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CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA DA UNIÃO ESPECIALIZADA VIRTUAL DE SERVIÇOS SEM DEDICAÇÃO EXCLUSIVA DE MÃO-DE-OBRA
COORDENAÇÃO GERAL - SEM DEDICAÇÃO EXCLUSIVA MDO
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PARECER REFERENCIAL n. 00003/2021/COORD/E-CJU/SSEM/CGU/AGU

 

NUP: 00688.001068/2021-67

INTERESSADOS: CONSULTORIA JURÍDICA DA UNIÃO ESPECIALIZADA VIRTUAL DE SERVIÇOS SEM DEDICAÇÃO EXCLUSIVA DE MÃO-DE-OBRA

ASSUNTOS: DESPESA SEM COBERTURA CONTRATUAL​. RECONHECIMENTO DE DÍVIDA

 

 

MANIFESTAÇÃO JURÍDICA REFERENCIAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. REALIZAÇÃO DE DESPESA SEM COBERTURA CONTRATUAL​. RECONHECIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR (RECONHECIMENTO DE DÍVIDA). ARTIGO 59, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 8.666/1993; ARTIGO 884 DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 37 DA LEI Nº 4.320/1964; ART. 22 DO DECRETO Nº 93.872/1986ORIENTAÇÃO NORMATIVA AGU Nº 4, DE 1º DE ABRIL DE 2009.  
1. PRELIMINARMENTE.
1.1. Finalidade, abrangência e limites do Parecer.
1.2. Da manifestação jurídica referencial. Admissibilidade. Orientação Normativa AGU nº 55, de 23 de maio de 2014.
2. LIMITES DA CONTRATAÇÃO E INSTÂNCIAS DE GOVERNANÇA.
3. ANÁLISE 
3.1. Da natureza jurídica e da juridicidade dos procedimentos de reconhecimento de dívida decorrente de realização de despesa sem cobertura contratual.
3.2. Requisitos.
3.2.1. Justificativa: a) quanto à contratação do serviço sem a observância dos procedimentos formais instituídos por lei; b) quanto à escolha do fornecedor; c) quanto ao quantitativo.
3.2.2. Comprovação de que o fato que gerou a assunção da obrigação é excepcional e extraordinário, ou seja, que o órgão não faz uso da prática de forma reiterada e que o não fornecimento ou prestação do serviço em caráter de urgência causaria prejuízo para a boa gestão pública;
3.2.3. Comprovação da boa-fé do fornecedor/prestador do serviço e do gestor público;
3.2.4. Comprovação de que o serviço tenha sido efetivamente realizado;
3.2.5. Certificação de inexistência de pagamento pelo serviço executado ou pelo produto fornecido sem cobertura contratual.
3.2.6. Comprovação de que o preço praticado é o de mercado, mediante pesquisa de preços.
3.2.7. Dotação orçamentária específica do exercício corrente para o pagamento do débito.
3.2.8. Prescindibilidade de comprovação de regularidade fiscal e trabalhista do fornecedor/prestador do serviço.
3.2.9. Formalização do termo de reconhecimento da dívida, mediante minuta a ser subscrita pela autoridade competente para empenhar a despesa.
3.2.10. Formalização da liquidação da despesa, nos termos dos arts. 62 e seguintes da Lei n. 4.320, de 1964; e
3.2.11. Apuração, em procedimento específico, da responsabilidade de quem deu causa à realização da despesa sem a devida cobertura contratual.
4. CONCLUSÃO. Atestado de adequação do processo ao Parecer ReferencialDesde que o Órgão assessorado atenda as orientações exaradas no Parecer Referencial --- ou, se for o caso, justifique seu afastamento --- é juridicamente possível dar prosseguimento ao processo, reconhecendo-se e liquidando-se a despesa realizada sem cobertura contratual, sem submeter os autos à e-CJU/SSEM, consoante Orientação Normativa nº 55, do Advogado-Geral da União.

 

 

I. RELATÓRIO

 

I.1. Finalidade, abrangência e limites do Parecer.

 

Esta manifestação jurídica tem o escopo de assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem praticados. A função da Consultoria Jurídica é apontar possíveis riscos do ponto de vista jurídico e recomendar providências para salvaguardar a autoridade assessorada.

 

Importante salientar que o exame dos autos se restringe aos seus aspectos jurídicos, excluídos, portanto, aqueles de natureza técnica. Em relação a estes, parte-se da premissa de que a autoridade competente se municiou dos conhecimentos específicos imprescindíveis para a sua adequação às necessidades da Administração, observando os requisitos legalmente impostos.

 

Ademais, também escapa ao âmbito de atribuições desta unidade consultiva uma avaliação sobre a conveniência e oportunidade do quanto pretendido. A conclusão é extraída do Enunciado n°. 7 do Manual de Boas Práticas Consultivas da Advocacia-Geral da União, segundo a qual "o órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência e oportunidade".

 

De outro lado, cabe esclarecer que, via de regra, não é papel do órgão de assessoramento jurídico exercer a auditoria quanto à competência de cada agente público para a prática de atos administrativos. Incumbe, isto sim, a cada um destes observar se os seus atos estão dentro do seu espectro de competências.

 

Finalmente, impõe-se salientar que determinadas observações são feitas sem caráter vinculativo, mas em prol da segurança da própria autoridade assessorada a quem incumbe, dentro da margem de discricionariedade que lhe é conferida pela lei, avaliar e acatar, ou não, tais ponderações. Não obstante, as questões relacionadas à legalidade serão apontadas para fins de sua eventual correção. O prosseguimento do feito sem a observância destes apontamentos será de responsabilidade exclusiva da Administração.

