECOR/CGU


 

PARECER n. 00002/2020/CNCIC/CGU/AGU

 

NUP: 00400.006989/2013-85

INTERESSADOS: CÂMARA NACIONAL DE CONVÊNIOS E INSTRUMENTOS CONGÊNERES - CNCIC/DECOR/CGU

ASSUNTOS: AÇÕES SOCIAIS. DEFINIÇÃO.​ SUSPENSÃO DE TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. 

 

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL FINANCEIRO. SUSPENSÃO DE TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. SUSPENSÃO DA RESTRIÇÃO. CONVÊNIOS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. EDUCAÇÃO, SAÚDE, ASSISTÊNCIA SOCIAL. SEGURANÇA PÚBLICA. AÇÕES SOCIAIS. AÇÕES EM FAIXA DE FRONTEIRA. LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL. CADIN. PARECER NORMATIVO DA AGU N° GM-027
1. De acordo com o art. 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000; art. 26, caput, da Lei nº 10.522/02; e art. 13, caput, Lei n° 13.756/18; configuram exceções ao regime de impedimentos para transferências voluntárias: educação, saúde, assistência social, garantia da segurança pública, execução da Lei Penal, preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, proteção às vítimas e testemunhas, ações de defesa nacional, ações na faixa de fronteira, ações sociais, dentre outros que tenham previsão legal específica, desde que haja fundamento constitucional que dê suporte à exceção criada legalmente.
2. A Lei Fundamental previu lei complementar para versar normas gerais sobre finanças públicas, gestão financeira e patrimonial da administração, fiscalização, mas também reservou lei ordinária para a especificação de critérios (e exigências) a serem obedecidos previamente às transferências voluntárias. Os dispositivos que previram a edição de lei complementar devem ser interpretados sistematicamente com os demais, notadamente os que predeterminam expressamente a publicação de lei ordinária para assuntos específicos, como analogicamente ocorreu com o art. art. 195, § 10, da CRFB: “a lei definirá critérios de transferências de recursos para o sistema único de saúde e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida” (art. 195, § 10, da CRFB). Assim, a matéria é pertinente ao legislador ordinário, ainda que nada impeça a edição de lei complementar.
3. O conceito e reconhecimento do que sejam as ações sociais, para os fins do art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, são concretizados e identificados através de duas premissas: (a) a ação, objeto da transferência voluntária “deve objetivar o atendimento de um direito social”; e (b) “deve ter caráter obrigatório para o Poder Público”, sendo que esta segunda premissa "explica a natureza excepcional da norma em comento: a União não poderia deixar de executar as ações em benefício dos cidadãos titulares dos direitos sociais apenas porque o Estado, o Distrito Federal e o Município onde eles residem não cumpriram as obrigações assumidas anteriormente. Isso seria punir os cidadãos pela desídia de administradores, postura que certamente não encontra respaldo constitucional".
4. Assim, em conformidade com os Tribunais pátrios, encontra-se fundamento constitucional para caracterizar como "ações sociais" o objeto que visa o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, como aqueles mencionadas na Constituição Federal, nos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217 (alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto).
5. É possível que os Ministérios definam, através de atos normativos próprios, quais objetos são considerados como "ações sociais" para fins do art. 26 da Lei nº 10.522/02, dentro das atribuições e competências das matérias tratadas e políticas públicas executadas por cada Pasta.
6. Segundo o art. 20, § 2º, da CF, a faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei. Conforme o art. 26, caput, da Lei nº 10.522/02, a hipótese fora prevista pelo legislador de forma independente e sem qualquer ligação com direitos sociais. Por conseguinte, não cabe ao intérprete subordinar a determinação do seu sentido e alcance às demais esparsamente especificadas pelo legislador. Salvo o advento de expressa disposição legal em contrário, se por outro motivo não estiver impedido o repasse, as transferências voluntárias voltadas às ações em faixa de fronteira não estão adstritas ao regime das vedações para transferência de recursos a que se refere o art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, independentemente da natureza do objeto pactuado.
 

I - RELATÓRIO

 

Trata-se de expediente (consulta) encaminhado pelo Ministério do Meio Ambiente (AVISO n. 97/2013/SRHU/GM-MMA, Seq. 1), com o fito de obter pronunciamento desta Consultoria-Geral acerca da possibilidade de firmar convênios com unidades federativas que tenham sido consideradas inadimplentes em cadastros do Governo Federal.

Frisa-se, por oportuno, que a análise cinge-se à aplicabilidade da norma prevista no artigo 26 da Lei n° 10.522/2002, considerando o Parecer GM-027 (vinculante). Nesse contexto, o caso concreto à época versava sobre as ações de obras de saneamento básico, notadamente o manejo de planos de resíduos sólidos, se estavam albergadas no conceito de "ações sociais", cujo impacto imediato seria a retirada das restrições para recebimento de recursos públicos federais.

Nos NUPs 00688.001624/2014-76 e NUP 00688.001623/2014-21, apensados aos autos, restou evidenciada ampla divergência quanto ao sentido e alcance do termo "ações sociais", a qual veio à tona em decorrência dos entendimentos entre as Consultorias Jurídicas junto ao Ministério das Cidades e junto ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, bem como entre a Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Cultura e a atuante perante a Controladoria-Geral da União.

De modo mais detalhado, diz respeito à preservação ou não do entendimento constante do Parecer GM-27, incluído o questionamento se as expressões "ações sociais" e "ações em faixa de fronteira" devem ou não ser restritas às políticas públicas afetas aos programas governamentais de educação, saúde e assistência social, previstos no § 3º do art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A NOTA n. 007/2014/GBA/CGU/AGU, de 02 de julho de 2014, por sua vez, não fora apreciada e aprovada pela instância de deliberação superior, o que motivou o envio dos autos ao Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos - DECOR/CGU, tanto para análise quanto para despacho junto ao Consultor-Geral da União em exercício, tendo em vista o lapso temporal decorrido e o fato de o autor da Nota mencionada (Seq. 2) ter se deslocado para outro Departamento.

Posteriormente, consoante o DESPACHO n. 00342/2017/DECOR/CGU/AGU (Seq. 3), a direção do Departamento entendeu ser necessária a atualização da instrução do feito, de modo que fora sugerida a não aprovação da NOTA n. 007/2014/GBA/CGU/AGU e a oitiva das Consultoria Jurídicas junto ao Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Cultura, Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Procuradoria-Geral da União e Secretaria-Geral de Contencioso.

A CONJUR-MMA, no PARECER n. 00222/2018/CONJUR-MMA/CGU/AGU (Seq. 17), à míngua de informações da Secretaria Executiva, expôs que há indicativos de seguimento da orientação do Tribunal de Contas da União, tendo em vista a realização de consulta anterior à Corte, dirimida no Acórdão nº 2329/2014 – Plenário, cuja conclusão assentou que as "ações sociais" mencionadas na Lei nº 10.522/02 são restritas exclusivamente àquelas estatuídas no § 3º do art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal, quais sejam saúde, educação e assistência social.

Assim, ao prestar os subsídios, defendeu a revisão do entendimento adotado no Parecer GM-27 e, sucessivamente, que: a) o artigo 26 da Lei nº 10.522/02 contém norma de natureza financeira a respeito de transferência de recursos, na medida em que estabelece duas hipóteses de suspensão à restrição (sanção) para o recebimento de transferências voluntárias; b) a norma do art. 26 da Lei nº 10.522/02 perdeu o seu sentido após a alteração normativa a partir da MP nº 1.863-52/99, a qual afastou a previsão sancionatória do registro no Cadin, e diante da decisão do STF na ADI nº 1.454-4, na linha de que “a criação de cadastro no âmbito da Administração Pública Federal e a simples obrigatoriedade de sua prévia consulta por parte dos órgãos e entidades que a integram não representam, por si só, impedimento à celebração dos atos previstos no art. 6º do ato normativo impugnado"; c) que a Constituição Federal de 1988 remeteu à lei complementar a regulamentação a respeito da sistemática de transferência de recursos, portanto, o artigo 26 da Lei nº 10.522, de 2002, ao invadir a esfera material de competência da lei complementar, poderia ser considerado inconstitucional.

A unidade consultiva prosseguiu com os seguintes apontamentos: d) sob o aspecto da repartição vertical de competências concorrentes, o legislador ordinário federal, ao editar a Lei nº 10.522, de 2002, deveria respeitar os limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, com destaque para o caso concreto aqueles estabelecidos no § 3º do art. 25; e) a Lei de Responsabilidade Fiscal, no § 2º do art. 1º expressamente estabeleceu que as disposições da lei obrigam a União, entendendo-se que essa obrigação se impõe, inclusive, ao legislador ordinário; f) as exceções são sempre interpretadas restritivamente; g) alargar as exceções às referidas sanções institucionais e pessoais, sob o fundamento de que "não se pode punir o cidadão", é preocupar-se apenas com o imediato, em prejuízo de valores maiores como a ética, a responsabilidade fiscal, a prestação de contas, a moralidade, o combate à corrupção, contribuindo, ao fim e ao cabo, com a cultura da inadimplência, da impunidade e da ilegalidade cometida pelos maus administradores, menosprezando a inteligência da LRF; e h) a não realização de transferência voluntária de recursos não impede que os direitos sociais sejam efetivados. O Estado continua obrigado a manter o bem estar social e a justiça social por meio das transferências constitucionais e legais (obrigatórias), afora a própria garantia legal, nos termos do § 3º do art. 25 da LRF, da transferência voluntária de recursos para a educação, saúde e assistência social.

Por outro lado, a CONJUR-MINC, por intermédio dos PARECERES n. 00082/2018/CONJURMINC/CGU/AGU e n. 26/2018/CONJUR-MINC/CGU/AGU (Seqs. 12 e 14), entendeu que as ações relacionadas aos direitos culturais devem ser consideradas como "ações sociais", no que tange à aplicação do art. 26, da Lei nº 10.522/2002, mormente pelo seu "indelével caráter de direito humano e fundamental", o que ensejaria a preservação do entendimento consignado no Parecer GM-27. Concomitante a isto, salientou que não se poderia interpretar atos infraconstitucionais de maneira a amesquinhar obrigações firmadas pelo Brasil no plano externo e interno, tampouco conferir menor eficácia de medidas aptas a valorizar a implementação de direitos humanos. Por fim, as ações relacionadas ao direito à cultura (art. 215 da CF) integram a Ordem Social (Título VIII da CRFB), o que estaria em harmonia com o art. 26 da Lei nº 10.522/2002. Ademais, a temática havia constado de sua NOTA nº 228/2013/CONJUR-MinC/CGU/AGU, NUP: 00688.001623/2014-21, apenso, Seq. 1, entre tantas outras.

A CONJUR que atua junto ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, no PARECER/Nº 0145 - 6.8/2012/CCV/CONJUR-MP/CGU/AGU (NUP: 00688.001624/2014-76, apenso, Seq. 1) especificamente sobre ações na área de habitação social, assentou que apesar de a expressão "ações sociais", prevista no art. 26 da Lei nº 10.522/02 alcançar a área de habitação social, as transferências voluntárias destinadas à área de habitação social para Estados, Distrito Federal e Municípios devem respeitar as demais normas previstas na legislação, inclusive as previstas na LRF (art. 25, § 1º), ressalvada a existência de norma que o caracterize como transferência obrigatória.

À época e nos mesmos autos, a CONJUR-MCID, ao exarar o PARECER CONJUR/MCIDADES/N° 192/2013, firmou o entendimento de que o PARECER n. AGU/LS-03/2000 era vigente e válido, razão pela qual seria de observância obrigatória para toda a Administração Pública Federal e, consequentemente, a expressão "ações sociais" prevista no art. 26, da Lei nº 10.522/02, não alcançaria a área de habitação social, à luz da Lei de Responsabilidade Fiscal. Na NOTA n. 00193/2017/CONJUR-MCID/CGU/AGU houve reiteração do entendimento.

Posteriormente, instada a se manifestar novamente, a CONJUR-MP reiterou seu entendimento na NOTA n. 02168/2017/GCG/CGJOE/CONJUR-MP/CGU/AGU (NUP: 00688.001624/2014-76, apenso, Seq. 13).

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ao manifestar-se, enviou à Consultoria-Geral da União o PARECER PGFN/CAF/Nº 1591/2017, que ratifica as premissas aduzidas no PARECER PGFN/CAF/Nº 1767/2012, para expor seu entendimento na linha de que os requisitos mínimos para as transferências voluntárias previstos no art. 25, da Lei de Responsabilidade Fiscal, não podem ser afastados a não ser por outra lei complementar. Em outras palavras, o alcance semântico da expressão "ações sociais", constante do art. 26, da Lei nº 10.522/02, apenas pode ser determinado em observância à exceção prevista pelo § 4° do referido art. 25 da LRF, ou seja, restrito às ações de educação, saúde e assistência social.

A Secretaria-Geral de Contencioso, com fulcro no PARECER n. 00082/2017/ASSSGCT/SGCT/AGU (seq. 19, NUP 00688.001624/2014-76), afirmou que não é possível verificar a existência de precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal a respeito do alcance semântico das expressões "ações sociais" e "ações em faixa de fronteira", de que trata o art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002.

Procuradoria-Geral da União, através do Parecer n. 00340/2018/PGU/AGU (seq. 21, NUP 00400.006989/2013-85), entende que o conceito e abrangência do termo "ações sociais"  deve ser extraído dos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217, da Constituição Federal, ou seja, alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto. 

Tal entendimento estaria na esteira das decisões colegiadas da Primeira e Segunda Turmas do Superior Tribunal de Justiça.

Acrescenta também que o  Superior Tribunal de Justiça já excluiu expressamente do conceito de ações sociais o direito à infraestrutura urbana (tais como a pavimentação ou cascalhamento de rua e drenagem de vias públicas), a instalação de placas de sinalização turística, a construção de quadras poliesportivas e a aquisição de maquinário agrícola.

