ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CÂMARA NACIONAL DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS - CNLCA/DECOR/CGU


 

PARECER n. 00002/2021/CNLCA/CGU/AGU

 

NUP: 25000.193248/2018-73

INTERESSADA: CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA SAÚDE

ASSUNTOS: Cotas exclusivas para microempresas e empresas de pequeno porte. Enunciado da CNLCA.

 

 

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES E CONTRATOS. LC 123/2006. COTAS EXCLUSIVAS PARA ME/EPP/EQUIPARADAS. INTERPRETAÇÃO LÓGICO SISTEMÁTICA. APLICAÇÃO DO LIMITE SISTEMÁTICO. POSSIBILIDADE.
I - A cota exclusiva possui natureza jurídica idêntica ao item exclusivo, pois ambas são permissões legais para disputas licitatórias excludentes e restritivas, em favor das microempresas e empresas de pequeno porte, portanto, deve se submeter ao limite definido pelo próprio legislador (limite sistemático).
II - O percentual da cota exclusiva não é, necessariamente, de 25%, mas pode ser estabelecido em “até” 25%.
III - Não há submissão entre os incisos I e III do artigo 48 da LC 123/2006, mas sim uma necessária coerência, compreensível através de uma interpretação lógico-sistemática.
IV - Ao definir o percentual a ser aplicado para a cota exclusiva para ME/EPP, prevista no inciso III do artigo 48 da LC 123/2006, o limite sistemático impõe que o gestor, respeitando a lógica de favorecimento a essas pessoas jurídicas, tenha como limite para a definição discricionária do percentual, o patamar definido no inciso I do mesmo artigo 48 (R$ 80.000,00).
V - O limite sistemático prestigia a legalidade e princípios fundamentais da licitação, como isonomia e competitividade, ao definir um patamar máximo legal para a quebra radical da igualdade e estabelecimento de certames exclusivos, restritivos à competitividade. 

 

 

 

 

DO RELATÓRIO

 

Trata-se de solicitação, encaminhada através do Despacho nº 00001/2021/CNLCA/CGU/AGU, para que esta Consultoria-Geral da União elabore manifestação jurídica que fundamente enunciado aprovado na 17ª Sessão Administrativa (com exposições de motivos aprovada na 19ª Sessão Administrativa), relacionado ao limite sistemático para cotas exclusivas em licitações ME/EPP:

 
Enunciado: Ao definir o percentual a ser aplicado para a cota exclusiva para ME/EPP, prevista no inciso III do artigo 48 da LC 123/2006, o limite sistemático impõe que o gestor, respeitando a lógica do sistema de favorecimento a essas pessoas jurídicas, tenha como limite para a definição discricionária do percentual, o patamar definido no inciso I do mesmo artigo 48 (R$ 80.000,00).

 

Por oportuno, convém relatar que o presente processo foi iniciado em razão de demanda da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde (CONJUR/MS) e sua posição jurídica sobre a aplicação do limite sistemático de R$ 80.000,00 nas cotas reservadas de até 25% para ME/EPP (art. 47 c/c art. 48, inc. I e III, Lei Complementar n.º 123/2006).

 

Provocado por consulta formulada pelo DLOG do Ministério da Saúde, a Conjur/MS, através do PARECER nº 01223/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU, tratou sobre “a possibilidade da não aplicação das cotas reservadas às Micro e Pequenas empresas para as aquisições de Insumos Estratégicos de Saúde”. A referida manifestação concluiu pela “possibilidade de não aplicação da cota reservada às microempresas e às empresas de pequeno porte nas hipóteses previstas no artigo 49 da Lei Complementar nº 123/06 e no artigo 10 do Decreto nº 8.538/15”, ressaltando, contudo, que “a simples superioridade dos preços obtidos na cota reserva frente à cota não reservada não é suficiente, por si só, para afastar a aplicação do benefício em questão”.

 

Em seguida, o DESPACHO nº 04239/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU, avançando mais na questão, aprovou parcialmente o Parecer nº 01223/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU, concluindo que a área deveria “analisar adequadamente cada caso concreto, para verificar se é possível ou não a realização de licitação exclusiva ou com cota reservada, atentando sempre para a necessidade de justificativa no caso de impossibilidade verificada”. Ademais, indicou que, caso a área entendesse pela aplicação das cotas reservadas, seria “interessante observar as disposições doutrinárias acerca do limite sistemático para definição do percentual”.

 

A Consultoria Jurídica ratificou o entendimento já exposto no PARECER REFERENCIAL nº 08/2017/CONJUR-MS/CGU/AGU, proferido nos autos do Processo nº 25000.043906/2017-04, no sentido de que a própria Lei Complementar 123/2006 e o Decreto 8.538/2015 preveem hipóteses nas quais se pode afastar a reserva de cotas para as microempresas e empresas de pequeno porte, especialmente quando a adoção desse mecanismo "não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, como aparenta justificar, abstratamente, os fundamentos contidos na Nota Técnica nº 217/2018- DIMEC/CGIES/DLOG/SE/MS (6508796), o que deverá ser devidamente demonstrado em cada caso concreto".

 

Já em 2019, o PARECER nº 00427/2019/CONJUR-MS/CGU/AGU, aprovado pelo DESPACHO nº 02156/2019/CONJUR-MS/CGU/AGU, tratou especificamente sobre consulta relacionada a pedido de revisão da Nota Técnica nº 221/2018, SEI nº 8959940 (que versa sobre a aplicação do benefício das cotas reservadas nos pregões de medicamentos do Ministério para as microempresas e empresas de pequeno porte, e foi criada como forma de subsidiar a não aplicação do referido instituto, demonstrando a sua não vantajosidade).