 

I.2. Da manifestação jurídica referencial. A Orientação Normativa AGU nº 55, de 23 de maio de 2014.

 

A presente manifestação jurídica referencial tem por objetivo consolidar em um único arrazoado os entendimentos jurídicos homogêneos que esta unidade Consultiva emite em seus Pareceres sobre o tema do reconhecimento de dívida decorrente de despesa contraída sem cobertura contratual.

 

O intuito é tornar dispensável o envio de processos versando sobre a matéria objeto desta manifestação jurídica referencial, sem que isso implique em amesquinhamento da atuação consultiva ou fragilização da prestação do assessoramento jurídico imposto por lei (art. 11, VI, da Lei Complementar n. 73/1993; art. 38, VI e parágrafo único, da lei n. 8.666/1993). 

 

Com efeito, a Orientação Normativa nº 55, de 23 de maio de 2014, do Advogado-Geral da União, inaugurou a denominada manifestação jurídica referencial no âmbito da Advocacia-Geral da União, em resposta aos reclames por uma maior racionalização, celeridade, eficiência e economicidade da atuação dos seus órgãos consultivos.

 

Veja-se o que dispõe a ON n.º 55/2014:

 

ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 55, DE 23 DE MAIO DE 2014.
O ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I, X, XI e XIII, do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, considerando o que consta do Processo nº 56377.000011/2009-12, resolve expedir a presente orientação normativa a todos os órgãos jurídicos enumerados nos arts. 2º e 17 da Lei Complementar nº 73, de 1993:
I - Os processos que sejam objeto de manifestação jurídica referencial, isto é, aquela que analisa todas as questões jurídicas que envolvam matérias idênticas e recorrentes, estão dispensados de análise individualizada pelos órgãos consultivos, desde que a área técnica ateste, de forma expressa, que o caso concreto se amolda aos termos da citada manifestação.
II - Para a elaboração de manifestação jurídica referencial devem ser observados os seguintes requisitos: a) o volume de processos em matérias idênticas e recorrentes impactar, justificadamente, a atuação do órgão consultivo ou a celeridade dos serviços administrativos; e b) a atividade jurídica exercida se restringir à verificação do atendimento das exigências legais a partir da simples conferência de documentos.
Referência: Parecer nº 004/ASMG/CGU/AGU/2014.

 

Como se pode observar, a construção de uma manifestação jurídica referencial depende da comprovação de que o volume de processos possa impactar, justificadamente, a atuação do órgão consultivo ou a celeridade dos serviços administrativos. Além disso, deve-se comprovar que a atividade jurídica demandada se restringiria à mera conferência de documentos ou à enunciação-padrão de adequação jurídica da instrução ou conclusão firmada pela área técnica. 

 

Quanto ao primeiro requisito, tem-se que o volume de processos em matérias idênticas e recorrentes impacta a atuação deste órgão consultivo, bem como a celeridade dos serviços administrativos, em desprestígio ao princípio da razoável duração do processo, e, ocasionalmente, à segurança jurídica. Deveras, a multiplicidade desse tipo de demanda traz impactos negativos no tempo em que os advogados poderiam se dedicar ao estudo e aprofundamento de matérias verdadeiramente complexas e relevantes, nos mais variados temas, ao tempo em que, igualmente, prejudica a celeridade dos serviços administrativos.

 

Segundo levantamento feito pela Coordenação Administrativa desta e-CJU/SSEM, cerca de 110 (cento e dez) processos versando sobre o tema desta manifestação referencial foram distribuídos desde o início do funcionamento das Consultorias Jurídicas da União Especializadas Virtuais (1º de setembro de 2020) até a o dia 24 de agosto de 2021.

 

A presente proposta de padronização diminuirá a necessidade de análise individualizada dos processos administrativos de reconhecimento de dívida, prestigiando o princípio da eficiência e uniformizando a atuação do órgão jurídico neste tipo de matéria repetitiva, sem prejuízo da segurança jurídica necessária à prática do ato. Proporcionará ainda o redimensionamento da atuação consultiva para análise das demandas e consultas jurídicas mais complexas e relevantes.

 

Quanto ao segundo requisito, saliente-se que a dispensa de análise jurídica individualizada de processos que tenham por objeto o reconhecimento de dívida justifica-se em razão deste tipo de processo ser, em geral, de baixa complexidade, instruído com atos e documentos de cunho meramente administrativo e revestidos de certa singeleza, cuja conferência é de atribuição dos agentes responsáveis pela instrução do processo. De fato, em casos como tais, a atividade jurídica acaba por se restringir à verificação do atendimento das exigências legais a partir da simples conferência de documentos.

 

Ademais, a presente manifestação referencial pode ser considerada, sob certa perspectiva, uma continuidade da política de tratamento conferida por esta e-CJU/SSEM à temática da desburocratização e simplificação de procedimentos que, a par de apresentarem baixa complexidade, estão em um contexto de maior grau de maturação e consolidação em termos de entendimentos (vide Ofício nº 00001/2020/COORD/E-CJU/SSEM/CGU/AGU; seq. 1 do NUP 00688.001194/2020-31). 

