ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CÂMARA NACIONAL DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS - CNLCA/DECOR/CGU
PARECER n. 00003/2021/CNLCA/CGU/AGU
NUP: 08015.000312/2020-18
INTERESSADA: CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA
ASSUNTOS: PENALIDADES. LEI Nº 8.666, DE 1993.
EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES. CONTRATOS. SANÇÕES ADMINISTRATIVAS. SUSPENSÃO DE LICITAR E IMPEDIMENTO CONTRATAR. AMPLITUDE DOS EFEITOS LIMITADA AO ÓRGÃO QUE APLICOU A SANÇÃO. EXTENSÃO PARA ÓRGÃOS MILITARES PERTENCENTES A FORÇAS DIVERSAS. IMPOSSIBILIDADE. RESPEITO AOS LIMITES DEFINIDOS PELO LEGISLADOR E À INTERPRETAÇÃO SEDIMENTADA PELO TCU E PELA AGU.
I - A suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar, prevista no inciso III do artigo 87, da Lei nº 8.666/93, possui efeito com amplitude subjetiva restrita, afetando apenas o direito de licitar ou contratar em relação ao órgão sancionador.
II - O princípio da unidade administrativa não deve ser compreendido como a mera vinculação política à autoridade ministerial, devendo ser interpretado de maneira mais consentânea à realidade institucional, em respeito à organicidade em uma mesma estrutura de competências públicas.
III - A sanção suspensão aplicada por órgão do Exército Brasileiro gera restrições em relação às licitações e contratações das demais unidades do Exército Brasileiro, mas não deve gerar restrições aos órgãos das demais Forças (Marinha e Aeronáutica), da mesma forma ocorrendo quando esta sanção for aplicada por um órgão da Marinha ou da Aeronáutica.
Trata-se de solicitação, encaminhada através do Despacho nº 00030/2021/DECOR/CGU/AGU (fl. 74), para que esta Consultoria-Geral da União, tendo em vista a 20ª Sessão (Administrativa) da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Advocacia-Geral da União, de 25 de janeiro de 2021, manifeste-se a respeito de controvérsia jurídica acerca “dos efeitos da sanção de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar prevista no inciso III do art. 87 da Lei nº 8.666/93”.
A CONJUR-MJSP/CGU/AGU, no âmbito do PARECER nº 00950/2020, fls. 05-08 (aprovado pelo Despacho nº 01928/2020/CONJUR-MJSP/CGU/AGU, fl. 09), em resposta à NOTA TÉCNICA nº 6/2020/ASSESSORIA-GAB/SENAJUS/MJ (fls. 02-03), adotou posicionamento jurídico, fundamentando-se no Parecer nº 87/2011-DECOR/CGU/AGU, segundo o qual “a aplicação da sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei 8.666/1993 produz efeitos perante toda a Administração Pública, ou seja, afasta o sancionado das licitações e contratações promovidas por toda a Administração Pública brasileira”.
Posteriormente, em análise feita por meio da NOTA nº 00162/2020/DECOR/CGU/AGU (fls. 17-19), o Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos corretamente rememorou que o Parecer nº 87/2011-DECOR/CGU/AGU já havia sido superado, prevalecendo há anos, no âmbito da Consultoria Geral da União, o entendimento exarado pela extinta Comissão Permanente de Licitações no Parecer nº 02/2013/GT/Portaria nº 11, de 10 de agosto de 2012 (NUP: 00400.010939/2010-50), segundo o qual a sanção suspensão de licitar, prevista no inciso III, do artigo 87 da Lei nº 8.666/93, deve ter seus efeitos restritos ao órgão sancionador.
Por oportuno, a Coordenadora de Orientação Substituta, valendo-se do DESPACHO nº 00639/2020/DECOR/CGU/AGU (fl. 19), sobrestou a divulgação da NOTA nº 00162/2020/DECOR/CGU/AGU, para instruir melhor o feito, recomendando o envio dos autos para pronunciamento da Consultoria Jurídica junto à CGU, Consultorias Jurídicas da União no Estado do Ceará, Minas Gerais e Pernambuco, bem como a Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Cidadania, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Procuradoria Geral Federal.
Assim, após a recomendação exarada no DESPACHO nº 0639/2020 DECOR/CGU/AGU, foram emitidas as seguintes manifestações jurídicas acerca da questão:
NOTA nº 00135/2020/CJU-PE/CGU/AGU (fls. 25-30)
[...]
4. Quanto ao tema, esta Consultoria Jurídica da União no Estado de Pernambuco (CJU/PE) tem se manifestado no sentido de que a penalidade prevista no art. 87, inciso III, da Lei n° 8.666/93 proíbe a participação de empresas apenas em licitações e contratações do órgão responsável pela aplicação da sanção.
[...]
7. Assim, em resposta ao quanto solicitado pelo DESPACHO n. 00639/2020/DECOR/CGU/AGU, do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídico, participamos que esta Consultoria Jurídica da União no Estado de Pernambuco – CJU/PE adota a orientação predominante no âmbito do TCU, segundo a qual os efeitos da penalidade prevista no art. 87, inciso III, da Lei n° 8.666/93, restringem-se à participação em licitações junto ao ente sancionador.
DESPACHO nº 01885/2020/CJU-MG/CGU/AGU (fls. 31-32)
[...] o entendimento no âmbito desta Consultoria Jurídica da União é o que vem sendo adotado desde então pela Advocacia-Geral da União, que por meio do PARECER Nº 02/2013/GT/Portaria n° 11, de 10 de agosto de 2012, assim entendeu, de acordo com sua ementa:
EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES. CONTRATOS. SANÇÕES ADMINISTRATIVAS. SUSPENSÃO DE LICITAR E CONTRATAR. DIVERGÊNCIA EXISTENTE. EFEITOS RESTRITOS.
A suspensão temporária de licitar e contratar, prevista no inciso III do artigo 87, d a Lei n° 8.666/93, possui efeito com amplitude subjetiva restrita, afetando apenas o direito de licitar ou contratar em relação ao órgão sancionador.
PARECER nº 00283/2020/CONJUR-CGU/CGU/AGU (fls. 36-38)
[...]