Por fim, a CONJUR atuante na atual Controladoria-Geral da União, conforme as balizas do PARECER n. 00319/2017/CONJUR-CGU/CGU/AGU (seq. 21, NUP 00688.001624/2014-76), concluiu que deve ser dada interpretação no sentido de que não sejam suspensas as transferências voluntárias decorrentes de convênios firmados para fins de efetivação dos direitos sociais previstos no art. 6º, da CRFB (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados - atualização do Parecer Vinculante GM-27), podendo haver uma análise técnica do concedente quanto ao efetivo caráter social do convênio e a sua vinculação a tais direitos (Parecer/CONJUR/AC/MPO/nº 641, de 25 de junho de 1996), além da eventual responsabilização do administrador público que deu causa à inadimplência (Art. 25, § 3º, da LRF c/c PARECER n. 00181/2017/CONJUR-CGU/CGU/AGU).

Além disso, dispôs não ser possível admitir pela simples interpretação literal de um dispositivo legal que a efetivação de valores constitucionais protegidos - direitos sociais - sejam afastados em razão de previsão de leis infraconstitucionais. Informa a tendência do STF no sentido de proteção dos direitos do cidadão (e.g. princípio da vedação ao retrocesso), além de a suspensão de transferência atingir indiretamente o ente federado, porém diretamente o cidadão.

Por fim, no que se refere a ações em faixa de fronteira, expôs que a intenção do legislador foi no sentido de proteger ações pertinentes à defesa de área "considerada fundamental para defesa do território nacional" (art. 20, §2º, da CRFB), sendo que, acaso existente convênio com ente federado para ações sociais no sentido proposto, estas também estariam ressalvadas da restrição. Recomendou, ao finalizar, atuação junto ao STF, STJ e TCU para se buscar uma interpretação conforme e definitiva quanto ao disposto no art. 26 da Lei n.º 10.522/2002 c/c art. 25, § 3º, da LRF e art. 6º, da CRFB.

Nesse contexto, percebe-se que esse tema assaz controverso há mais de dez anos. É chegada a hora de dirimi-lo, nos termos dos argumentos a seguir alinhavados.

É o relatório. Passa-se aos fundamentos.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

Inicialmente, cumpre informar que a matéria é complexa e envolve fundamentos constitucionais, infraconstitucionais e infralegais, assim como já ensejou diversas manifestações de órgãos jurisdicionais e administrativos, construídas após grandes discussões. É necessário ter em mente o arcabouço normativo que norteará a apreciação da controvérsia jurídica, sem descuidar dos substanciosos e plausíveis argumentos provenientes da doutrina e da jurisprudência.

Diante desse contexto, impende asseverar que na quadra atual toda e qualquer análise jurídica deve ter como ponto de partida o tratamento normativo dado pela Constituição Federal.

Assim sendo, mencione-se desde já que a República Federativa do Brasil, Estado Democrático (e Social) de Direito, tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 3°, III), que é vista como sobredireito pré-constitucional e pré-estatal, de maneira que a Constituição Federal e o Estado só se legitimam ao respeitar e ofertar dignidade (moral e material).

Com efeito, após a II Grande Guerra, percebeu-se a existência de valores superiores à lei e que vigência pode inclusive não implicar validade. O “Giro Kantiano” revelou que o indivíduo é um fim em si mesmo, tem dignidade e difere de coisa, tida como mero meio para atingir um fim. Trata-se de um conjunto de valores incorporados ao patrimônio da humanidade. Por consequência, o Direito não tem sido dissociado da Ética e da Justiça.

Saliente-se, ainda, que a dignidade humana, núcleo axiológico da Constituição em torno do qual gravitam os demais direitos fundamentais (inclusive os sociais), além de valor moral passou a ter valor jurídico.

A doutrina tem afirmado, inobstante a diversidade de opiniões, que a dignidade humana configura, ao mesmo tempo, um postulado normativo (princípio instrumental que informa a interpretação das normas), princípio (que aponta um fim a ser alcançado, normalmente associado ao mínimo existencial) e regra (na ideia de Fórmula do Objeto, concepção de Kant).

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, ao analisá-la enquanto princípio jurídico, bem explicita as eficácias que decorrem dessa natureza:

 

A dignidade da pessoa humana é um valor moral que, absorvido pela política, tornou-se um valor fundamental dos Estados democráticos em geral. Na sequência histórica, tal valor foi progressivamente absorvido pelo Direito, até passar a ser reconhecido como um princípio jurídico. De sua natureza de princípio jurídico decorrem três tipos de eficácia, isto é, de efeitos capazes de influenciar decisivamente a solução de casos concretos. A eficácia direta significa a possibilidade de se extrair uma regra do núcleo essencial do princípio, permitindo a sua aplicação mediante subsunção. A eficácia interpretativa significa que as normas jurídicas devem ter o seu sentido e alcance determinados da maneira que melhor realize a dignidade humana, que servirá, ademais, como critério de ponderação na hipótese de colisão de normas. Por fim, a eficácia negativa paralisa, em caráter geral ou particular, a incidência de regra jurídica que seja incompatível – ou produza, no caso concreto, resultado incompatível – com a dignidade humana.[1] (grifo nosso)

 

Desse modo, reafirme-se que com o fim da II Guerra Mundial ocorreu paulatinamente a consagração expressa da dignidade humana nas Constituições, ao mesmo tempo que impulsionou o fenômeno da rematerialização constitucional, leia-se, passaram a ser mais prolixas e dirigentes no tratamento dos direitos e das diretrizes político-sociais. Além disso, o reconhecimento da sua força normativa foi definitivo.

Como consequência direta desses acontecimentos, foram revisitadas as teorias da norma, das fontes do direito e da interpretação. Para os fins aqui propostos, importa mencionar que tanto os métodos de interpretação criados originariamente para o direito privado por Savigny, quanto os constitucionais e os princípios interpretativos de igual natureza, são úteis ao deslinde da questão.

Feitas essas digressões, é possível partir em busca de uma solução constitucionalmente adequada ao presente caso. Com efeito, cumpre transcrever e ler atentamente alguns dispositivos constitucionais importantes para a sua apreciação, in verbis:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida , à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
[...]
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
[...]
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)
[...]
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
[...]
XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
[...]
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
II - cuidar da saúde e assistência pública , da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
[...]
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
[...]
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
[...]
XV - proteção à infância e à juventude ;
§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
[...]
Art. 30. Compete aos Municípios:
[...]
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
[...]
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
[...]
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
[...]
b) direitos da pessoa humana;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
[...]
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[...]
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
[...]
V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
[...]
XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;
[...]
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV - os direitos e garantias individuais.
[...]
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria : (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
III – reservada a lei complementar;
[...]
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...]
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
[...]
VI – dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal , quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
[...]
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
[...]
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
[...]
Art. 163. Lei complementar disporá sobre:
I - finanças públicas;
[...]
V - fiscalização financeira da administração pública direta e indireta; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)
[...]
Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
[...]
§ 9º - Cabe à lei complementar :
[...]
II - estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos.
[...]
Art. 195. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
[...]
§ 10. A lei definirá os critérios de transferência de recursos para o sistema único de saúde e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida de recursos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
[...]
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[...]
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde , cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
[...]
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar , independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
[...]
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) (grifo nosso)

 

Calha reconhecer a importância dos efeitos que estes preceitos constitucionais são capazes de produzir no ordenamento jurídico, com todas as suas potencialidades, sob pena de vilipêndio à força normativa e à concretização da Constituição.

Percebe-se, sob as lentes da Constituição, o tratamento dado à dignidade e à vida humanas, sem as quais todo o ordenamento jurídico perde sentido e essência. É consagrado o entendimento de que o direito à vida abarca o direito de estar vivo e o direito à vida digna.

A Carta Magna foi pródiga ao tratar dos direitos individuais e sociais, especialmente a saúde, educação, assistência social, integridade física e moral, segurança, família, infância, adolescência, entre outros. A sua inobservância, não se pode esquecer, pode inclusive ocasionar intervenções de um ente federativo em outro, mediante o afastamento episódico da sua autonomia.

De modo mais específico, a interpretação dos preceitos supramencionados deve ser informada pelo método hermenêutico-concretizador (Hesse) e pelos demais princípios interpretativos constitucionais, especialmente, in casu, o da força normativa, máxima efetividade dos direitos fundamentais, unidade e interpretação conforme a Constituição (com os consectários da supremacia constitucional e presunção de constitucionalidade das leis).

Quando se busca propiciar a máxima efetividade do direito à saúde, por exemplo, que é um princípio (não uma regra ou um postulado normativo), resulta que a vida e a integridade física e psicológica estão sob o seu manto, protegidas e entendidas, em última instância, como uma questão atinente à saúde.

Sempre imbuído pelo espírito da máxima efetividade, mencione-se que situações de risco pessoal e social, eventualmente aptas a afetar testemunhas, vítimas, pessoas defensoras dos direitos humanos, crianças e adolescentes podem reclamar assistência social e até culminar na necessária proteção à sua saúde.

Por outro lado, ainda no plano constitucional, não se ignora que no bojo da Carta Maior constam formalidades e matérias a serem observadas nas mais variadas situações. Desse modo, na seara das normas gerais acerca de direito financeiro, especificamente finanças públicas, fiscalização financeira e da gestão financeira (e patrimonial), reservou-se a edição de lei complementar.

Nesse diapasão, acrescente-se, é prevista a possibilidade de decreto regulador, privativo do Chefe do Poder Executivo, com o desiderato de atingir a melhor aplicação e execução das leis provenientes do parlamento e, em determinadas hipóteses, de forma autônoma, balizar a organização e o funcionamento da Administração Pública, ou extinguir funções e cargos vagos.

O constituinte, nesta quadra das constituições prolixas, chegou a especificar no texto da Constituição que “a lei definirá critérios de transferências de recursos para o sistema único de saúde e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida” (art. 195, § 10, da CRFB).

Denota-se, por conseguinte, que a Lei Fundamental previu lei complementar para versar normas gerais sobre finanças públicas, gestão financeira e patrimonial da administração, mas também reservou lei ordinária para a especificação de critérios (o que inclui exigências) a serem obedecidos previamente às transferências de recursos. Com efeito, tracejou que deve ser observada a respectiva contrapartida (diferente de contraprestação), o que evidencia tratar-se de convênios, não de contratos.

Portanto, os dispositivos que previram a edição de lei complementar devem ser interpretados sistematicamente com os demais, notadamente os que predeterminam expressamente a publicação de lei ordinária para assuntos específicos, hipótese diferente das leis fruto da genuína competência legislativa baseada no princípio geral da legalidade (Estado Democrático de Direito), que independem de determinação expressa na Constituição.

Assim, incide aqui o princípio da unidade da Constituição, o mais importante segundo o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Ao expressar a relevância da interpretação sistemática de todo o direito, já disse o ex-Ministro Eros Roberto Grau que:

 

“não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado algum[2]. (grifo nosso)

 

Expostos esses argumentos iniciais, e levando em conta a controvérsia exposta, cumpre assinalar que, no exercício daquelas competências e em obediência às reservas feitas pela Constituição, foram editados diversos diplomas infraconstitucionais e infralegais.

Partindo das origens, foi instituído, pelo Decreto n° 1.006/93, o Cadastro Informativo dos créditos de órgãos ou entidades federais não quitados (CADIN). À época, foi prevista textualmente a possibilidade de tratamento excepcional e discricionário a ser conferido pelo Ministro supervisor do órgão ou entidade, caso houvesse justificativa cabal referente ao não cumprimento da obrigação. Superada a restrição, por óbvio, seria possível o desembolso dos recursos financeiros via convênios, acordos ou ajustes.

Percebe-se que se trata de um cadastro informativo, com a peculiaridade de atingir pretensões de outros sujeitos de direitos, cuja natureza é federal e serve aos interesses desta esfera. De outra forma, o seu conteúdo é de norma federal e específica, voltada para a União. Materializa um critério a ser observado antes da transferência dos recursos.

Noutro giro, foi editada a Medida Provisória n° 1.110/95, que passou a regular o CADIN e manteve a possibilidade de afastar, em caso de relevância e urgência, a critério do Ministro da Fazenda e do Ministro de Estado cuja supervisão se encontre o órgão ou entidade credora, as restrições provenientes do cadastro. Ademais, entre outras hipóteses, as restrições não poderiam alcançar municípios afetados por calamidade pública decretada pelo Governo Federal ou operações atinentes a crédito educativo.

Ocorreram sucessivas reedições de medidas provisórias com a mesma sistemática, quais sejam as de n° 1.142/95, 1.175/95, 1.209/95, 1.244/95, 1.281/96, 1.320/96, 1.360/96, 1.402/96, 1.442/96. Todavia, a MP n° 1.490/96 trouxe uma inovação em seu art. 21, a suspensão das restrições registradas no CADIN e no SIAFI, até 21 de agosto de 1996, para transferência de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios destinados à execução de ações sociais.

A partir de então este dispositivo foi repetido, mutatis mutandis, nas medidas provisórias de n° 1.490-11/96 a 1.490-16/96, 1.542/96, 1.542-18/97, esta renumerada sucessivamente até a 1.542- 28/97, momento em que ocorreu novo acréscimo excepcional, desta vez para as ações em faixa de fronteira.

A redação que traz as ações sociais e as que ocorrem em faixa de fronteira, como exceção ao regime das restrições para transferência de recursos federais, persistiu com as medidas provisórias de n° 1.542-29/97, 1.621-30/97 renumerada até a 1.621-36/98, sucedida pelas de n° 1.699-37/98 a 1.699-42/98, 1.770- 43/98 a 1.770-49/99, 1.863-50/99 a 1.863-55/99.

Diga-se de passagem que a MP n° 1.863-52/99 suprimiu a competência anterior para a edição de ato conjunto do Ministro da Fazenda e do Ministro de Estado cuja supervisão se encontre o órgão ou entidade credora, sendo que aquela possibilitava suspender impedimentos ocasionados pela inscrição.