 

O elogiável Parecer não se restringiu a repetir os argumentos jurídicos favoráveis ao "limite sistemático" nas cotas exclusivas, e relembrar os precedentes da própria AGU (da Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa e da Consultoria Jurídica da União em São Paulo) e as posições doutrinárias convergentes com sua compreensão, como também fez questão de pesquisar e expor como a aplicação irrefletida das cotas exclusivas gerava prejuízos nas licitações de insumos estratégicos para a saúde e como a ausência de aplicação do "limite sistemático" dá ensejo a distorções nessas contratações, reforçando a inexistência de qualquer razão jurídica ou fática para a alteração do entendimento.

 

Ao final, o PARECER nº 00427/2019/CONJUR-MS/CGU/AGU, buscando construir pacificação no tema, sugeriu encaminhamento ao Departamento de Coordenação e Orientações de Órgãos Jurídicos -DECOR/AGU, para "manifestação de entendimento sobre a aplicação do limite sistemático de R$ 80.000,00 previsto na Lei Complementar nº 123/2006 e Decreto nº 8.538/2015, com a sugestão de expedição de Orientação Normativa sobre o tema".

 

Departamento de Coordenação e Orientações de Órgãos Jurídicos emitiu a NOTA nº 00254/2019/DECOR/CGU/AGU, indicando que faltaria competência ao Departamento, ao menos por hora, para manifestar-se no feito, pela ausência de divergência. Contudo, visando a instrução processual e apuração de eventual divergência de entendimento jurídico a ser dirimido, em razão de possível transversalidade da matéria, recomendou que fosse expedido ofício à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional/Consultoria de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (PGFN/CONJUR-PDG) para que acostasse eventuais subsídios.

 

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional exarou o DESPACHO nº 70/2019/CGLA/PGACD/PGFN-ME remetendo os autos ao Departamento de Logística da Secretaria de Gestão para que esta, caso entendesse tratar-se de questão de seu interesse ou competência, prestasse os subsídios entendidos por oportunos, bem como que respondesse aos seguintes questionamentos:

O Departamento de Normas e Sistemas de Logística, por seu turno, opinou através da NOTA TÉCNICA SEI nº 15368/2019/ME que:

 

10. Pelo exposto, de forma a responder objetivamente o requestado, traz-se à colação os questionamentos de modo itenizado, para melhor compreensão:
10.1."A intenção desse órgão normativo quanto à aplicação da cota prevista no art. 48, III da Lei Complementar nº 123, de 2006 era de que ela fosse limitada ao patamar previsto para a licitação exclusiva de ME/EPP (no caso R$80.000,00)?"
CGNOR/Seges: Conforme explicitado nos itens 5, 7 e 8 desta Nota Técnica , a cota reservada recai essencialmente na divisibilidade do objeto. Já o processo licitatório destinado exclusivamente à microempresas e empresas de pequeno porte - licitação exclusiva até R$ 80.000,00 (oitenta mil) -, está calcado, como prediz a literalidade da LC nº 123, de 2006, no valor da compra. Portanto, não se comunicam. Se fosse para limitar a cota reservada até R$ 80.000,00 (oitenta mil), indubitavelmente, deveria haver previsão expressa nesse sentido tanto na Lei Complementar nº 123, de 2006, quanto no Decreto nº 8.538, de 2015, o que não ocorre. Não pode haver interpretações ao largo da lei, sobrepujando-a. Isso em face do princípio da estrita legalidade.
10.2. "Caso não tenha sido essa a intenção, é possível dimensionar as repercussões práticas, nas contratações públicas, da imposição de tal limitação?"
CGNOR/Seges: Conforme explicitado ao longo desta Nota Técnica, não há comunicação entre a cota reservada e licitação exclusiva até R$ 80.000,00 (oitenta mil), por conseguinte, fica prejudicada à análise/resposta sobre as "repercussões práticas, nas contratações públicas, da imposição de tal limitação".

 

Em seguida, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, acatando a orientação dada pela NOTA TÉCNICA SEI nº 15368/2019/ME, confeccionou o PARECER SEI nº 2027/2020/ME, concluindo pela impossibilidade de aplicação do "limite sistemático" defendido pelas unidades da AGU anteriormente citadas:

 

[...] 15. Desse modo, cada privilégio atribuído a Microempresas e Empresas de Pequeno Porte deve ser lido de forma autônoma, já que todos possuem a mesma hierarquia normativa, lógica e topológica. A imposição do limite do inciso I do art. 48 no inciso III implicaria subordinar este a aquele, o que não é previsto na lei ou na sua regulamentação, muito menos se mostra como medida necessária para salvaguardar a legalidade ou constitucionalidade da cota reservada, nos moldes em que prevista na redação literal do inciso III e na regulamentação do art. 8º do Decreto nº 8.538/15.

 

Retornando o processo ao Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos (DECOR), foi exarado o PARECER nº 00021/2020/DECOR/CGU/AGU, concluindo que “não é possível de se inferir da legislação pátria atual o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) nas cotas reservadas às ME e EPP de até 25% do objeto da contratação em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inc. I e III, da LC 123/2006)”.

 

Contudo, o DESPACHO nº 00766/2020/DECOR/CGU/AGU entendeu necessário o sobrestamento da apreciação conclusiva do Parecer nº 00021/2020/DECOR/CGU/AGU, tendo em vista o enunciado aprovado na 17ª Sessão Administrativa da Câmara Permanente de Licitações e Contratos Administrativos, em 29 de outubro de 2019, com o seguinte conteúdo:

 

Enunciado: Ao definir o percentual a ser aplicado para a cota exclusiva para ME/EPP, prevista no inciso III do artigo 48 da LC 123/2006, o limite sistemático impõe que o gestor, respeitando a lógica do sistema de favorecimento a essas pessoas jurídicas, tenha como limite para a definição discricionária do percentual, o patamar definido no inciso I do mesmo artigo 48 (R$ 80.000,00).
 