22. Diante do exposto, conclui-se que:
1. a suspensão temporária de participação em licitação e o impedimento de contratar com um órgão da Administração (art. 87, inciso III, da Lei 8.666/93) abrange apenas o órgão ou entidade contratante que aplicou a citada penalidade;
2. o impedimento de contratar e licitar previsto no art. 7º da Lei 10.520/02 abrange toda a Administração Pública pertencente ao ente federativo que a aplicar; 3. e a declaração de inidoneidade, prevista no art. 87, IV, da Lei nº 8.666/1993, tem abrangência sobre toda a Administração Pública, na forma do art. 6º, XI, da Lei nº 8666/93, compreendida como a “a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas”.
PARECER nº 00007/2020/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU (fls. 41-49)
[...]
CONCLUSÃO:
53. Face ao exposto, opina-se no sentido de que: a) A pena de suspensão de contratar com a Administração prevista no inciso III do art. 87, da Lei 8666, de 1993, deve ser aplicada estritamente, limitando os seus efeitos ao órgão, entidade ou unidade administrativa que aplicou a sanção.
DESPACHO nº 00146/2020/CJU-CE/CGU/AGU (fl. 55)
[...]
5. Assim, sem maiores delongas, já que a matéria já foi alvo de amplos debates e de várias manifestações jurídicas produzidas nos autos, todas bem fundamentadas, reiteramos o entendimento que se firmou no âmbito do PARECER Nº 02/2013/GT/Portaria n° 11, de10 de agosto de 2012, o qual inclusive encontra-se em harmonia com a jurisprudência atual do TCU.
PARECER nº 00967/2020/CONJUR-MC/CGU/AGU (fls. 56-60)
[...]
18. Em face do exposto, pode-se concluir, interpretando-se de forma sistemática o ordenamento jurídico e em face do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, que a amplitude da aplicação da penalidade de suspensão prevista no art. 87, inciso III, da Lei nº 8.666, de 1993, refere se ao ente sancionador, ou seja, União, ou Estado, ou Distrito Federal ou Município.
19. Em conclusão: a) este órgão segue o entendimento vigente fixado no PARECER Nº 02/2013/GT/Portaria n° 11, de 10 de agosto de 2012; b) este parecerista entende que a aplicação da deve abranger o ente federativo.
PARECER SEI Nº 19177/2020/ME (fls. 65-71)
[...]
11. Ante o exposto, respondendo à consulta formulada pelo DECOR/CGU/AGU, entende-se que os efeitos da pena de suspensão de contratar com a Administração prevista no inciso III do art. 87, da Lei 8666, de 1993, restringem-se ao órgão, entidade ou unidade administrativa que aplicou a sanção.
A COTA nº 00141/2020/DECOR/CGU/AGU (fl. 73) indicou, tendo em vista os subsídios solicitados e acostados aos autos, que restaria a apreciação da NOTA nº 00162/2020/DECOR/CGU/AGU, exarada no sentido de que o tema já estava pacificado no âmbito da Consultoria-Geral da União. Assim sendo, o processo deveria prosseguir com a respectiva análise da manifestação pela Coordenação e Direção.
Em sequência, o DESPACHO nº 00030/2021/DECOR/CGU/AGU (fl. 74), submeteu os autos à Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Advocacia-Geral da União, para elaboração do parecer e posterior submissão ao Diretor do DECOR, para aprovação, tendo em vista a 20ª Sessão (Administrativa) da referida Câmara, de 25 de janeiro de 2021, que aprovou enunciado com a matéria objeto dos autos.
Conforme registra a Ata da 20ª Sessão da CNLCA, foi aprovado o seguinte Enunciado:
Enunciado 2: A pena de suspensão de contratar com a Administração prevista no inciso III do art. 87, da Lei 8666, de 1993, deve ser aplicada estritamente, limitando os seus efeitos ao órgão, entidade ou unidade administrativa que aplicou a sanção. (PARECER n. 00007/2020/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU-NUP08015.000312/2020-18, Parecer 02/2013/GT/Portaria n°11, de 10 de agosto de 2012, aprovado pelo Sr. Consultor-Geral da União por meio do Despacho do Consultor-Geral da União nº 0296/2013, de 22 de março de 2013e entendimento da extinta Comissão Permanente de Licitações NUP 00400.010939/2010-50 (ARQU/CGU) -Seq. 116).
Porém, convém registrar que, nos autos do NUP 67500.007065/2019-34, o tema também foi provocado para análise do DECOR, mas sob a perspectiva de extensão subjetiva da sanção suspensão de licitar e contratar, prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93, em relação a órgãos vinculados ao Ministério da Defesa.
No referido processo, em apertada síntese, discute-se a análise sobre a tese exarada pelo egrégio Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 1.956/2019 - TCU - 2ª Câmara, que defende a "extensão da eventual suspensão aplicada pelo Exército Brasileiro às licitações conduzidas pela Marinha do Brasil ou pela Aeronáutica Brasileira, além da subjacente reciprocidade nesse procedimento, em respeito ao princípio da unidade administrativa no âmbito do Ministério da Defesa", conforme provocação de análise feita pelo DESPACHO n. 00202/2019/COJAER/CGU/AGU.
Vale registrar, conforme descrito no DESPACHO n. 01943/2020/CONJUR-MD/CGU/AGU, a posição daquele órgão consultivo no sentido de que o princípio da unidade administrativa não deveria ser compreendido como a mera vinculação política à autoridade ministerial, devendo ser interpretado de maneira mais consentânea à realidade institucional, em respeito à autonomia administrativa dos órgãos compostos de uma mesma estrutura organizacional, o que impediria que o efeito restritivo da sanção suspensão aplicada por um órgão ultrapassasse a esfera subjetiva de cada Comando Militar (Exército, Força Aérea e Marinha).
Após a manifestação de diversos órgãos consultivos da Advocacia- Geral da União, o processo foi remetido ao DECOR pois, conforme bem exarado pelo Advogado da União, Dr. João Paulo Chaim, através da NOTA n. 00074/2021/DECOR/CGU/AGU, a Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa ponderou a necessidade de manifestação da Advocacia-Geral da União sobre o tema, para avaliar eventual convergência ou divergência em relação à interpretação adotada pela AGU.