 

Não se está a dizer que esses processos jamais deverão ser encaminhados ao órgão jurídico consultivo. Questões de natureza jurídica que eventualmente sobressaiam de um processo e que suscitem dúvidas específicas no gestor público quanto a forma de proceder podem e devem ser pontualmente submetidas à análise da unidade consultiva sempre que o órgão assessorado entender necessário. 

 

Pelo exposto, considerando que, a uma, todo o contorno jurídico que envolve os procedimentos administrativos de reconhecimento de dívida decorrente de despesa contraída sem cobertura contratual já está contido no presente Parecer Referencial; a duas, a pluralidade de processos com matéria jurídica idêntica a impactar a atuação do órgão consultivo; e, por fim, a análise dos mesmos demandar mera atividade burocrática de conferência documental, resta configurado que a situação objeto de análise se amolda às diretrizes traçadas na Orientação Normativa n° 55/2014dispensando-se a submissão individualizada e obrigatória de processos versando sobre esta matéria à análise desta unidade consultiva.

 

Por fim, registre-se que compete ao Órgão assessorado atestar que o assunto tratado no processo corresponde àquele presente na manifestação jurídica referencial, para o fim de não encaminhamento do mesmo. Decorre daí, que não se deve adotar como praxe o envio dos autos para a e-CJU deliberar se a análise individualizada se faz necessária ou não, pois o escopo da manifestação referencial é justamente eliminar esse trâmite.

 

II. ANÁLISE

 

II.1. Limites da contratação e instâncias de governança.

 

Considerando haver no âmbito do Poder Executivo Federal normas que costumam tratar dos limites e instâncias de governança aplicáveis aos órgãos, entidades e fundos do Poder Executivo Federal integrantes do Orçamentos Fiscal, o órgão assessorado deve verificar: (i) se o serviço a que se refere o reconhecimento de dívida é considerado atividade de custeio; (ii) e, em caso positivo, qual autoridade detém, no âmbito da sua estrutura organizacional, competência para autorizar o ato de reconhecimento de dívida, juntando aos autos a respectiva autorização expressa.

 

Ter-se-á como competente para autorizar e/ou firmar o termo de reconhecimento de dívida a autoridade a quem seria reconhecida a competência para celebrar o contrato administrativo correspondente.

 

Recomenda-se, igualmente, que a área competente do órgão assessorado verifique a eventual existência de outros atos normativos (Decretos, Portarias etc) no âmbito de sua estrutura organizacional que preveja “limites”, "contingenciamento orçamentário" ou a "restrição ao empenho de verbas”, com efeitos aplicáveis ao caso concreto.

 

II.2. Do procedimento administrativo de reconhecimento de dívida sem cobertura contratual e seu fundamento jurídico.

 

De início, registra-se que a contratação pública é um procedimento formal. Mesmo as hipóteses de contratação direta (dispensa ou inexigibilidade de licitação) exigem um procedimento prévio e determinado, destinado a assegurar a prevalência dos princípios jurídicos fundamentais, em que é imprescindível a observância de etapas e formalidades legais.

 

Por meio deste procedimento prévio, define-se um objeto a ser contratado, adota-se providências acerca da elaboração de projetos --- se for o caso ---, apura-se a compatibilidade entre a contratação e as previsões orçamentárias, os dados concretos acerca das condições de mercado, da capacitação do ente escolhido etc. Com essas cautelas, a Administração não foge do dever de buscar a melhor contratação possível para atender a necessidade pública.

 

Veja-se a doutrina do Professor Marçal Justen Filho: 

 

Os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação envolvem, na verdade, um procedimento especial e simplificado para seleção do contrato mais vantajoso para a Administração Pública. Há uma série ordenada de atos, colimando selecionar a melhor proposta e o contratante mais adequado. ‘Ausência de licitação’ não significa desnecessidade de observar formalidades prévias (tais como verificação da necessidade e conveniência da contratação, disponibilidade de recursos etc.). Devem ser observados os princípios fundamentais da atividade administrativa, buscando selecionar a melhor contratação possível, segundo os princípios da licitação. (...) a Administração deverá definir o objeto a ser contratado e as condições contratuais a serem observadas. A maior diferença residirá em que os atos internos conduzirão à contratação direta, em vez de propiciar prévia licitação. Na etapa externa, a Administração deverá formalizar a contratação. 
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2010, p. 387
 

Tem-se, pois, que a celebração de contrato administrativo que importe em despesa para a Administração pública deve ser precedida de licitação ou procedimento formal de dispensa ou inexigibilidade.

 

Nessa toada, cabe ainda esclarecer a respeito da necessidade de manifestação jurídica prévia à contratação. Por imperativo legal, o prévio exame e aprovação de minutas de editais, contratos, acordos, convênios e outros ajustes, realizado por parecer jurídico, consiste em espécie de controle prévio da juridicidade da atividade administrativa.

 

 A norma inscrita no parágrafo único do art. 38, da lei nº 8.666/93 dispõe:

 

Art. 38.  O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente:
(...).
Parágrafo único.  As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração." (G. N.).

 

A doutrina assim ensina sobre a obrigatoriedade da prévia análise jurídica:

 

"O parágrafo único determina a obrigatoriedade de prévia análise pela assessoria jurídica das minutas de editais e de contratos ou instrumentos similares." (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos - 10. ed - São Paulo - Dialética - 2008, p. 491). (G. N.).
 