Sobre a MP nº 1.442/96 e a 1.863-50/99, destacam-se os arts. 6º e 7º, segundo os quais:

 

Art. 6º É obrigatória a consulta prévia ao CADIN, pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta, para:
I - realização de operações de crédito que envolvam a utilização de recursos públicos;
II - concessão de incentivos fiscais e financeiros;
III - celebração de convênios, acordos, ajustes ou contratos que envolvam desembolso, a qualquer título, de recursos públicos, e respectivos aditamentos. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica:
a) à concessão de auxílios a municípios atingidos por calamidade pública decretada pelo Governo Federal;
b) às operações destinadas à composição e regularização dos créditos e obrigações objeto de registro no CADIN, sem desembolso de recursos por parte do órgão ou entidade credora;
c) às operações relativas ao crédito educativo e ao penhor civil de bens de uso pessoal ou doméstico.
 
Art. 7º A existência de registro no CADIN há mais de trinta dias constitui fator impeditivo para a celebração de qualquer dos atos previstos no artigo anterior.
§ 1º Não se aplica o disposto no caput deste artigo quando o devedor comprove que:
a) ajuizada ação, com o objetivo de discutir a natureza da obrigação ou o seu valor, tenha oferecido garantia idônea e suficiente ao Juízo, na forma da lei;
b) esteja suspensa a exigibilidade do crédito objeto do registro, nos termos da lei. (...)

 

É relevante notar que o STF exarou o seguinte acórdão sobre o tema:

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA 1.442, DE 10.05.1996, E SUAS SUCESSIVAS REEDIÇÕES. CRIAÇÃO DO CADASTRO INFORMATIVO DE CRÉDITOS NÃO QUITADOS DO SETOR PÚBLICO FEDERAL – CADIN. ARTIGOS 6º E 7º. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 6º RECONHECIDA, POR MAIORIA, NA SESSÃO PLENÁRIA DE 15.06.2000. MODIFICAÇÃO SUBSTANCIAL DO ART. 7º A PARTIR DA REEDIÇÃO DO ATO IMPUGNADO SOB O NÚMERO 1.863-52, DE 26.08.1999, MANTIDA NO ATO DE CONVERSÃO NA LEI 10.522, DE 19.07.2002. DECLARAÇÃO DE PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO, QUANTO AO ART. 7º, NA SESSÃO PLENÁRIA DE 20.06.2007.
1. A criação de cadastro no âmbito da Administração Pública Federal e a simples obrigatoriedade de sua prévia consulta por parte dos órgãos e entidades que a integram não representam, por si só, impedimento à celebração dos atos previstos no art. 6º do ato normativo impugnado.
2. A alteração substancial do art. 7º promovida quando da edição da Medida Provisória 1.863-52, de 26.08.1999, depois confirmada na sua conversão na Lei 10.522, de 19.07.2002, tornou a presente ação direta prejudicada, nessa parte, por perda superveniente de objeto.
3 . Ação direta parcialmente prejudicada cujo pedido, no que persiste, se julga improcedente.
(ADI 1.454/DF, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 3/8/07).

 

Ulteriormente, sobrevierem as de n° 1.973-56/99 a 1.973-69/2000, 2.095-70/00 a 2.095- 76/00, 2.176-77/00 a 2.176-79/00 quando, finalmente, foi convertida na Lei n° 10.522/02, com a mesma redação que previa a suspensão da restrição para fins de execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira:

 

Art. 26. Fica suspensa a restrição para transferência de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios destinados à execução de ações sociais ou ações em faixa de fronteira, em decorrência de inadimplementos objetos de registro no Cadin e no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - SIAFI. (Redação hodiernamente dada pela Lei nº 12.810, de 2013) (grifo nosso)
 

É de suma importância enfatizar que, entre as medidas provisórias e a conversão na Lei n° 10.522/02, veio a lume a Lei nº 10.201/02, cujo conteúdo atual encontra-se na Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, que dispõe o Fundo Nacional de Segurança Pública – FNSP e, de modo diferente, mas compatível, prevê que:

 

Art. 13. As vedações temporárias, de qualquer natureza, constantes de lei, não incidirão na transferência voluntária de recursos da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como dos Estados aos Municípios, destinados a garantir a segurança pública, a execução da lei penal e a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio. (grifo nosso)

 

O art. 25, parágrafo 3°, da LC n° 101/00, diferentemente da Lei n° 13.756/2018 e da n° 10.522/02 (art. 26), dispôs:

 

Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar , entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
§ 1º São exigências para a realização de transferência voluntária, além das estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias:
I - existência de dotação específica;
II - (VETADO)
III - observância do disposto no inciso X do art. 167 da Constituição ;
IV - comprovação, por parte do beneficiário, de:
a) que se acha em dia quanto ao pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, bem como quanto à prestação de contas de recursos anteriormente dele recebidos;
b) cumprimento dos limites constitucionais relativos à educação e à saúde;
c) observância dos limites das dívidas consolidada e mobiliária, de operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, de inscrição em Restos a Pagar e de despesa total com pessoal;
d) previsão orçamentária de contrapartida.
§ 2º É vedada a utilização de recursos transferidos em finalidade diversa da pactuada.
§ 3º Para fins da aplicação das sanções de suspensão de transferências voluntárias constantes desta Lei Complementar, excetuam-se aquelas relativas a ações de educação, saúde e assistência social. (grifo nosso)

 

Novamente surge a questão sobre o instrumento normativo efetivamente adequado para estabelecer os critérios e exigências para fins de transferências voluntárias, o que por lógica e paralelismo abarca os parâmetros e balizas aptos a impedir que sejam realizadas, a exemplo da criação de cadastro de inadimplentes e os impedimentos daí decorrentes. Afinal, sanções previstas no plano abstrato, sem um regime de aplicação, com cadastramento, exclusão e mitigações, se esvaem.

Diante do que já foi exposto, percebe-se, ao contrário do que muitos pensam, a questão não é inicialmente resolvida no plano da legalidade, mas sim no da constitucionalidade.

Como dito alhures, a CRFB previu lei complementar para versar sobre finanças públicas e responsabilidade na gestão fiscal, mas também determinou que a lei ordinária estabelecerá critérios para transferências na área de saúde e assistência, observadas as contrapartidas (art. 195, § 10, da CRFB).

Portanto, uma interpretação sistemática, unitária, teleológica e constitucionalmente adequada, direciona o intérprete no sentido de que a Carta Magna excepcionou do campo de incidência da lei complementar o estabelecimento de critérios e exigências para as transferências realizadas por convênios e instrumentos congêneres.

De outra banda, a Constituição previu a lei complementar como instrumento hábil a regular as finanças públicas, a fiscalização financeira e a responsabilidade na gestão – campos do direito financeiro, mas apenas enquanto normas gerais.

Assim, a exigência legal de que se deve "estar em dia" quanto às obrigações devidas ao ente transferidor, bem como quanto à prestação de contas de recursos anteriormente dele recebidos (art. 25, IV, “a” da LC n° 101/00), tem natureza de norma geral financeira direcionada aos demais entes, razão pela qual foi prevista naquela lei complementar geral. O mesmo ocorre com a que excepciona a suspensão de transferências voluntárias (art. 25, § 3°).

Por outro lado, de forma híbrida, constitui norma específica para a própria União, e enquanto tal deve acompanhar a ratio essendi do art. 195, § 10, da CRFB, que elege a lei ordinária como o instrumento hábil a prever critérios e exigências para as transferências de recursos, nas áreas de saúde e assistência social, observada a contrapartida.

A Constituição adotou essa sistemática, de normas gerais e complementares, outras vezes, como sucedeu com o Código Tribunal Nacional e a Lei nº 4.320/64.

Poder-se-ia objetar que esta interpretação, se plausível, só seria cabível quanto à saúde e à assistência social (art. 195, § 10, da CRFB). Todavia, não seria o melhor entendimento, vez que o constituinte já sinalizou qual o tratamento que deve ser dado às transferências envolvendo direitos sociais e, por razões lógicas, alcança a segurança pública e a educação, por exemplo. Em síntese, critérios e exigências para fins de transferências voluntárias nessas searas podem ser afetos à lei ordinária. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que matérias pertinentes à lei ordinária podem constar de leis complementares, sem incorrer em vício de inconstitucionalidade, sendo vedado apenas o inverso.

Vale destacar que as transferências voluntárias são desembolsos pautados na voluntariedade e com contrapartida do convenente, em cooperação, leia-se, caso o ente federativo não queira transferir (a União, na maioria dos casos, deseja fazê-lo), não há como impor tal conduta. Entretanto, são essenciais em uma federação centrífuga, que nasceu de um movimento de dentro (Estado Unitário) para fora, de forma fragmentada. Estes resquícios históricos, dentre outros fatores, fez com que a União detivesse a maioria da arrecadação tributária e das competências, o que persiste hodiernamente.

Assim, é adequado entender que o constituinte não pretendeu dificultar o repasse de verbas voluntárias aos demais entes, especialmente quando se trata de direitos tão caros, como saúde, assistência social, educação, segurança, ações sociais entre outros.

O tema não pode ser imune a restrições, mas também não pode prejudicar os administrados e o interesse público, sem fundamento jurídico e atenção às peculiaridades dos casos concretos. Por exemplo, sabe-se que o STF já decidiu certa vez que para ser decretada a intervenção federal em um Estado-membro que tenha deixado de pagar precatórios é necessário que fique comprovado que esse descumprimento é voluntário e intencional. Se restar provado que não pagou por dificuldades financeiras não há que se falar intervenção (IF 5101/RS, IF 5105/RS, IF 5106/RS, IF 5114/RS).

Esse entendimento, acerca do instrumento legal, é corroborado ainda pelo fato de o cadastro de inadimplentes ter sido criado inicialmente por Decreto, já com previsão de critérios, exigências e exceções à suspensão de transferências. Posteriormente, foi regulado por medidas provisórias e pela Lei n° 10.522/02, ambos de natureza ordinária, em que pese a LC nº 101/00 tenha abordado o assunto.

Em casos extremos e graves ligados a prestações de contas e responsabilidade fiscal, a CRFB já previu outros mecanismos, inclusive hipóteses de intervenção federal e estadual. Não é razoável submeter as exceções à proibição de recebimento de transferências ao campo da lei complementar (que impede edição de medida provisória), porque existem situações de extrema relevância e urgência, onde o ente federativo pode ter dificuldades financeiras involuntárias. A medida prejudicaria fortemente os administrados.

Como já ressaltado, as Leis n° 10.522/02 e 13.756/18 são posteriores à LC n° 101/00, o que poderia, a olhos desarmados, gerar a interpretação de que houve revogação no ponto em que esta tratou de matéria reservada à lei ordinária (na linha desta manifestação), todavia os dispositivos não são excludentes.

De outro modo, os dispositivos posteriores, ao excepcionarem a segurança pública, a execução da lei penal, preservação da ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio, as ações sociais e as ações em área de fronteira, não entram em rota de colisão com a previsão anterior relativa à educação, saúde e assistência social.

O legislador vislumbrou que, além da educação, saúde e assistência social, outras áreas importantes não poderiam ser afetadas em virtude da inadimplência de entes federativos. Por conseguinte, estendeu o rol paulatinamente até chegar à fórmula das “ações sociais” e “ações em faixa de fronteira” como exceções às restrições para transferência de recursos.

Nesse sentido, o Parecer nº 00002/2019/CPCIC/CGU/AGU (71000.009846/2014-67) da Câmara Nacional de Convênios e Instrumentos Congêneres da Advocacia-Geral da União, ao analisar a aplicabilidade do art. 92 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016 às ações que versam sobre assistência social enfrentou o tema de fundo, demonstrando que a Lei de Responsabilidade Fiscal, enquanto normal geral de finanças públicas é normativo que deve ser seguido por todos os entes da federação, não impedindo, todavia, que cada ente em específico crie novos requisitos para realização de uma transferência voluntária, ou mesmo crie exceções a estas exigências, desde que essas exceções tenham fundamento constitucional que a alicercem. Vale transcrever os pontos consagrados naquele opinativo:

 