Nessa linha, conforme o DESPACHO nº 00790/2020/DECOR/CGU/AGU, que aprovou o DESPACHO nº 00766/2020/DECOR/CGU/AGU, tendo sido a matéria objeto de análise da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos da Consultoria-Geral da União - CNLCA, deveria ser solicitada nova apreciação e manifestação da referida Câmara.

 

A nova apreciação foi provocada, o tema novamente deliberado pelos membros da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos da Consultoria-Geral da União – CNLCA, os quais se manifestaram pela manutenção do enunciado outrora aprovado, conforme DESPACHO nº 00001/2021/CNLCA/CGU/AGU:

 

[...]
2. Tendo em vista a sugestão, o assunto foi pautado por esta subscritora na 19º Sessão Administrativa, de 16 de novembro de 2020, e os integrantes entenderam de forma unânime que não cabia nova apreciação já que o enunciado tinha sido aprovado na 17ª sessão pelos presentes, com o quórum suficiente e regular. No entanto, foi destacado que na sessão anterior o Dr. Ronny Charles se colocou à disposição para confeccionar a exposição de motivos do enunciado aprovado na 17ª sessão, relacionado ao limite sistemático para cotas exclusivas em licitações para ME/EPP. Conforme combinado, o Dr. Ronny Charles apresentou a exposição de motivos, sendo lida e aprovada pelos colegas presentes. (Ata de Reunião da 19ª Sessão Administrativa, seq. 37, NUP 00688.000717/2019-98).

 

Por fim, diante do enunciado aprovado e confirmado pela Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativo na 18ª Sessão Administrativa e da exposição de motivos apresentada na 19ª Sessão, promoveu-se a distribuição do processo para elaboração de manifestação jurídica que fundamente o enunciado, a fim de que seja analisado e apreciado pelas autoridades superiores.

 

É o Relatório.

 

 

DA ANÁLISE JURÍDICA

 

A questão posta à análise envolve a aplicação do "limite sistemático" às denominadas cotas exclusivas, benefício de licitação diferenciada previsto no inciso III do artigo 48 da Lei Complementar 123/2006.

 

Vale, preambularmente, a leitura do texto legal:

 

Art. 48.  Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública: (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
II - poderá, em relação aos processos licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, exigir dos licitantes a subcontratação de microempresa ou empresa de pequeno porte; (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
III - deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) (grifo nossos)

 

 Segundo este dispositivo, em licitações para aquisições, um item que envolva bens de natureza divisível pode ser segmentado (dividido) para gerar uma cota de até 25%, para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte.

 

Em outras palavras, e é bom que se atente para isso, o item original é fracionado em duas partes, sendo a segunda de até 25% de seu valor integral, que passará a ser um item exclusivo para microempresas e empresas de pequeno porte.

 

Necessário perceber duas constatações fundamentais.

 

Primeiramente, que a cota exclusiva possui natureza jurídica idêntica ao item exclusivo. Ambas são permissões legais de restrição à competitividade, admitindo que a licitação seja exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte, em detrimento do direito de todas as outras pessoas jurídicas ou físicas de disputarem aquele item da licitação. É uma limitação à obrigatoriedade de licitar em sua perspectiva subjetiva, pois restringe o direito dos outros interessados, que não ME/EPP/equiparados a disputar aquele objeto licitatório. 

 

A segunda é que, conforme o texto legal, o percentual da cota exclusiva não é, necessariamente, de 25%, mas pode ser estabelecido em “até” 25%. Esta nuance já deixa claro que o legislador não impõe um percentual fixo de 25%, mas um teto máximo do percentual a ser adotado, para fins de criação deste novo item (cota exclusiva). 

 

Mas o que justificaria a definição de um patamar ou percentual inferior a 25%, qual o parâmetro legítimo para fixar esse certame exclusivo para ME/EPP? 

 

Essa questão foi inicialmente tratada, na AGU, pela Consultoria Jurídica da União de São Paulo. É possível identificar, ainda em 2016 e 2015, manifestações daquele órgão consultivo, sobre o tema. Destaco, aqui, duas formuladas pelo Advogados da União Adriano Dutra Carrijo e Cássio Cavalcante (Parecer 1081/2016 e Nota 113/2015, respectivamente). Os membros daquele órgão consultivo ponderavam que, se era bem verdade que o inciso III do artigo 48 não previa um limite de valor expresso para a cota reservada (mas apenas um limite percentual), era necessária uma interpretação sistemática, compreendendo o inciso III do artigo 48 da LC nº 123/2006 em consonância com o inciso I do referido artigo, para respeitar o ponto de equilíbrio entre o fomento às ME/EPPs/equiparadas e a ampla competitividade/vantajosidade dos preços a serem obtidos nas licitações, respeitando o limite (de R$ 80.000,00) que o legislador admitiu como máximo a sacrificar a ampla competitividade.

 

Além das já citadas manifestações da Consultoria Jurídica da União em São Paulo (CJU/SP) e da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde (Conjur/MS), diversos outros membros da AGU já se manifestaram sobre o tema, defendendo a aplicação do limite sistemático para as cotas exclusivas.

 

Neste sentido, o Advogado da União Bruno Rocha, no Parecer n. 313/2018/CONJUR-CGU, da Consultoria Jurídica  junto ao Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União - CGU, ponderou que:

 
Adotando-se uma interpretação sistemática da legislação é possível se extrair que a cota exclusiva de 25%, além da divisibilidade do item, deve observar o limite de valor. O teto de R$ 80.000,00 estabelecido como patamar máximo para o benefício de exclusividade deve ser observado também nas cotas exclusivas. Ou seja, caso se aplique o percentual máximo de 25% dos itens, ainda assim, para ser possível, a cota exclusiva não poderia superar o valor de R$ 80.000,00. No presente caso a impossibilidade da cota exclusiva ocorreria por essa extrapolação do "limite sistemático".