Também dispõe a Lei Complementar nº 73/1993:

 

"Art. 11 - Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente: 
(...).;
VI - examinar, prévia e conclusivamente, no âmbito do Ministério, Secretaria e Estado-Maior das Forças Armadas:
a) os textos de edital de licitação, como os dos respectivos contratos ou instrumentos congêneres, a serem publicados e celebrados;
b) os atos pelos quais se vá reconhecer a inexigibilidade, ou decidir a dispensa, de licitação." (G. N.).
 

Cabe invocar do TCU o seguinte trecho:

 
“O parecer jurídico emitido por consultoria ou assessoria jurídica de órgão ou entidade, via de regra acatado pelo ordenador de despesas, constitui fundamentação jurídica e integra a motivação da decisão adotada.” (Acórdão nº 462/2003 – Plenário (G. N.).

 

Logo, o ordenamento jurídico determina a prévia análise jurídica das minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes da Administração Publica federal pela Advocacia-Geral da União, a quem compete o controle de legalidade preventivo.

 

No presente caso, objeto deste parecer referencial, observa-se que a despesa pública ocorreu sem o cumprimento dos ritos acima especificados e sem a devida cobertura contratual. Em verdade, embora, à luz da teoria geral dos contratos, possa ser arguido que exista, sim, um contrato de fato na hipótese --- consentimento entre agentes capazes, objeto lícito e determinável ---, o que obstaculiza o reconhecimento da validade do ajuste é a inobservância da forma prescrita em lei, seja pela ausência de contrato escrito (art. 60, parágrafo único da Lei nº 8.666/93), seja pela inexistência de procedimento licitatório, de dispensa ou inexigibilidade de licitação prévios.

 

Nessas situações, contudo, para que não haja o enriquecimento sem causa da Administração Pública, faz-se necessário o pagamento de indenização em favor daquele que efetivamente prestou o serviço. Esta é a finalidade do procedimento de reconhecimento de dívida:

 

"3. O reconhecimento de dívida é o procedimento administrativo por meio do qual a Administração Pública, excepcionalmente, ressarce despesas, ao particular, que ocorreram sem a devida cobertura contratual, ou sem o necessário empenho. Esse procedimento decorre do princípio geral do direito que veda o enriquecimento sem causa. Desse modo, ainda que não tenha observado às formalidades legais para contratação, se a Administração se beneficia de serviços executados, ou bens adquiridos, encontra-se obrigada a ressarci-los."
(Despacho nº 00235/2021/DECOR/CGU/AGU, NUP nº 72031.014801/2020-58)
 
"21. O reconhecimento de dívida, a seu turno, é procedimento administrativo unilateral destinado a avaliar a obrigação de pagar despesas de exercícios anteriores e dívidas de exercícios encerrados reconhecidas pela Administração (Lei nº4.320/64), bem como despesas sem cobertura contratual (Lei 8.666/1993, art. 59, p.u. e Orientação Normativa/AGU 4/2009), não se confundindo com a transação, procedimento bilateral que encerra concessões mútuas e não simples reconhecimento da obrigação de pagar despesa contraída pela Administração ou dívida por ela reconhecida."
(Parecer nº 00035/2018/GAB/PFUFLA/PGF/AGU)

 

O reconhecimento de dívida fundamenta-se no brocardo "nemo potest lucupletari, jactura aliena", ou seja a ninguém --- nem mesmo a própria Administração Pública --- é dado enriquecer-se a custa alheia sem que exista um suporte fático-jurídico que lhe seja subjacente, nem mesmo a própria Administração Pública. 

 

Em importante lição sobre o tema do enriquecimento sem causa no âmbito da Administração Pública, Celso Antônio Bandeira de Melo destaca: 

 

Assim, ressalvados os casos em que o administrado atuou dolosamente, com má-fé, de maneira a iludir a Administração induzindo-a à suposição de que estava a compor ato juridicamente liso e concorrendo dessarte para que se produzisse ato viciado ou, daqueles outros em que - ainda pior - se concertou com agentes administrativos para, em atuação conjunta, fraudarem o Direito, não se pode admitir que a invalidação acarrete um enriquecimento do Poder Público e um empobrecimento do administrado. 
4. Com efeito, precisamente para evitar situações nas quais um dado sujeito vem a obter um locupletamento à custa do patrimônio alheio, sem que exista um suporte jurídico prestante para respaldar tal efeito, é que, universalmente, se acolhe o princípio jurídico segundo o qual tem-se de proscrever o enriquecimento sem causa e, conseqüentemente, desabona-se interpretação que favoreça este resultado injusto, abominado pela consciência dos povos. 
Todavia, mesmo no caso de contrato nulo ou de inexistência de contrato, pode tornar-se devido o pagamento dos trabalhos realizados para a Administração ou dos fornecimentos a ela feitos, não com fundamento em obrigação contratual, ausente na espécie, mas sim no dever moral de indenizar o benefício auferido pelo estado, que não pode tirar proveito da atividade particular sem o correspondente pagamento.
(Direito Administrativo Brasileiro, pag. 192, Ed. Rev. dos Trib. 10ª ed, 1984). 
 

Ressalta-se que o direito constitucional brasileiro expressamente incorpora a moralidade administrativa como um dos princípios a que estão sujeitos a Administração Pública de quaisquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 37 da CRFB/88):

 

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...) (G. N.)