Nessa linha, uma vez que a apreciação do assunto relativo à extensão subjetiva da sanção de suspensão temporária de licitar e contratar estava submetida à Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos (CNLCA), o ilustre parecerista sugeriu a remessa a este órgão consultivo.
Diante da vinculação entre os temas, a Ilustre Drª Jamille Coutinho Costa, Coordenadora de Orientação (substituta) e também Coordenadora da Câmara Nacional de Licitações e Contratos (CNLCA/DECOR/CGU), distribuiu o referido processo também ao presente signatário, para que fosse incluída "na manifestação jurídica do enunciado aprovado na Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos (NUP 08015.000312/2020-18) um tópico específico para tratar sobre o assunto do presente processo".
Nesta feita, aguardamos a aprovação da Ata de reuniões da CNLCA e sua juntada, já ocorrida, que registrou a discussão sobre a abrangência da penalidade suspensão no âmbito das Forças Armadas, no NUP 00688000717/2019-98 (Seq 42. Id 1141356170).
Conforme registra a Ata da 24ª Sessão (Administrativa) da CNLCA, os membros discutiram qual é o limite da sanção suspensão, analisando os argumentos suscitados e, ao final, concluíram que "a decisão do Tribunal de Contas da União ultrapassa os limites estabelecidos, entendendo que cada força tem sua independência" (Grifo nosso).
Conforme honrosa designação, esta linha de raciocínio será a defendida na presente manifestação.
É o relatório.
Tendo em vista que foram postas duas questões diferentes, para tratamento neste Parecer, faremos a divisão da análise jurídica nos tópicos a seguir.
O tema em questão envolve especificamente a discussão jurídica acerca dos efeitos da sanção “suspensão temporária de licitar e contratar” prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93. Vale a leitura do citado dispositivo:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior. (grifo nosso)
O sancionamento administrativo disposto pela Lei nº 8.666/93 se manteve assemelhado ao que fora disposto pelo Decreto-Lei nº 2.300/86, com as sanções de advertência, multa, suspensão temporária e declaração de inidoneidade aplicáveis às situações de inexecução total ou parcial do contrato ou na recusa à assinatura do instrumento contratual.
A “suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar”, nos moldes estabelecidos pelo legislador, é uma sanção que atinge o direito do particular em participar de licitação ou mesmo em firmar contratos administrativos. Este efeito é similar ao estabelecido pela Lei nº 8.666/93, para a sanção denominada “declaração de inidoneidade”, embora o legislador tenha diferenciado tais sanções em relação à competência para sua aplicação, prazo e amplitude de seus efeitos.
Em uma primeira análise, tanto a suspensão quanto a inidoneidade restringem o direito de participar de licitação ou de firmar novos contratos com o Poder Público, porém, em relação à sanção administrativa descrita no inciso III do artigo 87, denominada “suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar”, é conhecida a divergência acerca da amplitude de seus efeitos.
O STJ, em vários acórdãos, tem se posicionado pela incidência geral da penalidade "suspensão", o que impediria a participação da empresa suspensa em qualquer outro certame. Para aquele Tribunal, seria irrelevante a distinção entre os termos "Administração Pública" e "Administração", utilizados pela Lei nº 8.666/93, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretariam ao licitante a não participação em licitações e contratações futuras com "qualquer órgão da Administração Pública. Nessa linha, vale citar os Acórdãos RMS 9707 / PR – Relatora: Ministra LAURITA VAZ – SEGUNDA TURMA – DJ 20.05.2002; REsp 151567 / RJ – Relator: Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS – SEGUNDA TURMA – DJ 14.04.2003; RMS 32628/SP, Segunda Turma, DJe 14/09/2011.
Basicamente, os precedentes do STJ entendem como "irrelevante" a diferença expressamente definida pelo legislador, sem maior aprofundamento sobre as razões da referida irrelevância. Com a devida venia, embora aquele Egrégio Tribunal tenha protagonizado relevantes avanços de entendimentos jurisprudenciais sobre diversas questões envolvendo licitações e contratos, em nossa opinião, no que tange aos efeitos da sanção suspensão, prevista pelo inciso III o artigo 87 da Lei nº 8.666/93, sua Jurisprudência não parecer adotar melhor lastro teórico.
Longe da irrelevância genericamente suscitada, a diferenciação, aparentemente de fundamentos singelos, coaduna-se com a própria assimetria de conceitos estabelecida pelo artigo 6º da Lei nº 8.666/93, que define “Administração Pública” como a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas (Inc. XI); diferenciando-a do conceito de “Administração”, que seria entendida como órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente (Inc XII).
Essa diferenciação também está relacionada à nuance prevista pelo legislador, pela qual a declaração de inidoneidade deve ser aplicada pelo Ministro de Estado, Secretário Estadual ou Municipal, o que pode denotar a preocupação em transferir tal penalidade, de efeitos mais amplos, para autoridades de maior hierarquia. Ademais, a diferença de amplitude em tais sanções e o tratamento mais rigoroso dado pelo legislador, reputando a suspensão como uma sanção mais leve (em relação à declaração de inidoneidade), resta inconteste ao percebermos que o artigo 97 do Estatuto Geral de Licitações apenas considera como crime admitir profissional ou empresa declarada inidônea, mas não profissional ou empresa suspensa de participar da licitação.
Com a devida venia, nos Acórdãos que tratam sobre o tema, há pouca argumentação teórica para lastrear essa interpretação que despreza a expressa diferenciação estabelecida pelo legislador. Segundo essa linha, o STJ diverge do entendimento massivamente apresentado pela doutrina especializada. Vale citar algumas das obras que indicam posição diferente da defendida pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
BITTENCOURT, Sidney. Licitação passo a passo. 9ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de licitações e contratos administrativos. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. 1000 perguntas e respostas necessárias sobre licitações e contratos administrativos na ordem jurídica brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
PEDRA, Anderson. Sanções administrativas nas contratações públicas. in TORRES, Ronny Charles L. de (coord.). Licitações Públicas: homenagem ao jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes. Curitiba: Negócios Públicos, 2016.
GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e contratos administrativos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
Na verdade, em nossa pesquisa, não conseguimos identificar texto doutrinário defendendo a tese sustentada pelo STJ. Embora a obra do Professor Marçal Justen filho seja indicada como referência doutrinária no REsp 151567 / RJ, o referido autor não defendia esta posição e registrou isso, inclusive, em atualizações de sua obra (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de licitações e contratos administrativos. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 1156).
A doutrina acima citada pondera que, ao tratar da "suspensão", o legislador estabeleceu restrição ao direito de licitar e contratar em relação à "Administração"; noutro prumo, quando discorre sobre a "declaração de inidoneidade", impõe esse mesmo impedimento em relação à "Administração Pública". Vale observar que esses conceitos, usados coloquialmente como sinônimos, foram diferentemente definidos pela Lei nº 8.666/93:
Art. 6o Para os fins desta Lei, considera-se:
(...)
XI - Administração Pública - a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas;
XII - Administração - órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;
Assim, segundo a doutrina, o estatuto estaria estipulando que no caso da suspensão, a penalidade de impedimento deveria ter seus efeitos restritos ao órgão ou unidade Administrativa que a aplicou, o que permitiria que a empresa penalizada participasse, mesmo no prazo de dois anos, de certames realizados por outros órgãos ou entes da Administração Pública.
Tal compreensão é compartilhada pelo Tribunal de Contas da União. Nesse sentido, desde outrora, firmou a primeira Câmara da Corte de Contas, que "a suspensão temporária para participar em licitações ou contratar com a administração (inc. III) deverá ficar adstrita tão-somente ao órgão, entidade ou unidade administrativa que a aplicou, não podendo lhe ser aplicado o mesmo tratamento da declaração de inidoneidade (inc. IV), sanção que veda a participação em licitações e contratações com toda a Administração Pública". Neste sentido: Decisão nº 52/99-Plenário; Decisão nº 302/2001-Plenário; Acórdão nº 1.533/2006-Plenário; TCU – Acórdão nº 538/2009, 1ª Câmara; Acórdão nº 1.727/2006, da 1ª Câmara do TCU, e o Acórdão nº 842/2005 -Plenário.
Em um titubeio, convém registrar, a 1ª Câmara do TCU sugeriu a revisão de tal entendimento, para acompanhar o raciocínio defendido pelo STJ, no sentido de que a vedação à participação em licitações e à contratação de particular incurso na sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei 8.666/1993 deveria se estender a toda a Administração direta e indireta” (TCU, Acórdão n.º 2218/2011, 1ª Câmara).
Contudo, o TCU, reiteradamente, tem mantido o entendimento tradicional, corroborado pela ampla doutrina, pacificando a Jurisprudência do Tribunal no sentido de que o impedimento de participar de certame em razão de sanção do art. 87, III, da Lei nº 8.666/93 limita-se às empresas apenadas pela entidade que realiza o certame. Nessa linha: Acórdão nº 3439/2012-Plenário; Acórdão 2556/2013-Plenário; Acórdão 266/2019 Plenário e Acórdão 1757/2020 Plenário.
O Egrégio Tribunal de Contas da União, importa reiterar, pacificou o seu entendimento sobre o tema, firmando o raciocínio de que:
A sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993 (suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração) tem aplicação restrita ao órgão ou entidade que a cominou (Acórdão 1017/2013-Plenário, TC 046.782/2012-5, relator Ministro Aroldo Cedraz, 24.4.2013).
As sanções de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, previstas no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993, alcançam apenas o órgão ou a entidade que as aplicaram. (Comunicação de Cautelar, TC-046.782/2012-5, relator Ministro Aroldo Cedraz, 6.2.2013.)
Vale salientar, o TCU tem exigido que o edital deixe claro que a restrição decorrente da sanção suspensão atinge apenas o fornecedor sancionado pelo próprio órgão ou entidade licitante. Segundo o Tribunal, o edital da licitação, ao estabelecer vedações à participação no certame, deve ser suficientemente claro no sentido de que a penalidade de suspensão para licitar e contratar, prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/93, tem abrangência restrita ao órgão ou entidade que aplicou a sanção.
Essa correta posição do TCU posta-se na defesa da expressa diferenciação estabelecida pelo legislador, no apoio à concepção de que no Estado Democrático de Direito restrição a Direitos, por parte de Atos Administrativos, submetem-se ao princípio da legalidade estrita e não devem, a priori, ser interpretados de forma ampliativa, e também no apoio à competitividade, que pode ser prejudicada pela demasiada ampliação dos efeitos restritivos da sanção suspensão de licitar, ao arrepio do texto legal.
Como é cediço, a Advocacia-Geral da União (AGU) adota entendimento semelhante, compreendendo que a sanção suspensão de licitar, prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93, possui efeito com amplitude subjetiva restrita, afetando apenas o direito de licitar ou contratar em relação ao órgão sancionador.
Nesse sentido, vale registrar as seguintes manifestações:
Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES. CONTRATOS. SANÇÕES ADMINISTRATIVAS. SUSPENSÃO DE LICITAR E CONTRATAR. DIVERGÊNCIA EXISTENTE. EFEITOS RESTRITOS. A suspensão temporária de licitar e contratar, prevista no inciso III do artigo 87, da Lei nº 8.666/93, possui efeito com amplitude subjetiva restrita, afetando apenas o direito de licitar ou contratar em relação ao órgão sancionador (AGU. Parecer nº 02/2013/GT Portaria nº 11, de 10 de agosto de 2012, aprovado pelo Consultor-Geral da União).
EMENTA: CONTRATO ADMINISTRATIVO. PENA DE SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÃO E IMPEDIMENTO DE CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO. DISTINÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ENTENDIMENTO DO TCU. ART. 87, INCISO III, DA LEI 8.666/1993. EFEITOS.
I. À luz das definições constantes nos incisos XI e XII do art. 6º da Lei 8.666, de 1993, houve uma opção do legislador em distinguir os termos “Administração” e “Administração Pública” para fins de diferenciação entre os efeitos da pena de suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar do art. 87, III, da Lei 8.666, de 1993, da pena de declaração de inidoneidade do art. 87, IV, da Lei 8.666, de 1993, razão pela qual não cabe ao intérprete ignorar essa distinção constante do texto legal, agindo de modo a tornar as disposições da Lei n. 8.666, de 1993, sem força operativa.