34. Denota-se, por conseguinte, que a Lei Fundamental previu a lei complementar para versar sobre normas gerais sobre finanças públicas, mas não excluiu a possibilidade de que algumas peculiaridades sejam tratadas por  lei ordinária, como, v.g., critérios adicionais para serem observados previamente à transferência de recursos (art. 195, §10, CRFB). Especificidades tais que não ficam somente a cargo da União, também podendo os demais entes políticos criarem suas exigências no que compete as suas transferências voluntárias (art. 24, I, CRFB).
35. Vale destacar que não se pretende afirmar que exista hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. O atual cenário normativo e jurisprudencial consagra que não há hierarquia entre estas leis, tão pouco existe "ilegalidade de leis", que é o que ocorre quando se pretende subordinar a leis ordinárias à leis complementares. O que existe são campos materiais de competência distintos, instituídos constitucionalmente, que precisam ser respeitados.  
36. Nessa esteira, como já afirmado, foi editada a Lei Complementar nº 101, de 2000, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. A Lei de Responsabilidade Fiscal, lei complementar, dando densidade normativa ao art. 163, I, CF, estabelece normas básicas de finanças públicas, voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal.
37. Enquanto lei nacional, de cumprimento obrigatório para todos os entes da federação, buscou trazer normas gerais, um conteúdo mínimo necessário para que União, Estados e Municípios tenham responsabilidade na gestão através da ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas (art. 1º, §1º, LRF).
38. Este fato não impede que os demais entes políticos, inclusive a União, queiram melhorar a sua responsabilidade na gestão fiscal, legislando, ainda que por lei ordinária, sobre assunto, mas respeitando o conteúdo básico trazido pela Lei de Responsabilidade Fiscal que é a norma geral que trata sobre o assunto.
(...)
40. Enquanto lei nacional, a LRF estabeleceu os requisitos mínimos a serem observados para que os entes da federação possam realizar uma transferência voluntária (art. 25, §1º). Este fato não impede que cada ente específico queira estabelecer novos requisitos no âmbito de sua própria gestão, sendo estes requisitos criados por lei ordinária, como estabelece o art. 195, §10 da Constituição Federal e o próprio art. 25, §1º da LRF que afirma que outras exigências estarão previstas na "lei de diretrizes orçamentárias".
(...)
42. Todavia, a própria Lei de Responsabilidade Fiscal compreendeu que existem alguns temas e direitos extremamente caros à sociedade e que por este motivo não deveriam ser suspensas a transferência de recursos, mesmo que algum ente da federação descumprisse algum requisito formal previsto na mesma Lei.
43. Nesse sentido, o parágrafo terceiro, do art. 25 da LRF, acima transcrito, estabelece que: "para fins da aplicação das sanções de suspensão de transferências voluntárias constantes desta Lei Complementar, excetuam-se aquelas relativas a ações de educação, saúde e assistência social".
44. Nosso Estado Democrático de Direito se constitui através de uma federação que se originou de um movimento centrífugo, que nasceu de um movimento de dentro (Estado Unitário) para fora, de forma fragmentada. Estes resquícios históricos, dentre outros fatores, fizeram com que a União detivesse a maioria da arrecadação tributária e das competências, o que persiste hodiernamente.
45. Estados e Municípios detém uma série de obrigações constitucionais para prestar direitos sociais aos cidadãos, mas, na maioria dos entes da federação, não há recursos próprios para garantir aos cidadãos direitos como saúde, educação, assistência social, segurança pública, dentre outros. Por isso a importância das transferências voluntárias em um Estado em que a União arrecada a maior parte dos recursos.
46. Sem transferências voluntárias os cidadãos sofreriam, ainda mais, por falta de direitos mais básicos e essenciais, como saúde, educação, segurança, assistência social etc. mencionados acima. Por esse motivo, o art. 25, §3º da LRF estabelece que mesmo que ausente alguma formalidade para realização de uma transferência voluntária, esta poderá ser realizada, caso envolvam questões atinentes à saúde, educação e assistência social.
47. Ponderou-se, para esses casos em específico, a proteção de importantes direitos fundamentais e defesa da dignidade da pessoa humana em prol do cumprimento de certas formalidades.
48. Do mesmo modo que a LRF estabeleceu, enquanto norma geral de direito financeiro, requisitos básicos para realização de uma transferência voluntária, mas que podem ser criados outros por lei ordinária, é possível, com base na mesma ratio de proteção aos direitos constitucionais mínimos garantidos aos cidadãos pela CRFB, a criação de novas exceções por lei ordinária, além daquelas já garantidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, quais sejam, saúde, educação e assistência social.
49. Nesse sentido, é possível a União legislar por lei ordinária que realizará uma transferência voluntária mesmo com pendências formais do ente recebedor, caso a matéria trate de segurança pública, como de fato aconteceu na Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, ou mesmo que realizará a transferência voluntária que seja destinada à execução de ações sociais ou ações em faixa de fronteira, como disposto no art. 26 da Lei nº 10.522 de 2002. Exceções criadas que, por encontrarem fundamento constitucional que as sustentem, são plenamente válidas, podendo ser utilizadas para excepcionar as exigências para realização de transferências voluntárias previstas na LRF ou em legislação ordinária. 
 

Observa-se que é possível a criação de outras exceções aos impedimentos de transferência de recursos, ainda que por lei ordinária (v.g. ações em faixa de fronteira), pois o fundamento desta exceção não é a legislação ordinária por si só, mas sim a Constituição Federal que impõe deveres ao Estado em determinadas políticas públicas, de modo que o Poder Público não poderia deixar de cumprir estes deveres sociais alegando inadimplência do ente federado com base na legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, têm-se a possibilidade da legislação ordinária criar novas exceções às limitações das transferências voluntárias, para além da saúde, educação e assistência social previstas no art. 25, §3º da Lei de Responsabilidade Fiscal, isto porque o fundamento de validade e subsistência desta nova exceção é a Constituição Federal, pois o fundamento de validade de uma Lei é a Carta Magna brasileira, e não outra Lei, ainda que esta seja complementar

A Constituição de 1988, ambiciosa e inspirada pelo ideário do Estado Social, previu direitos prestacionais e diretrizes programáticas que condicionam e vinculam as políticas públicas estatais, entretanto, ciente deste o contexto, o legislador tem previsto quais segmentos podem receber recursos ainda que o ente receptor esteja inscrito em cadastro restritivo. A dimensão prospectiva e o horizonte de sentido constitucionalmente delineados foram sopesados quando da edição dos diplomas legislados que determinaram as áreas sociais beneficiárias.

Ainda que se entendesse que qualquer tema ligado direta ou indiretamente às finanças públicas e à responsabilidade na gestão reside no campo da lei complementar, o atual cenário normativo e jurisprudencial consagra que não há hierarquia entre leis complementares e leis ordinárias, tampouco existe “ilegalidade de leis”, que é o que ocorre quando se pretende subordinar leis ordinárias às complementares.

Todas são dotadas de presunção de constitucionalidade, até que os órgãos jurisdicionais, principalmente o STF, declarem o contrário ao uniformizar a legislação federal e interpretar a Constituição. Partindo deste pressuposto, não haveria que se falar em revogação ou, ainda, colisão entre normas gerais e normas específicas, sendo que a Lei n° 10.522/02, por exemplo, foi a que trouxe norma mais genérica (“ações sociais”) e há previsões esparsas sobre a segurança pública. Em eventual contexto de reserva de lei complementar, que não procede, ainda seria possível interpretação restritiva das que previram a fórmula genérica, nos termos da Constituição e das leis anteriores (ordinárias e complementares).

No âmbito infralegal, ainda foram editados, sem necessidade de traçar histórico legislativo sobre estes, o Decreto n° 6.170/2007, com fulcro no art. 84, IV, da CRFB, cujas normas são relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, estabelecendo diversas exigências.

Na mesma direção, veio a lume a Portaria Interministerial n° 507/2011, que também traçou critérios e exigências, sempre com o objetivo de propiciar a execução das políticas públicas, sem prejuízo ao erário, agora revogada pela Portaria Interministerial nº 424/2016. Para a controvérsia aqui instaurada, cumpre transcrever os seguintes dispositivos:

 

Art. 9º É vedada a celebração de:
VI - qualquer instrumento regulado por esta Portaria:
(...)
b) com órgão ou entidade, de direito público ou privado, que esteja inadimplente nas suas obrigações em outros instrumentos celebrados com órgãos ou entidades da Administração Pública Federal, exceto aos instrumentos decorrentes de emendas parlamentares individuais nos termos do § 13 do art. 166 da Constituição Federal, ou irregular em qualquer das exigências desta Portaria;
§ 2º O órgão e a entidade concedente procederão, segundo normas próprias e sob sua exclusiva responsabilidade, às inclusões no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal - CADIN, de pessoas físicas ou jurídicas que se enquadrem na hipótese prevista na alínea "b" do inciso VI do caput, observando-se as normas vigentes a respeito desse cadastro, em especial a Lei n° 10.522, de 19 de julho de 2002.
 
Art. 22. São requisitos para a celebração de convênios e contratos de repasse, a serem cumpridos pelo convenente:
(...)
V - regularidade perante o poder público federal, nos termos do art. 6º da Lei nº 10.522, de 2002, comprovada mediante consulta ao Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin), válida na data da consulta;
(...)
VI - regularidade na prestação de contas de recursos federais, nos termos do art. 25, § 1º, inciso IV, alínea "a", da Lei Complementar nº 101, de 2000, comprovada mediante consulta ao subsistema Transferências do Siafi e à Plataforma +Brasil, válida na data da consulta;
(...)
§ 9º Fica suspensa a restrição decorrente de inadimplência registrada no Cadin e no Siafi para transferência voluntária da União a Estados, Distrito Federal e Municípios destinada à execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira.
(...)
§ 16. Para fins da aplicação das sanções de suspensão de transferências voluntárias constantes da Lei Complementar nº 101, de 2000, excetuam-se aquelas relativas a ações de educação, saúde e assistência social. (grifo nosso)

 

Poder-se-ia questionar sobre eventual impacto normativo pelo fato de o Decreto n° 6.170/07 e a Portaria Interministerial n° 424/2016 serem posteriores a todos os diplomas legislativos ordinários e ao complementar, especialmente por emanarem do próprio Poder Executivo.

De qualquer sorte, sabe-se que a Portaria Interministerial apenas repete as exceções às vedações pertinentes às transferências voluntárias previstas na LC n° 101/00 (educação, saúde e assistência social), e as ações sociais, previstas no art. 26 da Lei n° 10.522/02, tal como costumeiramente ocorre com as leis de diretrizes orçamentárias e sem considerar outros textos legislativos eventualmente esparsos (e.g. segurança pública).

Aliás, a Portaria explicita que veio para regulamentar especificamente o Decreto n° 6.170/07 e, de modo semelhante, este dispôs que o seu desiderato é fazer o mesmo em face do diploma complementar n° 101/00. Assim, não pretenderam contradizer e regulamentar as Leis n° 10.522/02 e nº 13.756/18. São regulamentadores, não podem desbordar dos limites impostos pelas normas subjacentes (medidas provisórias, leis ordinárias e complementares).

O argumento de que são transferências voluntárias e, por isto, tanto o Decreto como a Portaria Interministerial, ao emanarem do Estado-Administrador, traduziriam a vontade de não realizar convênios com inadimplentes e consequentes transferências para atender a outros direitos sociais ali não previstos (e.g. segurança pública), acaba por esbarrar no argumento do item precedente, não se podendo presumir esta intenção nos limitados instrumentos regulamentadores.

Ante os argumentos alinhavados, resta clarividente que há suporte constitucional e legal para excepcionar do regime de restrição para transferência de recursos federais em matérias relacionadas à educação, saúde, assistência social, e os previstos de modo específico em outras leis ordinárias ou complementares, como foi feito e podem ser consideradas constitucionais as exceções para ações que envolvem segurança pública, ações em faixas de fronteira e ações sociais.

No que tange às ações de fronteira, por haver previsão legal, devem ser considerados não os Estados per si que façam fronteiras com o estrangeiro, sendo relativos apenas aos ajustes pactuados com entes que se encontram na faixa de fronteira, no caso de municípios, ou que as ações sejam realizadas exclusivamente na faixa de fronteira, no âmbito do Estado-membro como convenente. Segundo o art. 20, § 2º, da CF, a faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

A hipótese fora prevista pelo legislador de forma independente e sem qualquer ligação com direitos sociais. Por conseguinte, não cabe ao intérprete subordinar a determinação do sentido e alcance da expressão "ações em faixa de fronteira" àquelas conquistas previstas constitucionalmente e reguladas pelo constituinte derivado. Salvo o advento de expressa disposição legal em contrário, se por outro motivo não estiver impedido o repasse, as transferências voluntárias voltadas às ações em faixa de fronteira não estão adstritas ao regime das vedações para transferência voluntária de recursos, independentemente da natureza do objeto pactuado. Em tese, é possível destinar recursos para áreas que não estejam interligadas com a educação, saúde, e assistência social na faixa de fronteira.

Na esfera da segurança pública, por exemplo no caso da proteção às vítimas e testemunhas, repita-se que se trata de preservar a incolumidade física e psicológica e, em último grau, o direito à vida das pessoas que contribuíram de alguma forma com o Estado e a sociedade, que ao assim agirem se colocam em situação de risco em prol do seu regular funcionamento.

Conforme exposto, quando se busca propiciar a máxima efetividade do direito à saúde, por exemplo, que é um princípio (não uma regra ou um postulado normativo), resulta que a vida e a integridade física e psicológica devem estar protegidas e entendidas, em última instância, como uma questão atinente à saúde, independentemente disso ser alcançado com a contribuição da segurança pública. Apesar da máxima efetividade como elemento interpretativo, tanto saúde como segurança pública contam com o aval legislativo.

É regra básica de interpretação constitucional que as expressões semânticas constantes da Carta Maior devem ser interpretadas em sentido amplo, sem imaginar que foram previstas no sentido mais técnico e restrito possível, o que não significa ignorar as demais previsões constitucionais, métodos e princípios interpretativos, e o próprio ordenamento infraconstitucional presumidamente constitucional.

Enfatize-se, ainda, as possíveis consequências de uma eventual interrupção dos programas, especialmente no que tange à saúde (tratamento de lesões fatais ou não por ausência de proteção estatal), segurança pública (a violência aumenta o senso de impunidade e, nesta ótica de segurança, pode afetar a ordem pública) e assistência social.

Mas não é só disso que se trata. A própria Lei n° 9.807/99 que rege o Programa Federal de Assistência às Vítimas e Testemunhas (PROVITA) estabeleceu, no art. 7°, V e VII, que os valores destinados ao programa custeiam ajuda financeira mensal destinada à subsistência individual ou familiar e, adicionado a isto, à assistência social, médica e psicológica:

 

Art. 7º Os programas compreendem, dentre outras, as seguintes medidas, aplicáveis isolada ou cumulativamente em benefício da pessoa protegida, segundo a gravidade e as circunstâncias de cada caso:
...
V - ajuda financeira mensal para prover as despesas necessárias à subsistência individual ou familiar, no caso de a pessoa protegida estar impossibilitada de desenvolver trabalho regular ou de inexistência de qualquer fonte de renda;
VII - apoio e assistência social, médica e psicológica ; (grifo nosso)

 

Os preceitos da Lei n° 13.756/18 (art. 13) são de clareza solar ao mencionarem que constituem exceção os recursos “destinados a garantir a segurança pública, a execução da lei penal e a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas”. Trata-se de comando normativo em pleno vigor e incidente sobre hipótese especialíssima.

Portanto, novamente, mesmo que eventualmente fossem superados os argumentos expendidos sobre o campo de incidência das leis complementares e ordinárias, ainda assim estes programas especiais estariam albergados pelas exceções previstas na LC n° 101/00 (art. 25, § 3º), especificamente quanto à saúde e assistência social, quiçá educação, vez que os valores fornecidos para os programas especiais de proteção financiam as três áreas.