 

Na mesma linha a Consultoria Jurídica junto ao Exército Brasileiro, através do Parecer n. 00687/2018/CONJUR-EB/CGU/AGU, de autoria da Advogada da União Denise Arêa Leão Barreto:

 

Ademais, pondera-se que, caso se trate de fato de licitação para aquisição de bens divisíveis, deve-se observar o art. 48, III, da Lei complementar n° 123, de 2006, que destina cotas de até 25% do quantitativo para licitação exclusiva às ME/EPP, justificando nos autos caso seja afastada essa regra. Nesse ponto, infere-se do item 5.2.2 que foi dada a cota reservada de 25% ao item 1 do termo de referência (fl. 114 e fl. 151). Todavia, alerta-se que a cota reservada pode ser fixada até 25% (limite legal) e não sendo necessariamente de 25%, devendo tal decisão ser tomada à discricionariedade do gestor. Tal cota reservada deve, ainda, respeitar a cota exclusiva às ME/EPP, de até R$ 80.000,00 (limite sistemático).
 

Há também precedente de utilização deste entendimento em manifestação da Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa, que emitiu o PARECER n. 00573/2016/CONJUR-MD/CGU/AGU, de autoria da Advogada da União Tânia Vaz:

 

Pois bem. Como se verifica nos retrotranscritos artigo 48, III da LC 123/2006 e art. 8º, caput do Decreto 8.538/2015, foi estabelecida, a par das outras formas de tratamento diferenciado, a obrigatoriedade de a Administração reservar, nas licitações de bens de natureza divisível, uma cota de até 25%, a ser destinada exclusivamente às ME/EPP e equiparados, ressalvados (i) os casos em que o estabelecimento de tal cota acarrete prejuízo para o conjunto ou o complexo do objeto; e (ii) as hipóteses do art. 49 da LC 123/2006.
(...)
 A melhor exegese, todavia, em nosso ver, é que a cota reservada, em sendo prevista no edital convocatório, seja limitada a R$ 80.000,00, teto definido para a exclusividade da participação de ME e EPP.
 Com efeito, a interpretação sistemática da LC nº 123/2006 sinaliza, em nosso ver, que a expressão “até” (inciso III do art. 48 da LC) tem exatamente esta finalidade, qual seja, de modular o percentual da cota reservada, visando adequá-lo ao teto definido para exclusividade de participação na licitação - R$ 80.000,00 (art. 48, inciso I da LC), sob pena de subversão do equilíbrio de interesses e princípios, contemplado na LC citada.
Nesse ponto, observo que a cota reservada nada mais é do que uma subdivisão do item (item ou lote = cota reservada + cota principal), que passa a ser dividido em dois - um para ampla participação e outro para ME/EPP/equiparados. Nessa ótica, interpretando-se o inciso III do artigo 48 da LC 123 e o artigo 8º, caput do Decreto 8.538, combinada e sistematicamente, com o inciso I do artigo 48 da Lei Complementar e com o artigo 6º, caput do Decreto, parece pertinente a conclusão de que a parcela correspondente à cota reservada não pode ultrapassar o limite de R$ 80.000,00.
Não é razoável, afinal, o entendimento de que o órgão não possa destinar exclusivamente às ME/EP/equiparados um item ou lote com valor superior a R$ 80.000,00, mas possa lhes destinar, com exclusividade, uma cota reservada com valor superior a esse limite, na medida em que a cota nada mais é do que um  “item” apartado do item composto por bens de natureza divisível, ao qual se concede exclusividade de participação.

 

A fundamentação de tal posição lastreia-se na lógica do sistema de favorecimento às ME/EPP, que lhes destina os itens de menor valor de forma exclusiva. Romperia essa lógica a existência de itens de grande valor com tal característica, e até mesmo por essa razão a Lei Complementar 123, no inciso III de seu artigo 48, estabeleceria a cota reservada de até 25%, justamente para que esta não ultrapasse o patamar de R$80.000,00 (oitenta mil reais), independentemente do valor da cota principal.

 

Tal entendimento também é defendido por qualificada doutrina. Como exemplo, podemos citar as lições de Joel de Menezes Niebuhr, jurista de destaque, segundo o qual o “único critério que se consegue colher da legislação para definir o percentual, que pode ir até 25%, em exercício de interpretação sistemática, é o estabelecido no inc. I do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06 para as licitações exclusivas”:

 

A questão é a seguinte: o inc. III do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06 prescreve que se promova licitação, para aquisição de bens de natureza divisível, com “cota de até 25%(vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte”. Fica claro que a cota reservada não é, necessariamente, de 25%. O texto prescreve que é “de até 25%”. Logo, em princípio, pode ser, por exemplo, 20%, 10%, 1%ou 0,5%. O limite máximo é 25%, o mínimo quem define é a Administração. A dúvida,então, é como definir esse percentual.
[...]
(i) A licitação com cota reservada é uma espécie de licitação exclusiva. A palavra licitação significa competição, disputa. Na cota reservada, existe uma competição (licitação)exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte. Pode-se dizer que é uma licitação exclusiva dentro de uma licitação maior, que, no seu conjunto, ultrapassa o limite da licitação exclusiva do inc. I do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06. Então, a lógica é que se reserve uma parte da licitação maior para competição (licitação) exclusiva entre microempresas e empresas de pequeno porte. Por consequência, a parte reservada deve guardar coerência com os limites da licitação exclusiva, que é de R$ 80.000,00.
(ii) Nas duas figuras, licitação exclusiva e com cota reservada, o legislador admite que a Administração pague mais caro para beneficiar as microempresas e empresas de pequeno porte. No entanto, com foco no princípio da proporcionalidade, o legislador estabeleceu limites para os impactos à economicidade. A Administração paga mais caro, porém dentro de um espaço limitado. O espaço é o definido pelo inc. I do art. 48 da Lei Complementar nº123/06 para as licitações exclusivas, de R$ 80.000,00. 
(iii) Se não fosse assim, haveria uma espécie de conflito de valores entre os critérios do legislador para a licitação exclusiva e para as com cota reservada. Seria contraditório estabelecer limite de R$ 80.000,00 para a licitação exclusiva e permitir que a cota reservada, que é uma espécie de licitação exclusiva, drague milhões, dezenas ou centenas de milhões de reais. (NIEBUHR: 2016).