II. É um princípio geral do direito, e regra fundamental de hermenêutica, que as leis que estabelecem pena, limitem o livre exercício dos direitos ou contenham exceção à lei devem ser interpretadas estritamente.
III. Não cabe ampliar os efeitos do art. 87, III, da Lei 8.666, de 1993, devendo ser aplicada a pena de suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar nos seus estritos termos, limitando os seus efeitos ao órgão, entidade ou unidade administrativa que aplicou a sanção (Parecer n. 00007/2020/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU).
(...) Ante o exposto, respondendo à consulta formulada pelo DECOR/CGU/AGU, entende-se que os efeitos da pena de suspensão de contratar com a Administração prevista no inciso III do art. 87, da Lei 8666, de 1993, restringem-se ao órgão, entidade ou unidade administrativa que aplicou a sanção (Parecer SEI nº 19177/2020/ME).
Esta mesma linha é adotada expressamente pela normatização federal há anos. A Instrução Normativa nº 03/2018, que regulamenta o SICAF, no §1º de seu artigo 34, adota o entendimento defendido pelo TCU e pela AGU, no sentido de que a restrição gerada pela sanção suspensão ocorre apenas “no âmbito do órgão ou entidade responsável pela aplicação da sanção”.
Art. 34. São sanções passíveis de registro no Sicaf, além de outras que a lei possa prever:
I - advertência por escrito, conforme o inciso I do art. 87 da Lei nº 8.666, de 1993, e o inciso I, do art. 83 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato, conforme o art. 86 e o inciso II do art. 87 da Lei nº 8.666, de 1993, e o inciso II do art. 83 da Lei nº 13.303, de 2016;
III - suspensão temporária, conforme o inciso III do art. 87 da Lei nº 8.666, de 1993, e o inciso III do art. 83 da Lei nº 13.303, de 2016;
IV - declaração de inidoneidade, conforme o inciso IV do artigo 87 da Lei nº 8.666, de 1993; e
V - impedimento de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, conforme o art. 7º da Lei nº 10.520, de 2002.
§ 1º A aplicação da sanção prevista no inciso III do caput impossibilitará o fornecedor ou interessado de participar de licitações e formalizar contratos, no âmbito do órgão ou entidade responsável pela aplicação da sanção.
Diante da necessidade de utilização de proporcionalidade na aplicação da penalidade e a pouca coerção, na prática, conseguida tão somente pela aplicação da advertência e multa contratual, a aplicação de efeitos mais restritos à sanção de suspensão é a interpretação mais correta, permitindo que a sanção restritiva seja aplicada em inexecuções parciais que, embora não tão absurdas, mereçam repúdio proporcional pela Administração, que não seria alcançado pela multa ou advertência e, provavelmente, seria extrapolado com a restrição por mais de dois anos e com todos os órgãos e entidades da Administração Pública.
Por outro lado, isso não impede que atitudes acintosas de inexecução restem impunes, pois, para elas, seria possível a aplicação da "declaração de inidoneidade", de efeitos restritivos mais amplos, impedindo a participação de licitações ou contratação com toda a Administração Pública.
Essa amplitude mais restrita aos efeitos da sanção suspensão de licitar foram, inclusive, expressamente definidos pela Lei nº 13.303/2016 (Lei das estatais), que adotou expressamente a posição defendida pela doutrina, TCU e AGU.
É fundamental ressaltar que estamos tratando aqui de sanções administrativas, restritivas de direitos. Aumentar a amplitude dos efeitos da sanção, mesmo que baseados em valores legítimos (como a moralidade), atenta flagrantemente contra fundamentos do Estado de Direito que impuseram ao aparelho estatal a legalidade estrita. Mesmo diante da evolução que o conceito de legalidade tem demonstrado, perfazendo-se em juridicidade, importante que a legitimação da atividade administrativa restritiva de direitos seja fulcrada na Lei.
Assim, com a devida venia, as restrições a direitos por ato estatal deve ser vista como excepcional e dependente de amparo legal. Nessa linha, Diogo de Freitas Amaral, ao avaliar a natureza e âmbito do princípio da legalidade, lembra a distinção feita pela doutrina alemã, entre administração agressiva e administração constitutiva. Segundo o autor, a “Administração constitutiva” se verificaria quando a administração constitui direitos, vantagens, presta serviços, atua em prestações positivas; noutro prumo, a “administração agressiva” seria identificada nas ações administrativas que agredissem direitos e interesses dos particulares, sua esfera jurídica. Assim, tem-se defendido que a formulação moderna do princípio da legalidade (juridicidade) impõe a legalidade estrita, quando a administração agride a esfera de direitos dos particulares; ou seja, em relação às atividades administrativas que agrediam a esfera jurídica dos particulares, como se dá na aplicação de sanções restritivas, haveria necessária dupla vinculação à legalidade (AMARAL, Diogo de Freitas. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. 3ª edição. Lisboa: Almedina, 2016. p. 51).
Em linha semelhante, Hartmut Maurer prescreve que as intervenções na liberdade e na propriedade devem apoiar-se, em todo o caso, sobre fundamento legal. Segundo o autor, os poderes de intervenção da Administração, no que se refere a conteúdo, objeto, finalidade e alcance devem estar suficientemente definidas e delimitada pela lei, de modo que as correspondentes limitações sejam previsíveis e calculáveis (MAURER, Hartmut. Derecho Administrativo: parte general. Madrid: Marcial Pons, 2011. p. 155/156).
A amplitude dos efeitos restritivos da sanção administrativa deve ser definida pelo legislador, não sendo adequada a adoção de valores abstratos como a moralidade para a expansão desses efeitos restritivos, em contrariedade à própria Lei. Assim, por exemplo, embora pareça "imoral" que uma empresa com 80 advertências aplicadas e 50 multas aplicadas e não pagas continue participando de licitações, não existirá fundamento legal para que a Administração restrinja automaticamente o direito desta empresa de participar de licitações. Da mesma forma, a moralidade não pode servir ao desprezo da amplitude restrita definida pelo legislador.