Ademais, conforme será visto a seguir, o órgão jurisdicional que detém competência para interpretar lei federal, em última instância (o Superior Tribunal de Justiça), entende pela existência de exceções ao regime impeditivo de transferências voluntárias, especialmente no que concerne às ações sociais, incluindo a segurança pública.

Impende trazer à baila, ainda, que o conteúdo do Parecer n° GM – 027, aprovado pelo Presidente da República em 05 de abril de 2001, abordou, à época, o significado da expressão “ações sociais”, entendimento que persistiu quando da conversão na Lei n° 10.522/02. Desse modo, o parecer concluiu na seguinte linha:

 

Conclui-se, portanto, que as ações sociais, de que trata a Medida provisória n° 1.973-65, de 28 de agosto passado, são aquelas exercidas com o objetivo de se conseguir o bem-estar e a justiça sociais, em especial nas áreas da seguridade social, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, da cultura, e do desporto, e nos seus desdobramentos, podendo, desse modo, iniciarem ou prosseguirem as transferências de recursos federais a Estados, Distrito Federal, Municípios destinado àquelas ações porventura interrompidas em razão dos entendimentos contrários no que tange à sua conceituação, logicamente, procedendo-se uma análise em cada caso ocorrente. (grifo nosso)

 

Consoante Parecer GM – 27, há duas premissas que devem ser preenchidas para que determinada ação governamental seja qualificada como "ação social" para os fins do art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, quais sejam: “deve objetivar o atendimento de um direito social”; e “deve ter caráter obrigatório para o Poder Público”, sendo que esta segunda premissa “explica a natureza excepcional da norma em comento: a União não poderia deixar de executar as ações em benefício dos cidadãos titulares dos direitos sociais apenas porque o Estado, o Distrito Federal e o Município onde eles residem não cumpriram as obrigações assumidas anteriormente. Isso seria punir os cidadãos pela desídia de administradores, postura que certamente não encontra respaldo constitucional”.

Ainda na forma do Parecer GM-27, as "ações sociais" a que se refere o art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, “são aquelas ínsitas no Título VII, da Constituição da República (arts. 193 a 217) referente à ordem social, nesta abrigando, principalmente, as questões relativas à seguridade social, à saúde, à previdência social, à assistência social, à educação, à cultura e ao desporto”. Quanto à abrangência da expressão “ação social”, o Parecer GM-27 encontra-se em consonância com precedentes consolidados do STJ como se verá adiante. Segue elucidativo trecho do Parecer GM-27:

 

...
14. Deduz-se, por conseguinte, que a intenção do legislador, traduzida na feitura da antedida Medida Provisória, tem por objetivo suspender a restrição para transferência de recursos federais aos Estados, Distrito Federal e Municípios destinados à execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira, em decorrência de inadimplência objeto de registro no CADIN e no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - SIAFI.
15. Assim, em face da predita suspensão, foram mencionados os entes federados dispensados da apresentação de certidões exigidas pelas leis, decretos e outros atos normativos (§ 1º do art. 26) não se aplicando o disposto nesta regra para débitos contraídos para com o Instituto Nacional de Seguro Social - INSS.
16. Tem-se, então, como absolutamente correta a afirmação contida no Parecer Conjur/MI nº 141/00 , de 12 de abril deste ano, segundo a qual há duas balizas delimitando o conceito de ações sociais. De um lado, a ação governamental deve objetivar o atendimento de um direito social; de outro, tal atividade deve ter caráter obrigatório para o Poder Público. Este segundo requisito explica a natureza excepcional da norma em comento: a União não poderia deixar de executar as ações em benefício dos cidadãos titulares dos direitos sociais apenas porque o Estado, o Distrito Federal e o Município onde eles residem não cumpriram as obrigações assumidas anteriormente. Isso seria punir os cidadãos pela desídia de administradores, postura que certamente não encontra respaldo constitucional.
17. Não pairam dúvidas, já corroborando com o asserto da afirmação acima expendida, que as ações sociais mencionadas na Medida Provisória em comento são aquelas ínsitas no Título VII, da Constituição da República (arts. 193 usque 217) referente à ordem social, nesta abrigando, principalmente, as questões relativas à seguridade social, à saúde, à previdência social, à assistência social, à educação, à cultura e ao desporto.
18. Desse modo, cabe à União, de moto-próprio, não criar óbices a que os demais entes federados desenvolvam seus planos e programas ligados às sobreditas áreas de sua atuação por motivo de inadimplência para com os dois sistemas de registro de dados, nomeados no caput do artigo 26 da Medida Provisória.
19. A ordem social, na qual se abrigam todas as ações sociais, procura estabelecer na vigente Carta Política todas as políticas governamentais concernentes à vida do cidadão em sociedade. Um Estado (lato sensu) que não dispuser de planos ou de programas relacionados com as ações sociais, terá sua existência ameaçada, pois que o equilíbrio social é, indubitavelmente, o fundamento da democracia, cujos objetivos precípuos se situam na promoção do bem estar-social e da justiça social.
20. A Medida Provisória nº 1.973-65, veio, inequivocamente, na parte alusiva à suspensão da restrição imposta à transferência de recursos federais aos Estados, Distrito Federal e Municípios, destinados à execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira, beneficiar de modo especial essas atividades descentralizadas, objetivando, com tal política, assegurar aos cidadãos os direitos que, constitucionalmente, são a eles deferidos.
21. O Estado Social Moderno, em cuja tipificação formal se inclui o Estado brasileiro, deve atender à totalidade dos membros de uma sociedade, quaisquer que sejam suas condições, daí o dispositivo (art. 26) incluído na Medida Provisória em análise.
22. Conclui-se, portanto, que as ações sociais, de que trata a Medida Provisória nº 1.973-65, de 28 de agosto passado, são aquelas exercidas com o objetivo de se conseguir o bem-estar e a justiça sociais, em especial nas áreas da seguridade social, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, da cultura, e do desporto, e nos seus desdobramentos, podendo, desse modo, iniciarem ou prosseguirem as transferências de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios destinados àquelas ações porventura interrompidas em razão dos entendimentos contrários no que tange à sua conceituação, logicamente, procedendo-se uma análise em cada caso ocorrente.
...

 

Não se desconhece que o Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 2329/2014 - Plenário) tem um entendimento mais restritivo que os demais órgãos, mas após uma análise mais detida de sua jurisprudência e para os fins deste parecer, não chega a ser dissonante no fundamento em que se baseia este Parecer jurídico. Não faz muito tempo que a Corte exarou o seguinte entendimento:

 

Relator: MARCOS BEMQUERER - CONSULTA. POSSIBILIDADE DE REPASSE DE RECURSOS FEDERAIS, PARA IMPLEMENTAÇÕES DE AÇÕES DE SANEAMENTO BÁSICO, A ENTES LOCALIZADOS EM FAIXA DE FRONTEIRA, APESAR DE INADIMPLÊNCIA NO SIAFI/CAUC EM RELAÇÃO A TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS E REGISTRO NO CADASTRO DE INADIMPLENTES. EXCEÇÕES DA LRF E DA LEI N. 10.522/2002.
1. As disposições do art. 26 da Lei n. 10.522/2002 não podem prevalecer ante ao que assevera o art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), pois incumbe a esta dispor sobre finanças públicas.
2. O art. 25, §3º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), c/c o art. 26 da Lei n. 10.522/2002, autoriza a excepcional transferência de recursos federais, para entes localizados em faixa de fronteira, com registro no Cadin, inadimplentes em relação a transferências voluntárias, no que se refere, exclusivamente, à implementação de ações de educação, saúde e assistência social.
(...)
Voto do Ministro Relator
(...)
8. Importante ressaltar que, no tocante à aplicação do art. 26 da Lei n. 10.522/2002, este Tribunal já se manifestou, também em sede de consulta, por meio do Acórdão n. 445/2009 - Plenário, de forma que considero oportuno transcrever trechos do Voto do Ministro Walton Alencar Rodrigues que embasaram aquela deliberação:
(...)
Sobre finanças públicas, a LRF é a única seara legítima para tratamento do tema. A suspensão da restrição para transferência de recursos federais para ações em faixa de fronteira, a que se refere o art. 26 da Lei n. 10.522/2002, tem sua legalidade condicionada aos termos impostos pelo art. 25, § 3º, da LRF.
(...)
A aparente antinomia entre a exclusão apenas das ações de educação, saúde e assistência social das restrições para transferências voluntárias, a que se refere a LRF, e a suspensão da restrição para transferência de recursos federais para ações em faixa de fronteira, de modo genérico, estipulada na Lei n. 10.522/2002, resolve-se no plano da legalidade.
A LC n. 101/2000 regulamenta normas de finanças públicas, nos termos do art. 163, inciso I, da Constituição Federal. Ela se sobrepõe ao comando da lei ordinária por regulamentar dispositivo constitucional, dentro de sua específica esfera de ação. Nesses termos, tudo o que dispõe a lei ordinária que a ela contravém é ilegal.
Pode-se aplicar a máxima "quem pode o mais pode o menos" (cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p 245). A LRF, cujas regras têm expresso amparo constitucional, excetua das restrições às transferências voluntárias as relativas a ações de educação, saúde e assistência social. A Lei nº 10.522/2002 apenas institui o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais - Cadin/CAUC. Suas regras devem subordinar-se às estabelecidas na LRF.
A expressão "ações em faixa de fronteira" do art. 26 da Lei nº 10.522/2002 deve compreender tão-somente ações de educação, saúde e assistência social, como autoriza o art. 25, §3º, da LRF.
Questão idêntica foi tratada pelo Acórdão 1640/2003 - Plenário, ao responder consulta da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. O Tribunal, informou que "não se aplicam as sanções de suspensão de transferências voluntárias a que se refere o art. 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000 às ações financiadas com recursos provenientes do Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído pela Lei nº 10.201/2001, com exceção, apenas, da regra prevista pela Constituição Federal, em seu art. 167, inciso X, segundo a qual é vedada a transferência voluntária de recursos para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios."
(...)
Esse dispositivo implica a observância das exceções previstas na LRF, na Lei nº 10.522/2002 e nas leis de diretrizes orçamentárias." (grifos acrescidos)
9. Tem-se, portanto, que já há entendimento jurisprudencial desta Corte de Contas no sentido de que as disposições do art. 26 da Lei n. 10.522/2002 devem ser interpretadas ante o que assevera o art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), pois incumbe a esta dispor sobre finanças públicas.
10. Diante desse contexto, há que se considerar que, consoante o art. 25, §3º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), c/c o art. 26 da Lei n. 10.522/2002, há autorização excepcional de transferência de recursos federais destinados à execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira, para entes com registro no Cadin, inadimplentes em relação a transferências voluntárias, no que se refere, exclusivamente, à implementação de ações de educação, saúde e assistência social.
(...)
T.C.U., Sala das Sessões, em 03 de setembro de 2014.
MARCOS BEMQUERER COSTA
Relator
Acórdão
(...)
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo Relator, em:
(...)
9.1.1. este Tribunal, por meio do Acórdão n. 445/2009 - Plenário, já firmou entendimento no sentido de que as disposições do art. 26 da Lei n. 10.522/2002 não podem prevalecer ante ao que assevera a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF (LC n. 101/2000), pois incumbe a esta dispor sobre finanças públicas, de tal forma que há que se considerar que, consoante o art. 25, §3º, da LRF c/c o art. 26 da Lei n. 10.522/2002, há autorização excepcional de transferência de recursos federais destinados à execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira, para entes com registro no Cadin, inadimplentes em relação a transferências voluntárias, no que se refere, exclusivamente, à implementação de ações de educação, saúde e assistência social;
(...) (grifo nosso)

 

Como visto, o TCU partia do pressuposto de que haveria hierarquia entre lei complementares e leis ordinárias, o que não encontrava respaldo na doutrina majoritária e nos Tribunais Superiores (STJ e STF). Em acréscimo, sabe-se que a questão não se resolve apenas no plano da legalidade, sendo impositivo partir da Constituição. Ambos os argumentos já foram analisados neste parecer. 

Acrescente-se também que não é porque o dispositivo encontra-se em Lei Complementar que se trata de reserva qualificada. Como se verá abaixo, o próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu que determinados dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal podem ser tratados por lei ordinária e, como também já analisado, o art. 195, § 10, da CRFB prescreve que critérios referentes à transferência de recursos podem ser tratadas por simples "lei" (ordinária).

 
EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR Nº 101, DE 04 DE MAIO DE 2000 (LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL). MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.980-22/2000. Lei Complementar nº 101/2000. Não-conhecimento.
I - Os §§ 2º e 3º do art. 7º da LC nº 101/00 veiculam matérias que fogem à regulação por lei complementar, embora inseridas em diploma normativo dessa espécie. Logo, a suposta antinomia entre esses dispositivos e o art. 4º da Medida Provisória nº 1.980-22/00 haverá de ser resolvida segundo os princípios hermenêuticos aplicáveis à espécie, sem nenhuma conotação de natureza constitucional. Ação não conhecida.
(...)
(ADI 2238 MC, Relator(a): ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2007, DJe-172  DIVULG 11-09-2008  PUBLIC 12-09-2008 EMENT VOL-02332-01  PP-00024 RTJ VOL-00207-03 PP-00950)

 

O acórdão prolatado pelo TCU (Acórdão nº 2329/2014 - Plenário), ao demonstrar que a análise tem sido casuística, expressou que excepciona a questão tratada pelo Acórdão 1640/2003 - Plenário, hipótese em que o tribunal entendeu no seguinte sentido: "não se aplicam as sanções de suspensão de transferências voluntárias a que se refere o art. 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000 às ações financiadas com recursos provenientes do Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído pela Lei nº 10.201/2001”.