 

O princípio da moralidade impõe a obrigação de pagamento mesmo ausente a regularidade formal da relação jurídica, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: 

 

RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. ANULAÇÃO DO CONTRATO EM VIRTUDE DE FALSIDADE DOCUMENTAL. ARTS. 39 E 49 DO DECRETO-LEI N. 2.800/86. PRETENSÃO DA UNIÃO DE DEVOLUÇÃO DA QUANTIA PAGA PELA OBRA EXECUTADA. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES. 
Do exame dos artigos 39 e 49 do Decreto-lei n. 2.800/86, vigente à época, conclui-se que a anulação da licitação, com a consequente nulidade do contrato opera efeitos ex tunc. No entanto, a Administração deve indenizar a empresa contratada pela execução de etapas das obras ajustadas até a data da declaração de nulidade, ainda que a anulação do contrato tenha ocorrido por utilização de documento fraudado pela empresa, como na hipótese em exame. 
Com efeito, recebida a prestação executada pelo particular, não pode a Administração se locupletar indevidamente e, com fundamento na nulidade do contrato, requerer a devolução de valores pagos por obras já realizadas, o que configuraria violação ao próprio princípio da moralidade administrativa. Precedentes. 
(Recurso Especial nº 408.785/RN).  

 

Certo é que não se pode admitir que a Administração se locuplete à custa do patrimônio alheio, e, segundo nos parece, o enriquecimento sem causa --- que é um princípio geral do Direito --- confere legitimação, em casos tais, ao direito do particular indenizar-se pela atividade que proveitosamente dispensou em proveito da Administração. Tal direito subsiste ainda que a relação jurídica tenha se travado irregularmente ou mesmo desprezando qualquer formalidade, mas com o assentimento, tácito ou explícito, do Poder Público, inclusive a ser depreendido do mero fato de haver pacificamente incorporado os benefícios do serviço prestado em seu proveito.

 

Importante destacar que ficariam ressalvadas deste dever de pagamento por serviços executados sem amparo contratual, apenas aquelas relações decorrentes de atos em que o prestador atuou dolosamente, com inquestionável má-fé, ou, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Melo (op. cit.), "de maneira a iludir a Administração induzindo-a à suposição de que estava a compor ato juridicamente liso", ou ainda diante de circunstâncias em que se "concertou com agentes administrativos para, em atuação conjunta, fraudarem o Direito".  

 

Assim, se a Administração usufruiu de forma consentida de um bem ou serviço, ficará obrigada a indenizar o prestador. Paralelamente ao que impõem os princípios da boa-fé, da moralidade e da vedação ao enriquecimento sem causa da Administração, a lei nº 8.666/93 ainda tratou da questão em seu artigo 59, parágrafo único. Confira-se:

 

Lei nº 8.666/1993:
Art. 59.  A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único.  A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa". (Grifou-se.)

 

Sobre este dispositivo legal, ensina Marçal Justen Filho:

 

9) A solução legislativa brasileira específica
Esses são os princípios gerais que disciplinam o relacionamento entre a Administração e o particular. Mas existe solução específica no Direito brasileiro para o caso de contratações defeituosas. O legislador brasileiro efetivou opção clara pelas soluções compatíveis com um Estado Democrático de Direito. Além de todas as determinações atinentes à responsabilização civil do Estado, consagrou-se a disciplina específica do parágrafo único do art. 59 para a contratação administrativa inválida. Daí se segue que a invalidação, por nulidade absoluta, de qualquer ajuste de vontades entre Administração e particular gerará efeitos retroativos mas isso não significará o puro e simples desfazimento de atos. Será imperioso produzir a compensação patrimonial para o particular, sendo-lhe garantido o direito de haver tudo aquilo que pelo ajuste lhe fora assegurado e, ainda mais, a indenização por todos os prejuízos que houver sofrido. (grifamos)
(JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª ed. São Paulo: Dialética, 2012).

 

Registre-se a orientação normativa da Advocacia Geral da União que versa sobre o assunto:

 
ON AGU nº 04/2009
“A despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento da obrigação de indenizar nos termos do art. 59, parágrafo único da Lei nº 8666, de 1993, sem prejuízo da apuração da responsabilidade de quem lhe der causa.”

 

Nesse sentido, confira-se, ainda, o entendimento do Tribunal de Contas da União – TCU:

 

"Embora o Acórdão embargado tenha determinado a anulação da licitação e do contrato decorrente, permanece a obrigação da Administração em indenizar a empresa contratada pelos serviços executados até a sustação do contrato, consoante o disposto no parágrafo único do art. 59 da Lei 8.666/93" (Acórdão n. 2.240/2006, Plenário, rel. Min. Valmir Campelo)
 
"(...) 2. Conforme já abordado nos parágrafos 18.3 e 18.8 da presente instrução, para honrar o pagamento dos serviços efetivamente prestados o INSS adotou procedimento de reconhecimento de dívida, previsto no parágrafo único do art. 59 da Lei nº 8.666/93, tendo sido também instaurado o devido processo administrativo para apuração de responsabilidade de quem lhe deu causa" (GRUPO I – CLASSE VII – PLENÁRIO - TC 001.834/2002-3, Ministro Valmir Campelo).