 

Vale registrar, o TCU, no Acórdão 1.819/2018-Plenário, entendeu em sentido diverso, compreendendo que não procederia o entendimento de que os incisos I e III deveriam ser interpretados de forma cumulativa, já que não haveria determinação expressa na Lei ou no Decreto, nesse sentido.

 

Bem, é bom esclarecer que não se trata de "interpretação cumulativa", mas sim de uma interpretação lógico-sistemática ou uma compreensão funcional da norma jurídica decorrente da regra do inciso III do artigo 48 da LC 123/2006. Essa interpretação sistemática ou compreensão funcional identifica no próprio diploma que o legislador definiu um patamar de valor legitimador da quebra da isonomia e da competitividade, em favor de um certame exclusivo para ME/EPP. Assim, extrai-se da própria Lei esse entendimento, enriquecendo a interpretação do referido inciso III através de uma coerência lógico-sistemática com o diploma legal do qual ele faz parte.

 

Curioso que, no referido Acórdão, essa interpretação foi feita pela própria auditoria do Tribunal de Contas da União, criticando a adoção, pelo jurisdicionado, de cotas exclusivas no percentual de 25% em valores altos, em prejuízo à  competitividade, à eficiência e à economicidade. No referido Acórdão, inclusive, consta a informação de que em alguns lotes de cotas exclusivas as diferenças de preço ocorreram em percentuais superiores a 50%, com pagamentos indevidos superiores a R$ 2.163.825,00, não fosse a interrupção da execução dos respectivos registros de preços por meio de medida cautelar da Corte de Contas!

 

Contudo, pela ausência de limitação expressa de valor, divergindo do entendimento da auditoria, o Ministro Relator entendeu por aceitar a argumentação da defesa, posicionando-se contrariamente ao limite sistemático exigido pela auditoria, naquele caso concreto, já que não se trata de Acórdão com força normativa.

 

Essa discrepância entre valores foi bem identificada pelo Ministério da Saúde, como bem retratado pela Advogada da União Jamille Coutinho Costa, no PARECER n. 00427/2019/CONJUR-MS/CGU/AGU. A referida manifestação utilizou dados colhidos pelo Ministério e apresentou diversas situações nas quais a ausência do limite sistemático gerava distorções nas contratações da área. Em uma das situações indicadas, de acordo com o Parecer, a diferença monetária entre se contratar a aquisição destes itens com a empresa principal e com a cota foi algo em torno de R$ 5.176.981,50!

 

Refutando o entendimento manifestado pelo TCU, no Acórdão 1.819/2018, o Procurador do Estado de Alagoas, Evandro Pires de Lemos Júnior, em interessante escrito (Lemos Júnior: 2019),  trata sobre o tema de maneira juridicamente qualificada. Importante a leitura de alguns trechos:   

 

Por certo o entendimento manifestado pelo TCU no acordão 1819/18 é de que a aplicação do disposto no art. 48, III, da LC 123/06 - que estabelece a cota de participação exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte não possui qualquer limite de valor, devendo corresponder apenas a 25% do objeto licitado.
Tal entendimento não parece consentâneo à melhor hermenêutica.
De plano importante repisar, tal como apontado nas primeiras linhas desse texto, que essa norma se insere dentro de um sistema maior, que regulamenta as contratações públicas.
Na verdade, tem-se no caso uma norma que, num primeiro momento, regulamenta exatamente essa espécie de contratação e o faz para, de modo concomitante, estabelecer um regime favorecido de contratação para um determinado tipo de empresa.
Ora, se a primeira finalidade da norma é orientar as contratações públicas, por certo que sua interpretação deve ser feita em atenção a esse desiderato, observando as linhas mestras, os princípios, que orientam todas as normas desse sistema.
Dessa constatação tem-se a evidente conclusão de que a interpretação desse dispositivo deve seguir o mesmo vetor hermenêutico que orienta a aplicação de qualquer outra norma que aborde o tema das contratações públicas.
Importante observar, tal como apontado linhas acima, que a aplicação das normas que orientam a contratação pública deve levar em conta princípios como da igualdade e da vantajosidade.
É exatamente ao se utilizar como filtro hermenêutico esses princípios que se conclui que o entendimento do TCU não se mostra adequado.
No que se refere a norma do art. 48, III, da LC 123/06 tem-se presente regulamentação, repete-se uma vez mais, a respeito de contratação pública, estabelecendo-se que nas aquisições de objetos divisíveis deverá a administração estabelecer uma cota de até 25%que somente podem ser disputada, no certame, por microempresas e empresas de pequeno porte.
Tal como já apontado, e igualmente a norma do inciso I desse mesmo artigo, necessário ter em mente que o que aquela norma regula é uma limitação da competitividade no processo licitatório.
Observadas as normas sobre esse prisma necessário reconhecer que há, na situação presente, então dois diplomas normativos que regulam a mesma matéria, qual seja a limitação do espectro de potenciais participantes de um processo licitatório.
(...)
Ocorre que, analisando a questão de forma mais acurada, sob o prisma de que essas normas regulam o processo licitatório, há que se reconhecer a necessidade de existência de um parâmetro limitador, por isso o legislador utilizou a preposição "até", porque a cota não deve ser sempre de 25% (vinte e cinco por cento) do objeto.
Se fosse para não haver limite, sendo sempre a cota equivalente a 25% (vinte e cinco porcento) do objeto então teria a norma sido redigida "cota de 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação", mas não, a utilização da preposição, tal como referido,aponta para uma necessidade de que haja alguma gradação, tal como já apontado.
E aqui parece o ponto central da questão, não podendo relegar essa gradação ao agente público, para que o fizesse de forma subjetiva, a forma objetiva prevista na própria norma vem bem a calhar, posto que a mesma LC estabelece um limite, desta vez de valor, para as licitações em que a competição seja limitada a microempresas e empresas de pequeno valor.
Observe-se que essa aplicação conjunta tem o nítido condão de tornar aplicável ao caso concreto as duas normas que regulamentam o instituto (no caso a realização de um certame com disputa limitada a microempresas e empresas de pequeno porte), posto que restará estabelecida uma cota do objeto para disputa apenas entre essas empresas eo valor dessa cota estará dentro do limite legalmente admitido para restrição da competitividade.
Em que pese não se ter no presente caso um conflito de normas, mas a situação fronteiriça que se observa no caso faz recordar as lições de um dos maiores juristas da atualidade, o Prof. Humberto Ávila, que em sua excelente obra Teoria dos Princípios postula que a aplicação das normas (mesmo as chamadas normas-regra) devem levar em conta a proporcionalidade, devendo serem aplicados de acordo com a sua máxima potência e devendo observar os ditames da concordância prática.
Logo, a fim de não tornar letra morta a disposição do inciso I, a aplicação do inciso III,ambos do art. 48 da LC 123/06, deverá levar em consideração, como elemento limitador, a alçada fixada no primeiro para a restrição da competitividade. (grifo nosso)
 