Como é sabido, um dos fundamentos adotados na área de segurança é o art. 13 da Lei n° 13.756/18 (antigo art. 6º da Lei nº 10.201/01) que, frise-se, trata de transferências voluntárias em geral (“constantes de lei”). O fato é que o TCU reconheceu a vigência da lei, em que pese esta preveja exceções mais específicas e diferentes das constantes da LC n° 101/00. O artigo que interessa ao caso dispõe que:

 

Art. 13. As vedações temporárias, de qualquer natureza, constantes de lei, não incidirão na transferência voluntária de recursos da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como dos Estados aos Municípios, destinados a garantir a segurança pública, a execução da lei penal e a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

 

Nas mesmas pegadas, o Acórdão n° 445/2009 também teceu considerações sobre as questões ligadas à segurança pública e defesa nacional:

 

CONSULTA. TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. ENTES LOCALIZADOS EM FAIXA DE FRONTEIRA. CONVENENTE INADIMPLENTE NO SIAFI/CAUC E COM REGISTRO NO CADASTRO DE INADIMPLENTES. EXCEÇÕES DA LRF, DA LDO E DA LEI 10.522/2002.
- O conflito entre a lei complementar e a lei ordinária resolve-se, no plano da legalidade, em razão do especial âmbito de ação, fixado pela CF, para cada espécie normativa. As disposições do art. 26 da Lei nº 10.522/2002 não podem prevalecer ante ao que assevera o art. 25 da LC 101/2000, pois incumbe a esta dispor sobre finanças públicas.
- O art. 25, §3º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), c/c o art. 26 da Lei nº 10.522/2002, autoriza a excepcional celebração de convênios, com entes localizados em faixa de fronteira, com registro no Cadin, inadimplentes em relação a transferências voluntárias, no que se refere, exclusivamente, a ações de educação, saúde e assistência social.
Relatório do Ministro Relator
(....)
Questão idêntica foi tratada pelo Acórdão 1640/2003 - Plenário, ao responder consulta da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. O Tribunal, informou que "não se aplicam as sanções de suspensão de transferências voluntárias a que se refere o art. 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000 às ações financiadas com recursos provenientes do Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído pela Lei nº 10.201/2001, com exceção, apenas, da regra prevista pela Constituição Federal, em seu art. 167, inciso X, segundo a qual é vedada a transferência voluntária de recursos para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios."
(...)
Ante o exposto, voto por que o Tribunal aprove o acórdão que submeto à deliberação do Plenário. TCU, Sala das Sessões Ministro Luciano Brandão Alves de Souza, em 18 de março de 2009. WALTON ALENCAR RODRIGUES Relator
Acórdão
(...)
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, com fundamento art. 264, caput, inciso VI e §§ 1º e 2º, do Regimento Interno e ante as razões expostas pelo Relator, em:
(...)
9.2.5. assegurar a defesa nacional é competência exclusiva e indelegável da União Federal, consoante art. 21, III, da CF. A característica dessa competência, a cargo da União, impossibilita, via de regra, a realização de convênio cujo objeto sejam ações de defesa nacional, por não haver como caracterizar o interesse do ente convenente nessa ação;
9.2.6. em face do resultado de ações de defesa nacional a cargo da União, nas cercanias de entes federados, podem estes, excepcionalmente, figurar como convenentes em ajustes celebrados com a União, ocasião em que serão executores da ação de interesse e responsabilidade do concedente que, pela sua competência exclusiva e indelegável, deverá obrigatoriamente compor o processo com documentos que contemplem as seguintes situações:
(...)
9.2.7. evidenciada a situação excepcionalíssima, na forma apontada no item 9.2.6, é possível a realização de convênio com ente federado, localizado em qualquer parte do território nacional, que se encontre em situação irregular quanto à prestação de contas de recursos anteriormente recebidos, apontada no SIAFI/CAUC, suplantando o que dispõe o art. 25 da LRF, devendo-se observar, nesses casos, somente o que determina o art. 167, inciso X, da Constituição Federal. O entendimento deriva do Acórdão - TCU 1.640/2003 - Plenário e da verossimilhança da natureza das ações de defesa nacional para com as ações de segurança;
9.2.8. para outras ações que não aquelas diretamente afetas à defesa nacional, a celebração de convênio com ente em situação irregular somente é possível nos moldes descritos no item 9.2.4.
9.3. arquivar o processo, nos termos do art. 169, inciso IV, do RI/TCU. (grifo nosso)

 

Desse modo, assentou que na esteira do decidido no Acórdão 1.640/2003 quanto às ações de segurança, novamente homenageado, bem como da verossimilhança das ações de defesa nacional para com aquelas, é plenamente possível a realização de convênio com ente federal que se encontre em situação irregular e de qualquer parte do território nacional, ultrapassando o que dispõe o art. 25 da LC n° 101/00.

O TCU, ao excluir a cultura do rol de exceções às restrições para transferência de recursos federais, trouxe argumentos que estão em consonância com o raciocínio construído no presente parecer, mutatis mutandis:

 

ACÓRDÃO 1631/2006 - PLENÁRIO:
Ementa: REPRESENTAÇÃO. INTERPRETAÇÃO EQUIVOCADA DE DISPOSITIVOS DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL. MECANISMOS DE CAUTELA DAS TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS DE RECURSOS DA UNIÃO. DISTINÇÃO DOS CONCEITOS DE EDUCAÇÃO E CULTURA. NATUREZA DOS APORTES FEDERAIS DE RECURSOS PARA PROJETOS CULTURAIS. PROCEDÊNCIA.
1. A suspensão das restrições decorrentes de registros no Cadin e no Siafi, na forma e nas condições definidas no art. 26 da Lei 10.522/02, não revogou nem alterou os mecanismos de cautela das transferências voluntárias de recursos da União para os demais entes federados constantes da Constituição Federal (§ 2º do art. 169) e da LC 101/2000 (art. 25).
2. A nítida distinção normativa e de amplitude de conceitos imprimida pelo texto constitucional para "educação" e "cultura", impõe a conclusão de que o termo "educação" constante da excepcionalidade prevista no § 3º do art. 25 da LC 101/2000 não abrange a "cultura".
3. Os aportes federais de recursos para projetos culturais, por meio do Fundação Nacional de Cultura, são transferências voluntárias, conforme definido no art. 25, caput, da LRF. (...)
16. (...) A ampliação das exceções do art. 25, § 3º, da LRF, admitida nesses dois acórdãos, decorreu precipuamente da preponderância provisória de princípios constitucionais relacionados a direitos fundamentais do homem sobre a regulação da Política Fiscal do estado, que também tem estatura constitucional como indicado no início deste voto, e não de interpretação extensiva do dispositivo legal complementar.
18. (...) Também não vislumbro, no caso presente, diferentemente dos dois outros apreciados pelo Tribunal, nenhum princípio ou regra constitucional que se possa sobrepor, ainda que provisoriamente, à regulação da Política Fiscal e, assim, amparar o entendimento esposado pelo Ministério da Cultura, com as devidas vênias dos pareceres que o sustentaram. Disso decorre a conclusão de que as transferências voluntárias para projetos culturais, inclusive as provenientes de recursos do FNC são alcançadas pelas sanções de suspensão previstas na LRF, entre outros, no § 2º do art. 51, não se lhes aplicando a exceção do § 3º do art. 25 da mesma lei. Sala das Sessões, em 5 de setembro de 2006.
Augusto Sherman Cavalcanti
Relator (grifo nosso)

 

Ressai do acórdão supra que o TCU efetivamente estabelece exceções a depender do caso concreto, ao afirmar que amplia as exceções quando decorre da "preponderância provisória de princípios constitucionais relacionados a direitos fundamentais do homem sobre a regulação da Política Fiscal do Estado, que também tem estatura constitucional", e não de interpretação extensiva do dispositivo legal complementar”. Por fim, veja-se o Acórdão n° 1.640/2003:

 

Consulta formulada por Comissão Parlamentar. Manifestação do Tribunal acerca de restrições legais às transferências de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública - FNSP para os Estados que tenham estabelecido plano de segurança pública e que estejam em situação de inadimplência com os regulamentos das transferências voluntárias de recursos. Inexistência de óbice legal para a transferência. Conhecimento. Esclarecimentos. Arquivamento.
VISTOS, relatados e discutidos estes autos, relativos a consulta formulada pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados; ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, pelo voto de desempate de seu Presidente, com fundamento no art. 124, § 1º, do Regimento Interno, em:
9.1. conhecer da presente consulta, para esclarecer à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados que, cotejando o contido nos arts. 22, parágrafo único, inciso IV, e 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), não se aplicam as sanções de suspensão de transferências voluntárias a que se refere o art. 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000 às ações financiadas com recursos provenientes do Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído pela Lei nº 10.201/2001, com exceção, apenas, da regra prevista pela Constituição Federal, em seu art. 167, inciso X, segundo a qual é vedada a transferência voluntária de recursos para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
9.2. arquivar este processo.
 
VOTO DE DESEMPATE
 
Na Sessão Ordinária realizada no dia 29 de outubro de 2003, ao ser apreciado este processo, que cuida de consulta formulada pelo Excelentíssimo Senhor Deputado Federal Simão Sessin, Presidente da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, acerca de restrições legais às transferências de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para os Estados, por força do disposto no art. 25, inciso IV, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, tendo em vista o disposto no art. 6º da Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, restaram empatadas duas propostas de deliberação.
2. O empate ocorreu em virtude de o Tribunal ter deliberado por voto médio (art. 127 do Regimento Interno) acerca das propostas oferecidas pelo Relator, Ministro Ubiratan Aguiar, pelo Ministro Benjamin Zymler e pelo Ministro Humberto Souto.
(...)
8. Quanto ao mérito da questão, entendo oportuno aduzir o que segue.
(...)
10. O Ministro Humberto Guimarães Souto, no exame que fez da matéria, encontrou "legitimidade para resolver a questão na própria Lei Complementar n° 101/2000, com base em princípios e valores jurídicos atinentes à importância da saúde, da educação e da segurança pública, ao cotejar o contido nos arts. 22, parágrafo único, inciso IV, e 25, §3º, daquele instrumento legal".
11. O art. 167, inciso X, da Constituição Federal veda "a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos Governos Federal e Estaduais e suas instituições financeiras, para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".
12. É sabido que a interpretação da lei não deve ser realizada de forma estanque, e que a lei não tem palavras inúteis.
13. Em razão disso, afigura-se-me relevante para solucionar a questão o confronto entre os arts. 5º, caput, e 144, caput, da Constituição Federal, e o art. 25, §3º, Lei Complementar n° 101/2000.
14. Os citados artigos dispõem:
"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)" (grifou-se).
"Art. 144, A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...)" (grifou-se).
"Art. 25 Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou dos destinados ao Sistema Único de Saúde.
(...)
§3º Para fins da aplicação das sanções de suspensão de transferências voluntárias constantes desta Lei Complementar, excetuam-se aquelas relativas a ações de educação, saúde e assistência social".
15. Do exame dos referidos dispositivos, ficou-me a convicção de que a vontade do legislador está melhor interpretada no sentido de garantir a continuidade das ações de educação, saúde e assistência social, mas principalmente a continuidade das ações de segurança pública, que, ao assegurarem a incolumidade das pessoas, preservam o inviolável direito de todos à vida.
16. Portanto, creio que as ações de segurança destinadas à preservação do direito à vida devem ser prioritárias em relação às de educação, saúde e assistência social, ou adotadas em conjunto. Sem a garantia desse direito essencial, tenho por certo que as demais ações citadas na lei passariam a ser, aí sim, simples palavras inúteis.
17. De nada adianta assegurar educação, saúde e assistência social para aquele que por falta de segurança individual não tem o seu direito inviolável à vida garantido.
18. Com base nessas razões, sou de opinião, data maxima venia, de que o art. 6° da Lei n° 10.201/2001 não ampliou o rol de hipóteses estabelecido no inciso IV do art. 25 da Lei Complementar n° 101/2000, visto que a garantia do direito inviolável à vida, preservada pelas ações de segurança pública, nasce da Constituição Federal, e não como uma nova hipótese do citado dispositivo da lei ordinária.
19. De igual modo, dada a particularidade da natureza da matéria em exame, natureza constitucional do direito à vida preservado pelas ações de segurança pública, acredito que a deliberação a ser adotada pelo Tribunal não servirá de fundamento para que, por vias transversas, sejam incorporadas novas exceções às vedações contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal.
20. Caso eventual interpretação da Lei Complementar nº 101/2000 venha a admitir vedação, não prevista expressamente na Carta de 1988, que dificulte ao Estado o exercício do seu dever de prestar a segurança pública, creio que essa hipótese configuraria inconstitucionalidade.
(...)
22. Ainda a respeito do assunto, releva notar que o eminente Ministro Ubiratan Aguiar, com sua habitual acuidade, ao analisar os Balanços Gerais da União relativos ao exercício de 2002, consignou na página 110 de seu Relatório que o total da despesa orçamentária realizada por função atingiu o montante de R$ 674.928 (seiscentos e setenta e quatro bilhões, novecentos e vinte e oito milhões de reais). Desse total, apenas e tão-somente, R$ 2.202 (dois bilhões e duzentos e dois milhões de reais), ou seja 0,3% da despesa realizada, foi investido na função de segurança pública.
23. Como se observa, os recursos efetivamente investidos na função de segurança pública são escassos, e, registro, constitui constante preocupação minha acerca do assunto. Por todas as razões acima expendidas, Voto no sentido de que seja adotado o Acórdão apresentado pelo eminente Ministro Humberto Guimarães Souto. TCU, Sala das Sessões Ministro Luciano Brandão Alves de Souza, em 5 de novembro de 2003.
VALMIR CAMPELO
Presidente (grifo nosso)

 

No voto de desempate do Ministro Valmir Campelo, acima transcrito, foi ressaltado que as ações de segurança destinadas à preservação do direito à vida são prioritárias em relação às de educação, saúde e assistência social, ou são adotadas concomitantemente. Sem a garantia do referido direito, as demais previstas nas normas ficam prejudicadas e inúteis.