 

O assunto foi abordado em consulta extraída da Revista Zênite, sob o título “Os efeitos dos serviços prestados sem amparo contratual”, cuja ementa segue abaixo:

 

EMENTA: Contratos – Sem amparo – Indenização - Enriquecimento sem causa.
LEGISLAÇÃO APLICÁVEL: Art. 59 da Lei n° 8.666/93.
1. Se os serviços foram prestados, e foi comprovada a boa-fé do particular, o pagamento deverá ser realizado a título de indenização, estando este procedimento em consonância ao ordenamento jurídico, pois a fundamentação para o pagamento, se for o caso, será o princípio da boa-fé e o princípio do não-enriquecimento sem causa da Administração, além de poder ser utilizado supletivamente o art. 59 da Lei n° 8.666/93.
(Revista Zênite, 140/84/FEV/2001, extraído do site www.zenite.com.br, pesquisa realizada em 1.6.2006.)

 

Como dito, a obrigação de indenizar o particular pela prestação de serviços extracontratuais deve ser formalizada mediante procedimento especial de reconhecimento de dívida. Sobre a sua natureza destacamos a doutrina de Pontes de Miranda:

 

O ‘reconhecimento de dívida’, ‘de obrigação’, ou ‘de ação’, ou ‘de execução’, é negócio jurídico unilateral, pelo qual fica a pessoa a favor de quem se reconheceu a dívida dispensada de provar a relação jurídica básica. Trata-se de negócio jurídico abstrato. Não se pode reduzir a eficácia do reconhecimento de dívida à simples ‘relevatio ab onere probandi’. Aliás, no passado, a hostilidade ao reconhecimento como negócio jurídico era a regra, nos países que não entendiam a abstração dos negócios jurídicos.

 

Sanação. Os negócios jurídicos de reconhecimento têm eficácia sanatória como teria a declaração de vontade ratificativa (...)‘Reconhecimento’ é a manifestação de conhecimento, pela qual se estabelece a existência (ou a não-existência) ou o conteúdo de determinada relação jurídica. O que se reconheceu tem-se como foi declarado pelo reconhecente. Isso, no tocante a ele. Não mais se pode discutir quanto ao que era duvidoso antes, nem cabe apurar-se se era assim, ou não, o mundo do direito, no que se referia à relação jurídica declarada. O manifestante da vontade quis que assim fosse, não constitutiva, mas declarativamente. Considera-se o negócio jurídico de reconhecimento como fonte de obrigações. Todavia, o que se põe em linha de causação é a declaração mesma, a vinculação ao que se declarou.
(PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, tomo 31, 2004, Ed. Bookseller, atualizado, ps. 69 ss.)

 

Ressalte-se que o reconhecimento de dívida deve ser encarado como uma situação anômala, extraordinária e excepcionalíssima. E, por se tratar de procedimento extraordinário e excepcional, o órgão consulente deve demonstrar nos autos, de forma expressa e inequívoca, que foram atendidos todos os requisitos trazidos pela lei e pela jurisprudência, os quais sintetizamos abaixo:

 

a) justificativa para a contratação do serviço sem a observância dos procedimentos formais instituídos pela lei, bem como para a escolha do fornecedor e quantitativo.
b) comprovação de que o fato que gerou a assunção da obrigação é excepcional e extraordinário, ou seja, que o órgão não faz uso da prática de forma reiterada e que o não fornecimento ou prestação de serviço em caráter de urgência causaria prejuízo para a boa gestão pública;
c) comprovação da boa-fé do fornecedor/prestador do serviço e do gestor público;
d) comprovação de que o serviço tenha sido efetivamente realizado;
e) certificação de inexistência de pagamento pelo serviço executado ou produto fornecido sem cobertura contratual;
f) comprovação de que o preço praticado é o de mercado, mediante pesquisa de preços;
g) dotação orçamentária específica do exercício corrente para o pagamento do débito;
h) prescindibilidade de comprovação de regularidade fiscal e trabalhista do fornecedor/prestador do serviço; e
i) formalização do termo de reconhecimento da dívida, mediante apresentação de minuta, a ser subscrita pela autoridade competente para empenhar a despesa.
j) formalização da liquidação da despesa, nos termos dos arts. 62 e seguintes da Lei n. 4.320, de 1964; e
k) apuração de responsabilidade de quem deu causa à prática de obter a prestação de serviços, sem a devida cobertura contratual.

 

Atendidos tais requisitos, sobre os quais nos debruçaremos doravante, convém frisar que o procedimento administrativo adequado para o pagamento de despesas efetivamente realizadas sem a necessária cobertura contratual --- obedecendo-se o princípio da moralidade administrativa, que veda o enriquecimento sem causa --- é o reconhecimento de dívida por ato da autoridade, empenho e posterior pagamento.

 

II.2.1 Das justificativas: razões da prestação sem cobertura contratual; escolha do fornecedor; quantitativo.

 

No procedimento de reconhecimento de dívida deverá o órgão assessorado declinar a razão pela qual a execução do serviço ocorreu sem a adoção dos procedimentos formais prévios à contratação, seja por meio da licitação ou de contratação direta (dispensa ou inexigibilidade). Aos autos, privilegiando o princípio da transparência, deverão ser trazidos todos os elementos fáticos que ensejaram a contratação extraordinária.

 

Outrossim, deverá ser disponibilizada a justificativa quanto à escolha do fornecedor com a clara indicação dos motivos para a seleção. A ação do gestor público está vinculada aos princípios jurídicos, dentre eles o da moralidade e impessoalidade. Mesmo frente a situação excepcional, tais preceitos não podem ser menosprezados.

 

Por fim,  necessário que o assessorado motive o quantitativo do serviço prestado pelo particular, que deverá corresponder fielmente a real demanda da Administração. Tal comprovação dar-se-á por meio de atesto da área técnica, fundamentado em elementos e informações concretas, tal como o mapa de consumo de exercícios anteriores, por exemplo.