A fundamentação do limite sistemático tem lastro na lógica do sistema de favorecimento às ME/EPP, prestigiando a Lei, a legalidade e princípios fundamentais da licitação, como isonomia e competitividade, ao definir um patamar máximo (legal) para a quebra radical da igualdade e estabelecimento de certames exclusivos, restritivos à competitividade. 

 

Essa lógica sistemática é comprometida quando a cota é calculada fixamente em 25%, sobre itens de grande valor.  Assim, por exemplo, aplicar a cota de 25% em um item (divisível) com valor integral de 20 milhões, implica um certame exclusivo para ME/EPP de 5 milhões de reais! Esse patamar é bem superior ao limite para a realização de um certame exclusivo, definido pelo inciso I, configurando incoerência em relação à realização de certames com restrição à competitividade, de maneira discriminatória e comprometendo o princípio da igualdade, tutelado pelo Constituinte em relação às licitações. Teria sido este o intento do legislador? Decerto que não. Como explica Diogo de Freitas Amaral, uma medida discriminatória é "proibida por violação do princípio da igualdade, se estabelece uma identidade ou uma diferenciação de tratamento para a qual, à luz do objetivo que com ela se visa prosseguir, não existe justificação material bastante". (AMARAL: 2015 p.110)

 

Para combater essa incongruência, o limite sistemático identifica a inteligência do legislador, ao definir, no inciso III de seu artigo 48, que a cota reservada seria de até 25%, justamente para que esta não ultrapasse o patamar de R$80.000,00, independentemente do valor da cota principal. Essa interpretação mantém a coerência do sistema de favorecimento, prestigia a competitividade e a isonomia.

 

Não há submissão entre os incisos I e III. Defender a interpretação lógico-sistemática objetiva alcançar uma maior coerência na aplicação das normas e, no caso em debate, compreender a norma jurídica a ser aplicada prestigiando o sistema de contratação pública, que, por definição constitucional deve prestigiar a igualdade e por diretriz deve ser interpretada de maneira a fomentar a competitividade.

 

Ao tratar sobre o processo sistemático de interpretação, Maximiliano já destacava que "por umas normas se conhece o espírito das outras". Assim, deve-se conciliar "palavras antecedentes com consequentes, e do exame das regras em conjunto, deduzir o sentido de cada uma". Em sua obra sobre hermenêutica e aplicação do Direito, o notável jurista explica ainda que "é difícil, por isso mesmo, compreender bem um elemento sem conhecer os outros, sem os comparar, verificar a recíproca interdependência, por mais que à primeira vista pareça imperceptível". Segundo ele "o Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma em seu lugar próprio" (MAXIMILIANO: 2007, P. 104/105).

 

Enquanto uma leitura isolacionalista e literal limita a atividade de interpretação da norma jurídica a uma versão apartada de cada um dois dispositivos, a interpretação baseada no elemento lógico-sistemático busca compreender o diploma como um todo, com suas potencialidades e limites, integrando um sistema jurídico maior. A interpretação do Direito não pode ser isolacionista, hipertrofiando a aplicação prática de regras apartadas, sem a necessária conexão com o sistema em sua integralidade, pois interpretar uma norma é interpretar um sistema inteiro, já que a exegese moderna deve envolver, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios gerais, de normas e de valores constituintes da totalidade do sistema jurídico (FREITAS: 2014).

 

Bem ensinava o clássico Miguel Reale, em suas "Lições preliminares de Direito" que:  

 

Cada artigo de lei situa-se num capítulo ou num título e seu valor depende de sua colocação sistemática. É preciso, pois, interpretar as leis segundo seus valores linguísticos, mas sempre situando-os no conjunto do sistema. Esse trabalho de compreensão de um preceito, em sua correlação com todos os que com ele se articulam logicamente, denomina-se interpretação lógico sistemática. (REALE: 2005, p. 279)

 

Quando se enfrenta o texto legal com uma interpretação lógica, "parte-se do pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a obtenção de seu significado correto", outrossim, quando se enfrenta o texto legal com uma interpretação sistemática, "a pressuposição hermenêutica é de uma unidade do sistema jurídico do ordenamento" ( FERRAZ JÚNIOR: 2007, p. 290/293).