Nessa linha, o entendimento definido desde outrora pela Consultoria-Geral da União deve ser mantido, de maneira que a amplitude dos efeitos restritivos da sanção suspensão temporária, prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993, deve alcançar apenas o direito do fornecedor de participar das licitações ou contratações do órgão ou da entidade que a aplicou (abrangência subjetiva).
Questão mais desafiadora envolve o debate atinente à abrangência da penalidade suspensão de contratar no âmbito das Forças Armadas, tema enfrentado pela Câmara Nacional de Licitações e Contratos (CNLCA/DECOR/CGU).
É porque, embora o respeito ao texto legal fundamente a compreensão de que a amplitude dos efeitos restritivos gerados pela sanção suspensão de licitar e contratar devem restar adstritos às licitações e contratações do órgão ou entidade que aplicou a sanção ("Administração"), a realidade administrativa é dinâmica e multifacetada, com grandes diferenças entre os órgãos e instituições, sendo certo que diversos órgãos possuem atuação diversificada ou distribuída em diversos locais, com várias divisões, de acordo com suas competências e especificidades de sua atuação.
Nesta feita, há entidades públicas, como autarquias, que possuem múltiplas unidades espalhadas pelo país. Da mesma forma, há órgãos que possuem unidades também espalhadas pelo país e também órgãos compostos, com divisão internas de suas competências para melhor execução delas. Baltar Neto explica que órgãos compostos “são órgãos onde ocorre a desconcentração de suas atividades para outros órgãos subordinados hierarquicamente” (BALTAR NETO, Fernando Ferreira; e TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo. 10ª edição. Salvador: Juspodivm, 2021). Explica o autor que assim ocorre, por exemplo, em relação à Procuradoria-Geral da União, órgão composto que envolve diversos órgãos regionais e locais (Procuradorias Regionais da União e Procuradorias da União nos estados). Na mesma linha, Juliano Heinen explica que órgãos compostos são órgãos com subdivisões internas, constituídos, portanto, por vários outros. (HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Jus Podivm, 2020. p. 310).
Nessa hipótese, de órgãos compostos, parece-nos possível uma interpretação que, respeitando a amplitude restrita definida pelo legislador para a sanção suspensão de licitar e contratar, prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93, permita maior efetividade à aplicação da referida sanção administrativa. Isso porque, quando uma unidade de um órgão composto, aplica uma sanção suspensão de licitar e contratar, é plenamente defensável que a restrição seja aplicável a todas as demais unidades daquele mesmo órgão.
Assim, quando uma unidade local da Polícia Federal, sediada em Pernambuco, aplica a sanção suspensão, a restrição pertinente aos efeitos materiais desta sanção deve valer para todos os órgãos que fazem parte do órgão composto (Departamento da Polícia Federal). Da mesma forma, quando a aplicação da sanção suspensão temporária é realizada por órgão da gerência local do INSS, sediada no Estado de São Paulo, a restrição para participar de licitação ou para ser contratado terá abrangência para todas as unidades daquela autarquia previdenciária. Perceba-se que, nas hipóteses, a abrangência subjetiva manteve-se restrita ao órgão ou ente de aplicação da sanção (TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 11ª edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2020. p. 955).
Não há, nessa hipótese interpretativa, uma ampliação dos efeitos restritivos baseada na moralidade, mas uma definição desta amplitude pela compreensão sistemática de que a abrangência subjetiva manteve-se restrita ao órgão ou ente de aplicação da sanção, como determinou o legislador, mesmo possuindo este ente ou órgão diversas unidades, para o escorreito exercício de suas competências.
Com essa compreensão, mantém-se a correta interpretação consolidada pelo Egrégio Tribunal de Contas da União, pela Advocacia-Geral da União, pela doutrina e pela normatização federal, segundo o qual os efeitos da sanção suspensão temporária alcança apenas o órgão ou a entidade que a aplicou, mas permite a ela a maior amplitude possível, nos limites estabelecidos pela Lei.
Contudo, na questão abordada pelo NUP 67500.007065/2019-34, pondera-se sobre a interpretação adotada pelo Tribunal de Contas da União na análise de dois casos concretos (Acórdão nº 1.956/19 - Segunda-Câmara e Acórdão nº 2.788/19 - Plenário), nos quais aquela ilustre Corte defende a extensão da eventual suspensão aplicada pelo Exército Brasileiro às licitações conduzidas pela Marinha do Brasil ou pela Aeronáutica Brasileira, com base no alegado princípio da unidade administrativa e da vinculação desses órgãos ao Ministério da Defesa.
Respeitosamente, embora compreendamos a interpretação construída pelo TCU e admitamos que ela possui a mesma intenção de, respeitando o limite definido pelo legislador, permitir a maior amplitude possível aos efeitos restritivos da sanção suspensão de licitar e contratar, parece-nos que a premissa adotada, com fundamento no princípio da unidade administrativa, é equivocada.
Se esta premissa certamente pode ser adotada em relação à transmissão dos efeitos restritivos da sanção suspensão de licitar e contratar aplicada por uma unidade do Exército Brasileiro, em relação das licitações e contratações de todas as demais unidades do Exército Brasileiro, por outro lado, ela não parece apta a legitimar uma transmissão para unidades de outros Comandos das Forças Armadas. Isso porque são órgãos totalmente distintos, sem relação hierárquica entre eles.
No bojo do Processo NUP 67500.007065/2019-34 tivemos diversas manifestações abordando a novidade relacionada aos recentes julgados do Tribunal de Contas da União, estendendo as restrições decorrentes da sanção suspensão de licitar e contratada, aplicada por uma unidade de um órgão militar, para todas as unidades de todos os órgãos de todas as forças de defesa (Exército, Marinha e Aeronáutica); porém, gostaríamos de destacar as ponderações feitas pelo Advogado da União Marcus Monteiro Augusto, Coordenador-Geral Jurídico de Licitação, Contratos, Convênios e Parcerias da Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa, através do DESPACHO n. 01943/2020/CONJUR-MD/CGU/AGU, aprovado pelo Ilustre Consultor Jurídico do Ministério da Defesa, Dr. Idervânio da Silva Costa.