 

A justificativa contemplando os três aspectos acima deverá ser a mais clara e compreensível possível, permitindo o controle pelos órgãos competentes e também pelo cidadão.

 

II.2.2. Da excepcionalidade.

 

O Tribunal de Contas da União tem orientado aos órgãos e entidades federais a evitarem a realização de reconhecimento de dívida, primando pelo planejamento e correta formalização dos atos administrativos, conforme determinado na Decisão nº 1.521/2002 – Plenário, veja-se:

 

“Sendo assim, tendo em vista os indícios de prática reiterada de reconhecimento de dívidas como forma de suprir o devido planejamento, princípio administrativo esmiuçado no art. 7º da Lei nº 8.666/93, propomos determinar ao INSS que evite a prática de reconhecimento de dívida, mantendo devidamente formalizadas todas as suas relações contratuais.”

 

Portanto, considerando o caráter atípico do reconhecimento de dívida, recomenda-se que os autos sejam instruídos com declaração da autoridade competente --- acompanhada dos documentos comprobatórios, conforme o caso ---, no sentido de que: (i) o fato que gerou a assunção da obrigação é excepcional e extraordinário; (ii) o órgão não faz uso da prática de forma reiterada; (iii) o não fornecimento ou prestação de serviço causaria prejuízo para a boa gestão pública.

 

II.2.3. Da boa-fé das partes.

 

Como já apontado, só será possível a indenização por meio de reconhecimento de dívida quando a relação jurídica estabelecida, embora desprovida de amparo contratual formal, for firmada baseada na boa-fé das partes, como bem destacou Clarissa Sampaio Silva:

 

“O mandamento da proteção à boa-fé dos administrados constitui inelutavelmente uma forma de equacionar a relação entre eles e a Administração. O princípio geral da boa-fé não apenas tem aplicação no Direito Administrativo, mas neste âmbito adquire especial relevância. (…) Da mesma forma, consoante o art. 59 da lei 8.666/93, a declaração de nulidade de contrato administrativo opera retroativamente, impedindo a produção dos efeitos que lhe seriam consectários, ressalvando-se entretanto a obrigação de a Administração indenizar o contratado pelo que tiver executado até então, e por outros prejuízos regularmente comprovados contando que não seja imputável. Com semelhante procedimento protege-se o contratado que, obrando de boa-fé, não pode ser apenado por declaração de nulidade de contrato administrativo.
(SILVA, Clarissa Sampaio. Limites à Invalidação dos Atos Administrativos. São Paulo: Max Limonad, 2001) 
 

Neste sentido, também, leciona Justen Filho:

 

“Outro ângulo da questão relaciona-se com a situação subjetiva do particular que participou da contratação inválida com a Administração. Afigura-se irrebatível que a indenização a favor do particular, cujo o patrimônio seja afetado por atuação indevida da Administração pública, depende de sua boa-fé. (…) Nesse sentido é que se afirma que a boa -fé do terceiro caracteriza-se quando não concorreu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha condições de conhecer) sua existência. O particular tem o dever de manifestar-se acerca da prática de irregularidade. Verificando o defeito, ainda que para ele não tenha concorrido, o particular deve manifestar-se. Se não o fizer, atuará culposamente. Não poderá invocar boa-fé para o fim de obter indenização ampla.”
(JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª edição. São Paulo: Dialética, 2005)

 

A Corte de Contas afasta --- ou atenua, a depender do caso --- a obrigação de pagamento de indenização ao particular que tenha agido de má-fé durante a execução do serviço:

 

“Ademais, na hipótese de confirmar-se a inexequibilidade dos preços ofertados, não poderá a contratada pleitear indenização em face de eventual anulação do contrato, pois, segundo o bom direito, ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Caso tenham sido ofertados preços impraticáveis com o fito de ganhar a licitação e, posteriormente, intentar a revisão contratual, fica comprovada a má-fé da licitante, o que lhe retira o direito a qualquer indenização, em conformidade com as disposições do parágrafo único do art. 59 da Lei nº 8.666/1993”. (Acórdão 148/2006):

 

A má-fé do particular é também encarada pelo Superior Tribunal de Justiça como fator impeditivo à indenização via procedimento de reconhecimento de dívida:

 

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO SEM PRÉVIA LICITAÇÃO. EFETIVA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CONSTATADA PELO TRIBUNAL A QUO. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS REDUÇÃO. SÚMULA 7/STJ.
1. Segundo jurisprudência pacífica desta Corte, ainda que o contrato realizado com a Administração Pública seja nulo, por ausência de prévia licitação, o ente público não poderá deixar de efetuar o pagamento pelos serviços prestados ou pelos prejuízos decorrentes da administração, desde que comprovados, ressalvada a hipótese de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade.
2. Não há como alterar as conclusões obtidas pelo Tribunal de origem que, com base nas provas dos autos, entendeu ter havido a efetiva prestação do serviço por parte da autora. Incidência da Súmula 7/STJ.
3. Não sendo o caso de valor exorbitante, ante o arbitramento dos honorários em 10% (dez por cento) do valor da causa, não cabe a esta Corte modificar o decisório sem incursionar no substrato fático-probatório dos autos. Súmula 7/STJ.
4. Agravo regimental não-provido.” 
(AgRg no Ag 1056922 / RS – Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES – DJe 11/03/2009).