Deste modo, o mesmo argumento utilizado pelo ministro da Corte de Contas pode ser aplicado as demais hipóteses até então previstas na legislação. Afirma, como destacado acima que "o art. 6° da Lei n° 10.201/2001 não ampliou o rol de hipóteses estabelecido no inciso IV do art. 25 da Lei Complementar n° 101/2000, visto que a garantia do direito inviolável à vida, preservada pelas ações de segurança pública, nasce da Constituição Federal, e não como uma nova hipótese do citado dispositivo da lei ordinária".

Em outras palavras, o fato da licitude da segurança pública, enquanto exceção às restrições previstas pela Lei Complementar (LRF), ser possível e admitida pelo Tribunal de Contas da União, porque tal matéria "nasce da Constituição", também pode ser aplicada em outras hipóteses, desde que exista o mesmo fundamento.

Desde modo, se há outros direitos, além da Segurança Pública, em que a Constituição impõe ao Estado Brasileiro seu cumprimento, a criação de uma exceção às exigências para transferências voluntárias não ofenderia a Lei de Responsabilidade Fiscal, pois seu fundamento não é a Lei Complementar, mas sim a Constituição Federal. O que a exceção criada por lei ordinária faz é tão somente dar forma, operacionalizar como cumprir e concretizar a obrigação que a Constituição Federal impôs ao Poder Público.

Logo, se a Corte de Contas admite a exceção relacionada à Segurança Pública, por tal hipótese ser decorrente da Constituição, outras hipóteses com mesmo fundamento também devem ser admitidas, afinal ubi eadem est ratio ibi ide jus, ou seja, onde se existe a mesma razão, deve-se aplicar o mesmo direito.

Na mesma linha, vem entendendo as Cortes Superiores de nosso Poder Judiciário. Destarte, o STJ, Tribunal da Cidadania, que tem a missão de uniformizar as interpretações acerca da legislação federal, tem precedentes na linha de que a interpretação da expressão “ações sociais” diz respeito às ações que objetivam o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, cuja realização é obrigatória por parte do Poder Público. Vejamos:

 

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. REPASSE DE VERBA PELA UNIÃO. RESTRIÇÃO CADASTRAL NO CAUC E NO SIAFI. SUSPENSÃO DOS EFEITOS APENAS QUANTO AOS REPASSES QUE VISEM À EXECUÇÃO DE AÇÕES SOCIAIS OU EM FAIXA DE FRONTEIRA. ART. 26 DA LEI 10.522/2002. ABRANGÊNCIA DO TERMO "AÇÕES SOCIAIS".
1. Hipótese em que o Tribunal local consignou que o repasse de verbas federais destinadas à implantação e obras de drenagem urbana denotariam natureza de ação social.
2. A suspensão da restrição para a transferência de recursos federais aos Estados, Distrito Federal e Municípios trata de norma de direito financeiro e é exceção à regra, estando limitada às situações previstas no próprio artigo 26 da Lei 10.522/2002 (execuções de ações sociais ou ações em faixa de fronteira). A interpretação da expressão "ações sociais" não pode ser abrangente a ponto de abarcar situações que o legislador não previu. Sendo assim, o conceito da expressão "ações sociais", para o fim da Lei 10.522/2002, deve ser resultado de interpretação restritiva, teleológica e sistemática, mormente diante do fato de que qualquer ação governamental em prol da sociedade pode ser passível de enquadramento no conceito de ação social.
3. O termo "ação social" presente na mencionada lei diz respeito às ações que objetivam o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, cuja realização é obrigatória por parte do Poder Público, como aquelas mencionadas na Constituição Federal, nos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217 (alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto).
4. O direito à infraestrutura urbana e o direito aos serviços públicos, os quais abarcam o direito à pavimentação e drenagem de vias públicas, compõem o rol de direitos que dão significado à garantia do direito a cidades sustentáveis, conforme previsão do art. 2º da Lei 10.257/2001 - Estatuto das Cidades. Apesar disso, conforme a fundamentação supra, a pavimentação e drenagem de vias públicas não pode ser enquadrada no conceito de ação social previsto no art. 26 da Lei 10.522/2002. Nesse sentido: REsp 1.372.942/AL, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 11.4.2014.
5. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no AgRg no REsp 1416470/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/11/2014, DJe 27/11/2014) (grifo nosso)

 

Tem aumentado o número de precedentes do Superior Tribunal de Justiça que afastam expressamente o enquadramento de determinados programas e ações governamentais como “ações sociais” para os fins do art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002. Consta dos autos a seguinte síntese: “aquisição de maquinário agrícola” (AgRg no REsp 1417069/PE, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 11/05/2016); “quadra poliesportiva” (AgRg no REsp 1547543/CE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2015, DJe 20/10/2015); “implantação de placas de sinalização turística” (AgRg no REsp 1447188/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/09/2015, DJe 24/09/2015); “drenagem urbana” (AgRg no AgRg no REsp 1416470/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/11/2014, DJe 27/11/2014); "sinalização turística" (REsp 1656446/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/04/2017, DJe 02/05/2017).

O precedente é ainda mantido pelo Tribunal da Cidadania em decisões mais recentes, como o REsp: 1844420 PE 2019/0315805-1, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Publicação: DJ 06/03/2020, onde o entendimento em linhas gerais é de que "a interpretação da expressão ações sociais não pode estender-se a ponto de abarcar situações que o legislador não previu. Seu conceito, para o fim da Lei nº 10.522/2002 (CADIN), deve decorrer de interpretação restritiva, teleológica e sistemática".

Na mesma esteira, podemos ainda destacar:

 

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TRANSFERÊNCIA VOLUNTÁRIA DE RECURSOS FEDERAIS. REPASSE DO MUNICÍPIO. RESTRIÇÕES NO CAUC OU SIAFI. VERBA DESTINADA À AÇÃO SOCIAL. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 26 DA LEI 10.522/2002.
1. Trata-se, na origem, de Ação de Procedimento Comum, com pedido de tutela provisória de urgência, ajuizada pelo Município de Correia Pinto/SC contra a União e a Caixa Econômica Federal, postulando provimento jurisdicional que determine às requeridas a formalização do contrato de repasse dos recursos oriundos da Proposta Siconv nº 361702015 - Programa de Planejamento Urbano para pavimentação de ruas de Correia Pinto/SC -, no valor de R$ 245.850,00 (duzentos e quarenta e cinco mil e oitocentos e cinquenta reais), inobstante a existência de restrições que ensejaram a inscrição do ente federativo no Siafi/Cauc, como inadimplente.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou orientação de que, na hipótese de transferência voluntária de recursos federais à Municipalidade, destinados a ações sociais e a ações em faixa de fronteira, a anotação desabonadora, no Siafi e Cauc, deve ter seus efeitos suspensos.
3. No caso dos autos, o Tribunal de origem consignou: "quanto à alegação no sentido de que o objeto do Contrato de Repasse em discussão (pavimentação de ruas de Correio Pinto/SC) não se destinaria à execução de uma ação relacionada com as áreas de educação, saúde e assistência social, esta Turma reconheceu a destinação social, quando do julgamento da AI 5023987-69.2016.4.04.0000, nos seguintes termos: (...) Destarte, reconheço que dificultar o recebimento de verbas federais destinadas à aplicação em atividades essenciais do Município caracteriza, de fato, violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade" (fls. 401-402, e-STJ).
4. Na forma da jurisprudência, "o termo 'ação social' presente na mencionada lei diz respeito às ações que objetivam o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, cuja realização é obrigatória por parte do Poder Público, como aquelas mencionadas na Constituição Federal, nos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217 (alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto)" (REsp 1.527.308/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 5/8/2015).
5. O Tribunal de origem, soberano na apreciação fático-probatória, concluiu que o objeto do empenho ostentava caráter social que se enquadra nas exceções previstas na legislação. Saliente-se que dissentir daquela conclusão, de modo a descaracterizar a natureza do convênio, implica revolver de aspectos fático-probatórios, providência igualmente inviável em Recurso Especial, nos termos da Súmula 7 do STJ.6. Agravo Interno não provido. 
(AgInt no REsp 1828073/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 27/02/2020) (grifo nosso)
 
 
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. TRANSFERÊNCIA VOLUNTÁRIA DE RECURSOS FEDERAIS. REPASSE AO MUNICÍPIO. RESTRIÇÕES NO CAUC OU SIAFI. VERBA DESTINADA À AÇÃO SOCIAL. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 26 DA LEI 10.522/2002. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.
I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/2015.
II. Trata-se, na origem, de Ação Ordinária, ajuizada pelo Município de Juru/PB em face da União e da Caixa Econômica Federal, com o objetivo de obter o repasse dos recursos relativos ao Convênio 047067/2014 - cujo órgão gestor é o Ministério do Desenvolvimento Agrário, referente à elaboração, para o ente municipal, de projeto que tem por objeto o "apoio à estruturação de Serviço de Inspeção Sanitária e SUASA no Território da Serra do Teixeira" -, inobstante a existência de restrições que ensejaram a inscrição do Município no SIAFI/CAUC, como inadimplente. O acórdão do Tribunal de origem manteve a sentença, que julgara procedente o pedido.
III. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que, na hipótese de transferência voluntária de recursos federais à Municipalidade, destinados a ações sociais e a ações em faixa de fronteira, a anotação desabonadora, junto ao SIAFI e CAUC, deve ter seus efeitos suspensos. Precedentes.
IV. Na forma da jurisprudência, "o termo 'ação social' presente na mencionada lei diz respeito às ações que objetivam o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, cuja realização é obrigatória por parte do Poder Público, como aquelas mencionadas na Constituição Federal, nos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217 (alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto)" (STJ, REsp 1.527.308/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 05/08/2015).
V. Na hipótese em exame, o acórdão recorrido concluiu que "o objeto do convênio em apreço, qual seja, apoio à estruturação de Serviço de Inspeção Sanitária e SUASA no Território da Serra do Teixeira, enquadra-se no conceito de ação social para os fins previstos na aludida Lei nº 10.522/2002", uma vez que, "de acordo com a perspectiva normativa, acima referenciada, dar apoio à estruturação dos serviços de inspeção sanitária dos empreendimentos de agricultura familiar, como forma de agregar valor aos produtos de origem animal e vegetal produzidos pelas famílias de agricultores, é obra que visa a garantir a saúde dos animais e dos vegetais, promovendo a qualidade e a segurança higiênico-sanitária e tecnológica dos produtos a serem consumidos pela população local, o que não pode ser tido como uma ação exclusivamente de infraestrutura, mas também de saúde pública, e, como tal, assegura a concretização de direito social inserto no art. 196 da Constituição Federal". Assim, estando o acórdão recorrido em consonância com a jurisprudência sedimentada nesta Corte, merece ser mantida a decisão ora agravada, em face do disposto no enunciado da Súmula 568 do STJ.
VI. Agravo interno improvido. 
(AgInt no REsp 1694323/PB, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/10/2019, DJe 29/10/2019) (grifo nosso)

 

Dos julgados acima já se pode concluir a primeira premissa. Se determinadas matérias são consideradas ações sociais e outras não, é porque o Tribunal da Cidadania pressupõe a Constitucionalidade do art. 26 da Lei º 10.522/02, como afirmado e fundamentado neste Parecer.

Tanto que as ações consideradas pelo STJ vão muito além da saúde, assistência social e educação previstas no art. 25, §3º da LRF, englobando também, no entender do Superior Tribunal as "ações que objetivam o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, cuja realização é obrigatória por parte do Poder Público, como aquelas mencionadas na Constituição Federal, nos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217 (alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto)".

O Tribunal tem consolidado ainda que que a expressão "ações sociais" não pode estender-se a ponto de abarcar situações que o legislador não previu e, consequentemente, seu conceito deve decorrer de interpretação teleológica e sistemática. O entendimento, embora mencione a interpretação sistemática, tem dado especial atenção ao art. 26 da Lei nº 10.522/02, mormente o binômio ações sociais versus ações governamentais, ou ainda se o objeto tem relação direta, íntima ou estreita com ação social.

O STF, noutro giro, tem concedido liminares referendadas pelas turmas julgadoras, com o escopo de afastar as restrições em face dos entes federativos:

 

EMENTA: AÇÃO CAUTELAR. INSCRIÇÃO DE ESTADO-MEMBRO NO CADASTRO ÚNICO DE EXIGÊNCIAS PARA TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS - CAUC. ÓBICE AO REPASSE DE VERBAS E À CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIOS. SECRETARIA EXECUTIVA DA FAZENDA DO ESTADO DE ALAGOAS. SUSPENSÃO DO REGISTRO DE INADIMPLÊNCIA. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. REFERENDO.
1. O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a ocorrência de conflito federativo em situações nas quais a União, valendo-se de registros de supostas inadimplências dos Estados no Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias – CAUC, impossibilita o repasse de verbas federais.
2 . O registro da entidade federada, por suposta inadimplência, nesse cadastro federal pode sujeitá-la a efeitos gravosos, com desdobramentos para a transferência de recursos.
3. Em cognição primária e precária, estão presentes a fumaça do bom direito e o perigo da demora.
4. Medida liminar referendada.
(STF - AC: 2973 DF, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 13/09/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-047 DIVULG 06/03/2012 PUBLIC 07/03/2012). (grifo nosso)
 
 
“Pretende-se a concessão de liminar para a imediata suspensão de registro de inadimplência do Estado no SIAFI, de forma a possibilitar sejam firmados acordos de cooperação e convênios, bem como obtenção de recursos junto a órgãos ou entidades federais. (...) Vislumbro o conflito entre a União e o Estado, razão pela qual reconheço a competência do Supremo Tribunal Federal para a ação, nos termos do art. 102, I, "f", da Constituição Federal de 1988. A questão apresentada para análise não é nova neste Supremo Tribunal Federal. Em diversos precedentes análogos, a Corte já se manifestou pela concessão da liminar para afastar a inscrição do Estado no SIAFI/CADIN, sob o argumento de que a inviabilidade de formalizar acordos e convênios, bem como receber repasses de verbas, pode gerar prejuízos ainda maiores (inclusive com a paralisação de serviços essenciais) do que a ausência da inscrição do Estado, supostamente devedor, nesses bancos de dados. Nesse sentido, os seguintes precedentes: AC nº 39 (MC), Rel. Min. Ellen Gracie, monocrática, DJ 11.07.03; AC 223 (MC), Rel. Min. Gilmar Mendes, monocrática, DJ 23.04.04; AC 266 (MC), Rel. Min. Celso de Mello, monocrática, DJ 31.05.04; AC nº 259 (MC), Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, unânime, DJ 03.12.04; AC nº 659 (MC), Rel. Min. Carlos Britto, Plenário, unânime, julg. 12.06.06. Assim sendo, por entender presentes os requisitos legais, defiro a liminar para determinar a suspensão da inscrição do Requerente no SIAFI, sem prejuízo de melhor exame da matéria quando do julgamento do mérito” 
(STF - AC: 1260 BA, Relator: Min. ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 27/05/2008, Data de Publicação: DJe-099 DIVULG 02/06/2008 PUBLIC 03/06/2008). (grifo nosso)
 

Observa-se assim que a jurisprudência pátria não limita a abrangência da expressão "ações sociais" tão somente às "ações de educação, saúde e assistência social".