A referida manifestação, embora respeitando a tese sufragada pelo Egrégio Tribunal de Contas da União, não se omitiu em ponderar que "a novel interpretação do que seja órgão sancionador, à luz do princípio da unidade administrativa, tem, na realidade, traduzido uma interferência indevida nas esfera autônoma de cada Comando Militar, gerando transtornos à gestão dos contratos".
Realmente, estender os efeitos restritivos da sanção suspensão de licitar aplicada por uma unidade de uma das Forças Militares a todos os órgãos das demais Forças, com supedâneo no princípio da unidade administrativa, despreza o fato de que os três Comandos (Exército, Marinha e Aeronáutica) possuem organicidade própria, nada obstante a vinculação com o Ministério da Defesa, definida pela Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999.
As Forças Armadas, por expressa disposição do artigo 142 da Constituição Federal, são "constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica". Elas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
A nomeação dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica é competência privativa do Presidente da República. Com a aprovação da Lei Complementar nº 97/99, e a constituição do Ministério da Defesa como órgão de assessoramento ao Presidente da República, foi estabelecida uma relação orgânico institucional entre o referido Ministério e as Forças Militares, de maneira que, por exemplo, embora a nomeação dos respectivos Comandantes persista como competência privativa do Presidente da República, há indicação do nome pelo Ministro da Defesa.
Outrossim, a proposta orçamentária das Forças é elaborada em conjunto com o Ministério da Defesa, que a consolidará, obedecendo às prioridades estabelecidas na Estratégia Nacional de Defesa, explicitadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, mas respeitando as dotações próprias da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (Art. 12 da LC 97/99).
Vê-se que há certa autonomia às instituições das Forças Armadas, de maneira que não parece admissível adotar o "princípio da unidade" como argumento abstrato para esgarçar a amplitude dos efeitos sancionatórios definidos pelo legislador, infringindo esta autonomia garantida pelo Constituinte. A criação do Ministério da Defesa não teve o condão de converter o Exército, a Marinha e a Aeronáutica em um único órgão ou instituição, motivo pelo qual é equivocada a premissa de adoção do princípio da unidade para que as sanções aplicadas pela unidade de uma das Forças se estenda às outras. Esta adoção encontra óbice no preceito constitucional que as define como instituições nacionais e permanentes, outorgando-lhe certa autonomia.
Conforme bem indicado pelo Parecer nº 00056/2020/CONJUR-MD/CGU/AGU, os Decretos federais que aprovaram as estruturas regimentais dos Comandos Militares, tem respeitado essa autonomia dos Comandos, inclusive em relação às questões financeiras e às licitações e contratações:
Decreto nº 5.417, de 13 de abril de 2005
Art. 22. Ao Conselho Financeiro e Administrativo da Marinha compete assessorar o Comandante da Marinha nos assuntos administrativo-financeiros, exercendo o mais elevado nível de controle da execução orçamentária e físico-financeira da Marinha.
(...)
Art. 26. Ao Comandante da Marinha, além das atribuições previstas na legislação em vigor e consoante as diretrizes do Ministro de Estado da Defesa, incumbe:
XVI - estabelecer normas relativas aos procedimentos operacionais referentes à execução de certames licitatórios e à celebração de acordos e atos administrativos, bem como autorizar sua realização, no âmbito do Comando da Marinha, observada a legislação vigente;
Decreto nº 5.751, de 12 de abril de 2006
Art.16. À Secretaria de Economia e Finanças compete:
I - superintender e realizar as atividades de planejamento, acompanhamento e execução orçamentária, administração financeira e contabilidade, relativas aos recursos de qualquer natureza alocados ao Comando do Exército;
II - efetuar o pagamento do pessoal do Comando do Exército;
III - integrar, como órgão complementar, o Sistema de Planejamento Administrativo do Exército;
IV - administrar o Fundo do Exército; e
V - orientar e coordenar as atividades de registro patrimonial do Comando do Exército.
(...)
Art. 20. Ao Comandante do Exército, além das atribuições previstas na legislação em vigor e consoante diretrizes do Ministro de Estado da Defesa, incumbe:
XVI - estabelecer normas relativas aos procedimentos operacionais referentes à execução de certames licitatórios e à celebração de acordos e atos administrativos, bem como autorizar sua realização, no âmbito do Comando do Exército, observada a legislação vigente;
Decreto nº 6.834, de 30 de abril de 2009
Art. 7o Ao Conselho Superior de Economia e Finanças da Aeronáutica compete assessorar o Comandante da Aeronáutica na formulação das diretrizes econômico-financeiras e nos assuntos relacionados com execução, orçamento, administração financeira, contabilidade e controle interno.
(...)
Art. 22. À Secretaria de Economia, Finanças e Administração da Aeronáutica compete superintender, no âmbito do Comando da Aeronáutica: I - as atividades relativas a: a) administração financeira, execução orçamentária, financeira, patrimonial e contábil de recursos de qualquer natureza; e b) contratos, convênios e instrumentos congêneres, operações de crédito, acordos de compensação e financiamentos internos e externos; e
(...)
Art. 23. Ao Comandante da Aeronáutica, além das atribuições previstas na legislação em vigor e consoante as diretrizes do Ministro de Estado da Defesa, incumbe:
XVI - estabelecer normas referentes à realização de certames licitatórios e à declaração de acordos e atos administrativos e não-administrativos, bem como autorizar sua realização no âmbito do Comando da Aeronáutica;
A relação administrativa entre o Ministério da Defesa e os Comandos das Forças Armadas não deve justificar a tese de aplicação do princípio da unidade, para extensão dos efeitos restritivos da sanção suspensão. Esta tese, em nosso ver, afasta-se da tese muito bem consagrada pelo próprio Tribunal de Contas da União, que prestigiou a vontade do legislador ao definir que a "sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993 (suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração) tem aplicação restrita ao órgão ou entidade que a cominou" (Acórdão 1017/2013-Plenário, TC 046.782/2012-5, relator Ministro Aroldo Cedraz, 24.4.2013).