 

Esta leitura lógico-sistemática auxilia a compreender que não se verifica qualquer antinomia ou subordinação entre os incisos I e III do artigo 48 da LC 123/2006. O inciso I trata de um limite de alçada para licitações exclusivas, enquanto o inciso III dispõe sobre licitações relacionadas a objetos de natureza divisível, sendo aplicado justamente quando o item original (e divisível) possuir um valor superior a R$ 80.000,00. Essa constatação, per si, leva à conclusão de que os dois dispositivos não devem ser aplicados ou interpretados de forma isolacionista. 

 

Para confirmar essa premissa, basta refletir sobre as situações que envolvem itens com objetos de natureza divisível, mas com valor inferior a R$ 80.000,00. Qual dos dispositivos aplicar, o inciso I ou o III?

 

Uma interpretação isolacionista conduziria a uma antinomia (inexistente) entre os dispositivos. Uma interpretação lógico-sistemática ou uma compreensão funcional percebe que esses dispositivos, em sua aplicação, possuem relação, sendo inaplicável a cota exclusiva, exceto naqueles itens de natureza divisível com valor superior ao limite geral de licitação exclusiva definido pelo inciso I. Esta interpretação lógico-sistemática não propõe subordinação entre os dispositivos, mas coerência em sua aplicação.

 

Na mesma linha de raciocínio, postou-se Evandro Pires de Lemos Júnior (Lemos Júnior: 2019):

 
Importante asseverar que é evidentemente possível que pretenda a administração adquirir um bem divisível e o valor estimado da contratação seja igual ou inferior a R$ 80 mil. Nessa situação, à toda evidência, necessário reconhecer que restará campo de atração da aplicação do inciso I do art. 48.
A aplicação prática das normas foi feita no sentido de que, em se tratando de bens de natureza divisível, o inciso III incidirá somente nos casos em que o valor estimado da contratação superar o limite do inciso I, de modo que quando o valor estimado da contratação superar R$ 80 mil deverá a administração estabelecer uma cota de participação exclusiva de até 25% do objeto.
 

Com a devida venia, de forma muito respeitosa aos ilustres colegas Advogados da União prolatores dos Pareceres SEI Nº 2027/2020/ME e Parecer n. 00021/2020/DECOR/CGU/AGU, a interpretação sistemática não subordina os incisos I e III do artigo 48 da Lei Complementar 123/2006, mas os integra, permitindo a devida coerência à aplicação da norma jurídica pertinente.

 

A divisibilidade imposta pelo inciso III do artigo 48 da LC 123/2006 não é um fundamento em si mesmo para que se justifique certames milionários, exclusivamente para microempresas e empresas de pequeno porte, em desprestígio à economicidade, à isonomia, à economicidade e, por que não dizer, à própria legalidade, já que subverte o limite de licitação exclusiva estabelecido pelo próprio legislador. A divisibilidade, na verdade, é uma condição necessária à aplicação do dispositivo, porque apenas a divisão do item original permitiria a criação da cota, que nada mais é do que formação de um item exclusivo para ME/EPP.

 

Nessa perspectiva, a cota exclusiva possui natureza jurídica de item exclusivo e deve se submeter ao limite definido pelo próprio legislador (limite sistemático). Curioso notar, inclusive, que, aparentemente até os dias atuais, a criação da cota exclusiva (inciso III do artigo 48) no sistema de realização da licitação eletrônica ocorre com a criação de um item exclusivo, nos moldes do inciso I do artigo 48.

 

A ausência de limitação expressa não impede a interpretação lógico-sistemática ou uma compreensão funcional da norma a ser aplicada. O próprio TCU, sem expressa previsão normativa à época, interpretando de forma coerente o tema, já recomendou que nas licitações para registro de preços com itens exclusivos para ME/EPP (inciso I do artigo 48), o somatório das contratações do gerenciador, dos participantes e dos futuros aderentes, para um determinado item/grupo, deveria respeitar o limite normativo de R$80.000,00 (TCU. Acórdão n. 2.957/2011-Plenário, rel. Min. André Luís de Carvalho). 

 

A própria Advocacia Geral da União, outrora, antes mesmo da regulamentação federal ou da alteração proposta pela Lei Complementar 147/2014 o fazer, com base também no elemento sistemático e lastreada na compreensão de que cada item é um objeto licitatório próprio e caracterizado por certa autonomia, já havia construído o entendimento de que o limite de R$ 80.000,00 para a realização de licitação exclusiva deveria ter como parâmetro cada item e não toda a pretensão contratual (edital). Na mesma linha, diversas das Orientações Normativas da AGU, além de uniformizações de entendimentos de seus órgãos consultivos, como esta CNLCA, têm adotado interpretação lógico-sistemática para extrair a norma jurídica apta ao atendimento de dilemas vivenciados pelos gestores públicos.

 

Compreender o Direito para além da mera análise literal da regra, auxiliando o aperfeiçoamento de nossa ordem jurídica, é talvez a vocação mais nobre da atividade consultiva da Advocacia de Estado.

 

Foi nessa missão que a Câmara Nacional de Licitações e Contratos, ao se debruçar sobre o tema, na sua na 17ª Sessão Administrativa, depois de elevado debate entre seus membros, definiu-se pela aprovação do seguinte Enunciado:

 

Ao definir o percentual a ser aplicado para a cota exclusiva para ME/EPP, prevista no inciso III do artigo 48 da LC 123/2006, O limite sistemático impõe que o gestor, respeitando a lógica do sistema de favorecimento a essas pessoas jurídicas, tenha como limite para a definição discricionária do percentual, o patamar definido no inciso I do mesmo artigo 48 (R$ 80.000,00).