De fato, uma interpretação que limite o conteúdo do art. 26 da Lei nº 10.522/2002 para restringir sua aplicação às exceções já previstas no art. 25, §3º, LRF, faria letra morta o primeiro dispositivo, tornando-o absolutamente inútil, pois as exceções para ações de educação, saúde e assistência social já possuem explícita previsão da Lei Complementar 101, de 2000. Neste sentido, o Parecer GM-27, vinculante para a Administração porque aprovado pelo Presidente da República e publicado no Diário Oficial da União, ao fixar exegese que não limita o sentido da expressão "ações sociais" às exceções já previstas na LRF, está a conferir eficácia prática ao dispositivo legal, sem negar sua vigência, tudo em estrito respeito à harmonia e independência dos Poderes e às atribuições próprias do Poder Legislativo e do Poder Judiciário.

Sobe o ponto, cabe destacar que o art. 22 da atual Portaria Interministerial nº 424, de 30 de dezembro de 2016 condensa as condições que devem ser observadas para celebração de transferência voluntária através de convênio ou contrato de repasse.

Ao observar o dispositivo, verifica-se que ele reproduz condições para celebração previstas não somente na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas também em outros normativos, como exigências constitucionais e exigências previstas em legislação ordinária, como exemplo o inciso XXII que decorre da Lei de Parcerias Público Privadas (Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004), e o inciso XIX que decorre da denominada Lei das Estatais (Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016).

Nesse sentido, caso prevaleça a exegese no sentido de que a matéria referente à transferências voluntárias é irrestritamente reservada apenas à Lei Complementar, não haveria respaldo constitucional para nenhum desses requisitos do art. 22 da Portaria Interministerial n 424, de 2016, que decorrem de leis ordinárias, nem mesmo daria-se vigência ao art. 195, § 10, da CRFB.

Igualmente, o próprio art. 116 da Lei nº 8.666, de 1993, regulamenta transferências voluntárias através de convênios e instrumentos congêneres e, embora seja lei ordinária, disciplina, inclusive o que deve ser feito com recursos ainda não utilizados na execução da parceria. Outros exemplos previstos na legislação ordinária seriam o art. 50 da Lei nº 11.445, de 2007 e o art. 16, da Lei nº 12.305, de 2020, que regulamentam o repasse de recursos da União, relacionados, respectivamente, ao saneamento básico e à Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Desta maneira, como os critérios e condições para realização das transferências voluntárias não são estritamente reservados à Lei Complementar, as exceções, evidentemente, também não o são, desde que sejam voltadas para proteger valores axiológicos ou bens jurídicos tutelados pela Constituição.

A Lei Eleitoral (Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997) traz um claro exemplo sobre a conclusão alcançada neste Parecer. Em um mesmo dispositivo, a Lei ordinária cria limites, critérios e exceções no que concerne a transferência voluntária de recursos durante o período de defeso eleitoral. Vejamos:

 

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
(...)
a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública; (grifo nosso)

 

Assim, consolidado o entendimento de que o conceito de "ações sociais" previsto no art. 26 da Lei nº 10.522 é constitucional e uma exceção lícita às exigências para realização de uma transferência voluntária, como tratado por nossos Tribunais Judiciais, resta delimitar quais seriam estas ações, já que como visto, devem elas encontrar base constitucional para que se possa ser realizada a transferência voluntária, mesmo com inadimplemento do ente público registrado no CADIN.

Nessa esteira, como já destacado neste Parecer, consonante o Parecer GM – 27, há duas premissas que devem ser preenchidas para que determinada ação governamental seja qualificada como "ação social" para os fins do art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, quais sejam: a ação “deve objetivar o atendimento de um direito social previsto constitucionalmente”; e “deve ter caráter obrigatório para o Poder Público”, sendo que esta segunda premissa “explica a natureza excepcional da norma em comento: a União não poderia deixar de executar as ações em benefício dos cidadãos titulares dos direitos sociais apenas porque o Estado, o Distrito Federal e o Município onde eles residem não cumpriram as obrigações assumidas anteriormente. Isso seria punir os cidadãos pela desídia de administradores, postura que certamente não encontra respaldo constitucional”.

Ainda na forma do Parecer GM-27, as "ações sociais" a que se refere o art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, “são aquelas ínsitas no Título VII, da Constituição da República (arts. 193 a 217) referente à ordem social, nesta abrigando, principalmente, as questões relativas à seguridade social, à saúde, à previdência social, à assistência social, à educação, à cultura e ao desporto”.

Cabe, todavia, um complemento ao conceito de ações sociais traduzidos pelo Parecer GM-27. Isto porque o conceito além de possuir uma faceta jurídica, também se reveste de uma faceta técnica. Explico.

Como demonstrado ao longo deste Parecer, a licitude e constitucionalidade do art. 26 da Lei nº 10.522/02 vem do fato de que a exceção às exigências para realização de transferências voluntárias não decorrem apenas da lei ordinária, mas sim da Constituição Federal, em relação as ações e políticas em que o texto maior cria uma obrigatoriedade de ação estatal em prol da população e do interesse público.

Nesse sentido, as ações sociais aptas a excepcionar as exigências legais para realização de transferências voluntárias são aquelas que encontram fundamento jurídico na Constituição, devendo objetivar o atendimento de um direito social e possuir caráter obrigatório para o Poder Público. A título exemplificativo podemos citar:

 

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.        (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

 

Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
 
 Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
 
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
 
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:          (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)            (Vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
 
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: (...)
 
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
 
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
 
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
 
Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.            (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015)

 

Sobre o aspecto jurídico, na linha dos Tribunais Pátrios, estes seriam alguns exemplos de ações sociais que poderiam excepcionar a regra das adimplência no CADIN para realização da transferência voluntária. Este é o primeiro passo que garante a aplicabilidade e validade do art. 26 da Lei nº 10.522/02.

Entende-se, todavia, que nem toda ação de Cultura, por exemplo, pode ser considerada uma ação social simplesmente por estar prevista no texto constitucional. Isto porque o conceito da expressão “ações sociais”, para o fim da Lei nº 10.522/2002 deve ser resultado de uma interpretação restritiva, teleológica e sistemática, mormente diante do fato de que qualquer ação governamental em prol da sociedade poderia ser passível de enquadramento no conceito de ação social.

Assim, além da previsão constitucional, deve a Administração Pública, ao realizar uma transferência voluntária e constatar que o ente que irá pactuar o ajuste convenial encontra-se inadimplente no CADIN, justificar a realização da transferência com base no art. 26 da Lei º 10.522/02, demonstrando a natureza constitucional da exceção e que o objeto daquele convênio/contrato de repasse em si é considerado uma ação social por trazer os benefícios à população local do ente convenente, definindo assim porque considera aquele objeto uma ação social.

Deste modo, justifica-se a excepcionalidade da exceção e garante-se efetividade à Constituição Federal.

Em outros termos, a Constituição Federal permite que o Poder Público excepcione os requisitos de adimplência legal para ações sociais do esporte (art. 26 da Lei nº 10.522/02 c/c art. 217, CRFB), todavia, dentro do universo de convênios e contratos de repasse cuja matéria envolva o tema esporte, poderá a Pasta competente, de forma justificada e fundamentada, definir o que deve ser considerado como ação social.

Esta definição poderá ser exarada em cada caso concreto, mediante manifestação técnica, ou de forma prévia, desde que a Pasta ministerial elabore normativo já definindo, dentro de suas atribuições, quais ações são consideradas ações sociais para efeito do disposto no art. 26 da Lei nº 10.522/02.

Nesse sentido, a Constituição Federal possibilita aos Ministros de Estado "expedir instruções para a execução das leis", como é o presente caso, a definição dentro das matérias daquele órgão administrativo do que se considera ações sociais. Estando tal normativo em consonância com o art. 26 da Lei nº 10.522/02 e as atribuições concedidas pela Lei Maior.

 

Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;
II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;
III - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério;
IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República. (grifo nosso)
 

Desta forma, entende-se que a aplicação do art. 26 da Lei nº 10.522 para o conceito de ações sociais na forma trazida por este parecer, garantirá sua aplicação a partir do resultado de uma interpretação restritiva, teleológica e sistemática, como preconizado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e de acordo com a Constituição Federal, norma fundamental que orienta a interpretação de todas as demais leis.

 

III - CONCLUSÕES E ENCAMINHAMENTOS

 

Ante o exposto, conclui-se que:

 

a) De acordo com o art. 25, § 3º, da Lei Complementar nº 101/2000; o art. 26, caput, da Lei nº 10.522/02; e o art. 13, caput, Lei n° 13.756/18; configuram exceções ao regime de impedimentos à transferência voluntária de recursos: educação, saúde, assistência social, garantia da segurança pública, execução da Lei Penal, preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, proteção às vítimas e testemunhas, ações de defesa nacional, ações em faixa de fronteira, ações sociais, dentre outros tenham previsão legal específica, desde que haja fundamento constitucional que dê suporte à exceção criada legalmente;

 

b) A Lei Fundamental previu lei complementar para versar normas gerais sobre finanças públicas, gestão financeira e patrimonial da administração, fiscalização, mas também reservou lei ordinária para a especificação de critérios (e exigências) a serem obedecidos previamente às transferências de recursos. Os dispositivos que previram a edição de lei complementar devem ser interpretados sistematicamente com os demais, notadamente os que predeterminam expressamente a publicação de lei ordinária para assuntos específicos, como analogicamente ocorreu com o art. art. 195, § 10, da CRFB: “a lei definirá critérios de transferências de recursos para o sistema único de saúde e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida” (art. 195, § 10, da CRFB). Assim, a matéria é pertinente ao legislador ordinário, ainda que nada impeça a edição de lei complementar;

 

c) O conceito de ações sociais, para os fins do art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, são concretizados e identificados através de duas premissas: (a) a ação, objeto da transferência voluntária “deve objetivar o atendimento de um direito social”; e (b)“deve ter caráter obrigatório para o Poder Público”, sendo que esta segunda premissa "explica a natureza excepcional da norma em comento: a União não poderia deixar de executar as ações em benefício dos cidadãos titulares dos direitos sociais apenas porque o Estado, o Distrito Federal e o Município onde eles residem não cumpriram as obrigações assumidas anteriormente. Isso seria punir os cidadãos pela desídia de administradores, postura que certamente não encontra respaldo constitucional" (Parecer GM-27). 

 

d) Assim, em conformidade com os Tribunais pátrios (REsp 1.527.308/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 5/8/2015), encontra-se fundamento constitucional para caracterizar como "ações sociais" o objeto que visa o atendimento dos direitos sociais assegurados aos cidadãos, como aqueles mencionadas na Constituição Federal, nos artigos 6º, 193, 194, 196, 201, 203, 205, 215 e 217 (alimentação, moradia, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, ordem social, seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, cultura e desporto).

 

e) É possível que os Ministérios definam, através de ato normativo, quais ações são consideradas "ações sociais" para efeito do disposto no art. 26 da Lei nº 10.522/02, dentro das atribuições e competências das matérias tratadas e políticas públicas executadas no âmbito de cada Pasta.

 

f) Segundo o art. 20, § 2º, da CF, a faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei. Conforme o art. 26, caput, da Lei nº 10.522/02, a hipótese fora prevista pelo legislador de forma independente e sem qualquer ligação com direitos sociais. Por conseguinte, não cabe ao intérprete subordinar a determinação do seu sentido e alcance às demais esparsamente especificadas pelo legislador. Salvo o advento de expressa disposição legal em contrário, se por outro motivo não estiver impedido o repasse, as transferências voluntárias voltadas às ações em faixa de fronteira não estão adstritas ao regime das vedações para transferência de recursos a que se refere o art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, independentemente da natureza do objeto pactuado.

 

Por fim, sugere-se que se dê ciência a todas as Consultorias Jurídicas junto aos Ministérios, à Procuradoria-Geral da União, à Procuradoria-Geral Federal e à Secretaria-Geral de Contencioso.

 

 

À consideração superior.

 

Brasília, 14 de janeiro de 2021.

 

 

(assinatura eletrônica)

Gustavo Almeida Dias

Advogado da União

 

Carlos Freire Longato

Advogado da União

 

João Paulo Chaim da Silva

Advogado da União

 

Marcela Muniz Campos

Advogada da União

 

Marcos Henrique Oliveira Andrade Góis

Advogado da União

 

Marcus Monteiro Augusto

Advogado da União

 

Michelle Marry Marques da Silva

Advogada da União

Coordenadora da Câmara Nacional de Convênios e Instrumentos Congêneres

 

Rafael Schaefer Comparin

Advogado da União

 

Viktor Sá Leitão de Meira Lins

Advogado da União

 

 


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Notas

  1. ^ BARRSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Disponível em <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf> Acesso em 08 dez. 2020
  2. ^ GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4ª Edição. São Paulo - SP: Editora Malheiros, 2006.



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