Importa reiterar que, nada obstante a existência do Ministério da Defesa, o texto Constitucional consagrou evidente autonomia aos Comandos das Forças Armadas. O artigo 52 da CF, ao tratar sobre a competência privativa do Senado Federal para processamento e julgamento de crimes de responsabilidade, em seu inciso I, cita os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, destacados dos demais Ministros de Estado. Também assim, o artigo 102, na alínea c de seu inciso I, ao tratar sobre o Supremo Tribunal Federal, definiu sua competência originária para processar e julgar, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, não apenas os Ministros de Estado, como também os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Por sua vez, as alíneas b) e c) do artigo 105, ao tratar sobre a competência originária do STJ para julgar habeas corpus e habeas data, faz referência aos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica de maneira apartada aos Ministros de Estado, que possuem idêntica prerrogativa.
Na mesma linha, a leitura do artigo 84 reforça essa autonomia, ao consolidar, no inciso XIII, a competência privativa do Presidente da República para nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, assim como faz com os Ministros de Estado (inciso I).
Outrossim, o artigo 91, ao tratar sobre o Conselho de Defesa Nacional, órgão de consulta do Presidente da República, indica que dele participam, como membros natos, tanto o Ministro de Estado da Defesa (inc. V) como os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (inc. VIII).
Nesse diapasão, entendemos assistir razão ao Dr. Marcus Monteiro Augusto, conforme descrito no DESPACHO n. 01943/2020/CONJUR-MD/CGU/AGU, ao concluir que:
Portanto, o princípio da unidade administrativa não deve ser compreendido como a mera vinculação política à autoridade ministerial, devendo ser interpretado de maneira mais consentânea à realidade institucional, em respeito à autonomia administrativa dos órgãos compostos de uma mesma estrutura organizacional, sendo certo que a sanção prevista na Lei nº 8.666/93 (art. 87, III) deverá se restringir aos respectivos órgãos subordinados, como se sucede nos limites adstritos do Ministério da Defesa (Administração Central - ACMD, Hospital das Forças Armadas - FHA, Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia - CENSIPAM e Escola Superior de Gerra -ESG) ou na esfera subjetiva de cada Comando Militar (Exército, Força Aérea e Marinha),sem que, para tanto, a medida venha a reverberar de modo recíproco entre unidades autônomas.
Seguindo tais premissas, a sanção Suspensão de licitar e contratar aplicada por órgão do Exército Brasileiro, embora afete as licitações e as contratações das demais unidades do Exército brasileiro, não deve gerar restrições aos órgãos das demais Forças (Marinha e Aeronáutica).
Nada obstante seja compreensível a legítima preocupação do Tribunal de Contas da União com a participação de empresas sancionadas em licitações de órgãos das outras forças armadas, entendemos que a posição Jurisprudencial sedimentada pelo TCU, no sentido de que sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993 tem aplicação restrita ao órgão ou entidade que a cominou, prestigiou corretamente a vontade do legislador e os limites definidos pela legislação para a amplitude dos efeitos restritivos da referida sanção.
Esta foi a conclusão a que chegaram os membros da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos, que entendemos estar representada nessa manifestação.
Ante o exposto, tendo em vista as razões acima dispostas, propomos o presente parecer, com as respectivas conclusões:
A suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar, prevista no inciso III do artigo 87, da Lei nº 8.666/93, possui efeito com amplitude subjetiva restrita, afetando apenas o direito de licitar ou contratar em relação ao órgão sancionador.
O princípio da unidade administrativa não deve ser compreendido como a mera vinculação política à autoridade ministerial, devendo ser interpretado de maneira mais consentânea à realidade institucional, em respeito à organicidade em uma mesma estrutura de competências públicas.
A relação orgânico institucional não autoriza per si que a sanção suspensão aplicada por unidade de um órgão público seja estendida a outras entidades ou órgãos diferentes, motivo pelo qual, a aplicação da sanção suspensão de licitar e impedimento de contratar por órgão do Exército Brasileiro gera restrições em relação às licitações e contratações das demais unidades do Exército Brasileiro, mas não deve gerar restrições aos órgãos das demais Forças (Marinha e Aeronáutica).
Sugerimos sejam sedimentadas essas conclusões nos seguintes Enunciados da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos, após aprovação do Diretor do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos e do Consultor-Geral da União:
1) A suspensão temporária de licitar e contratar, prevista no inciso III do artigo 87, da Lei nº 8.666/93, possui efeito com amplitude subjetiva restrita, afetando apenas o direito de licitar ou contratar em relação ao órgão sancionador.
2) A sanção suspensão aplicada por órgão do Exército Brasileiro gera restrições em relação às licitações e contratações das demais unidades do Exército Brasileiro, mas não deve gerar restrições aos órgãos das demais Forças (Marinha e Aeronáutica), da mesma forma ocorrendo quando esta sanção for aplicada por um órgão da Marinha ou da Aeronáutica.
São as considerações firmadas nesta manifestação, postas à consideração superior.
João Pessoa, 29 de julho de 2021.
(assinado eletronicamente)
RONNY CHARLES LOPES DE TORRES
ADVOGADO DA UNIÃO
RELATOR
(assinado eletronicamente) (assinado eletronicamente)
JAMILLE COUTINHO COSTA FERNANDO FERREIRA BALTAR NETO
ADVOGADA DA UNIÃO ADVOGADO DA UNIÃO
COORDENADORA DA CNLCA
(assinado eletronicamente) (assinado eletronicamente)
MARCELA ALI TARIF ROQUE MICHELLE MARRY MARQUES DA SILVA
PROCURADORA FEDERAL ADVOGADA DA UNIÃO
(assinado eletronicamente) (assinado eletronicamente)
FABRÍCIO LOPES OLIVEIRA MANOEL PAZ E SILVA FILHO
PROCURADOR FEDERAL ADVOGADO DA UNIÃO
(assinado eletronicamente) (assinado eletronicamente)
DIEGO DA FONSECA HERMES ORNELLAS DE GUSMÃO TAÍS TEODORO RODRIGUES
PROCURADOR FEDERAL ADVOGADA DA UNIÃO
(assinado eletronicamente)
LESLEI LESTER DOS ANJOS MAGALHÃES
ADVOGADO DA UNIÃO