 

 Conforme descrito na exposição de motivos, aprovada pelos membros da Câmara, a construção interpretativa foi baseada na constatação de que a Cota exclusiva gera, na verdade, um item exclusivo, o qual deve respeitar o limite de valor definido pelo legislador para legitimar a restrição à competitividade gerada em um certame "disputado unicamente pelas microempresas e empresas de pequeno porte, sem que se configure desrespeito à isonomia, que deve haver entre os demais potenciais licitantes e foi consagrada pelo constituinte pátrio no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal".

 

 

CONCLUSÃO

 

Pelos motivos acima expostos, a Câmara Nacional de Licitações e Contratos sugere a uniformização do entendimento de que a cota exclusiva possui natureza jurídica idêntica ao item exclusivo, pois ambas são permissões legais de restrição à competitividade, admitindo que a licitação seja exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte.

 

Nessa condição, embora inexista subordinação entre os incisos I e III do artigo 48 da LC 123/2006, necessário defender a coerência entre esses dispositivos, através de uma interpretação lógico-sistemática, prestigiando o sistema de contratação pública, que, por definição constitucional deve respeito à igualdade e por diretriz legal deve ser interpretado de maneira a fomentar a competitividade.

 

Tal defesa conduz à confirmação do limite sistemático, impondo que o percentual de até 25% para a cota exclusiva, prescrito pelo inciso III do artigo 48, respeite o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).

 

Outrossim, sugere-se que o enunciado aprovado pela CNCLA seja confirmado pelo DECOR e, se for conveniente para a Consultoria Geral da União, seja sugerido para fins de ulterior aprovação de Orientação Normativa, pelo Advogado-Geral da União.

 

Ao definir o percentual a ser aplicado para a cota exclusiva para ME/EPP, prevista no inciso III do artigo 48 da LC 123/2006, o limite sistemático impõe que o gestor, respeitando a lógica do sistema de favorecimento a essas pessoas jurídicas, tenha como limite para a definição discricionária do percentual, o patamar definido no inciso I do mesmo artigo 48 (R$ 80.000,00).

 

 

À consideração superior.

 

João Pessoa, 23 de fevereiro de 2021.

 

(assinado eletronicamente)

RONNY CHARLES LOPES DE TORRES

ADVOGADO DA UNIÃO

RELATOR

 

(assinado eletronicamente)                                                          (assinado eletronicamente)

JAMILLE COUTINHO COSTA                                          FERNANDO FERREIRA BALTAR NETO

   ADVOGADA DA UNIÃO                                                               ADVOGADO DA UNIÃO     

                          COORDENADORA DA CNLCA                     

         

        (assinado eletronicamente)                                                     (assinado eletronicamente)                       

                   MARCELA ALI TARIF ROQUE                                        FABRÍCIO LOPES DE OLIVEIRA                            

   PROCURADORA FEDERAL                                               PROCURADOR FEDERAL                                                 

 

                                      (assinado eletronicamente)                                                         

DIEGO DA FONSECA HERMES ORNELLAS DE GUSMÃO                      TAÍS TEODORO RODRIGUES     

   PROCURADOR FEDERAL                                                                       ADVOGADA DA UNIÃO

 

         

 

REFERÊNCIAS

 

AMARAL, Diego Freitas. Curso de direito Administrativo. Lisboa: Almedina, 2015. p.110

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, decisão, dominação. 5ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 290/293)

FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

LEMOS JÚNIOR, Evandro Pires. O regime favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas - uma leitura sistemática das normas previstas na LC 123/06 que preveem a realização de licitações. Acesso em 20/02/2021. Disponível em:  https://migalhas.uol.com.br/depeso/295968/o-regime-favorecido-para-as-microempresas-e-empresas-de-pequeno-porte-nas-contratacoes-publicas---uma-leitura-sistematica-das-normas-previstas-na-lc-123-06-que-preveem-a-realizacao-de-licitacoes-com

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 104/105

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à justiça e as procuraturas constitucionais. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 45, p. 41-57, 1992

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação com cota reservada para microempresas e empresas de pequeno porte. Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 264, p. 142-152, fev. 2016

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 279

 

 


Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 25000193248201873 e da chave de acesso a34197ba

 

 

 




Documento assinado eletronicamente por MARCELA ALI TARIF ROQUE, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 575300074 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): MARCELA ALI TARIF ROQUE. Data e Hora: 25-02-2021 16:15. Número de Série: 4493271341332574466. Emissor: AC CAIXA PF v2.




Documento assinado eletronicamente por FERNANDO FERREIRA BALTAR NETO, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 575300074 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): FERNANDO FERREIRA BALTAR NETO. Data e Hora: 01-03-2021 10:51. Número de Série: 10284293006138090983224528961. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.




Documento assinado eletronicamente por FABRICIO LOPES OLIVEIRA, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 575300074 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): FABRICIO LOPES OLIVEIRA. Data e Hora: 25-02-2021 14:23. Número de Série: 17399469. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.




Documento assinado eletronicamente por JAMILLE COUTINHO COSTA, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 575300074 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): JAMILLE COUTINHO COSTA. Data e Hora: 25-02-2021 14:24. Número de Série: 26768818708213377467682774993. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.




Documento assinado eletronicamente por RONNY CHARLES LOPES DE TORRES, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 575300074 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): RONNY CHARLES LOPES DE TORRES. Data e Hora: 25-02-2021 13:56. Número de Série: 58639075122848610471040938922. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.




Documento assinado eletronicamente por DIEGO DA FONSECA HERMES ORNELLAS DE GUSMAO, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 575300074 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): DIEGO DA FONSECA HERMES ORNELLAS DE GUSMAO. Data e Hora: 25-02-2021 11:54. Número de Série: 17142155. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.