 

A presença da boa fé é requisito essencial nas hipóteses de reconhecimento de dívida pois impede o infrator de se beneficiar de sua própria torpeza. Assim, a boa-fé das partes, do gestor público e do fornecedor ou prestador de serviços, deve ser comprovada e justificada. Todos os elementos fáticos que tenham o condão de demonstrá-la devem ser disponibilizados nos autos.

 

II.2.4. Da comprovação efetiva da prestação do serviço

 

O órgão assessorado deverá disponibilizar nos autos todos os elementos que comprovem que os serviços foram efetiva e adequadamente prestados, tendo sido observados os padrões técnicos e de qualidade necessários ao atendimento da necessidade pública.

 

O atesto da efetiva execução e da qualidade dos serviços deverá ser feito por meio de despacho fundamentado da autoridade competente, baseada em declaração e documentação fornecida pela área técnica do órgão, como por exemplo, nota fiscais ou recibos pertinentes.

 

II.2.5. Do reconhecimento e certificação de não quitação.

 

Antes de proceder ao reconhecimento e pagamento da dívida, a autoridade competente deverá adotar diligências para verificar a existência de outro processo (administrativo ou judicial) que tenha como objeto o recebimento da mesma importância reivindicada nesse processo.

 

O que se objetiva é evitar pagamentos em duplicidade e o enriquecimento sem causa do prestador do serviço.

 

II.2.6. Comprovação de que o preço praticado é o de mercado

 

O órgão assessorado terá de comprovar e atestar que o preço contratado correspondeu ao efetivamente praticado no mercado pelo prestador, afastando distorções que acarretem contratações em valores superfaturados.

 

O preço praticado com a Administração Pública deverá ter sido similar aos adotadas pelo particular para o restante de sua atividade profissional. A comprovação deve se dar, preferencialmente, por pesquisa de preços, possibilitando a verificação da razoabilidade do valor ajustado.

 

II.2.7. Da comprovação da dotação orçamentária

 

Os pagamentos somente podem ser efetuados à conta de dotação orçamentária específica, consignada para tal finalidade.

 

Vale lembrar que os artigos 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) impõem ao ordenador de despesas a certificação de não comprometimento das metas previstas na Lei Orçamentária Anual, bem como a declaração da efetiva existência de recursos financeiros para custear a despesa.

 

Ademais, caso se trate de reconhecimento de dívida decorrente de compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício, deve a Administração observar as regras previstas no art. 37 da Lei nº 4.320/64 c/c artigo 22 do Decreto nº 93.872/86.

 

Acerca do tema, convém citar trecho do Parecer n. 00525/2015/CJU-SP/CGU/AGU (exarado no NUP 67260.101730/2010-17):

 
Do Instituto Denominado Reconhecimento de Dívida. 
No presente cuida-se do reconhecimento de dívida feito quando não há instrumento de contrato instituindo a obrigação que justifica o pagamento da despesa. Se considerarmos o leito normal de criação da despesa, previsto na Lei Federal nº 4.320/1964, há de se reconhecer que pela fase da liquidação, na forma prevista no art. 63 da referida Lei, está a haver uma espécie de reconhecimento da dívida. Contudo, não é desta que estamos a tratar neste Parecer. Esclarecido este ponto, vejamos o que preceitua o art. 37 da Lei Federal nº 4.320/1964: 
Art. 37 da Lei nº 4320
“Art. 37. As despesas de exercícios encerrados, para as quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que não se tenham processado na época própria, bem como os Restos a Pagar com prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente poderão ser pagos à conta de dotação específica consignada no orçamento, discriminada por elementos, obedecida, sempre que possível, a ordem cronológica.” - negritamos -  
Desta forma, podemos perceber que as despesas de exercícios anteriores poderão ser reconhecidas se além de dotadas de legalidade, estiverem amparadas por uma das três hipóteses fundamentadoras (despesas de exercícios encerrados, para as quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio, restos a pagar com prescrição interrompida e compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente).
A doutrina traz o seguinte esclarecimento sobre o tema: 
“Analisaremos, pois, os três casos, de per si, e o respectivo atendimento por esta dotação. No primeiro, para que as despesas possam ser pagas por essa dotação, a lei estabelece como condição sine qua non a existência de crédito próprio no orçamento respectivo, com saldo suficiente para atendê-las, embora não processadas na época própria. No segundo, para que as despesas inscritas em Restos a Pagar sejam reempenhadas na dotação em análise, é necessário que elas tenham sido previamente canceladas no passivo Financeiro em contrapartida à conta Resultado Financeiro, após, evidentemente, entendimentos com o credor. No terceiro, (...) é necessário que a autoridade competente reconheça a obrigação a pagar, ainda que não tenha sido empenhada no exercício de origem, bem como a sua contrapartida como fato ocorrido nesse exercício, observando a ordem cronológica.” (MACHADO JR., José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada e a Lei de Responsabilidade Fiscal, p. 98) 
Sobre o tema a Secretaria de Orçamento, Finanças e Contabilidade do Egrégio Tribunal de Contas da União pontua: 
DESPESA DE EXERCÍCIOS ANTERIORES
As despesas de exercícios anteriores encerrados, para as quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que não se tenham processado na época própria, bem como os restos a pagar com prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente, poderão ser pagos à conta de dotação específica consignada no orçamento, discriminada por elementos, obedecida, sempre que possível, a ordem cronológica”. (Art. 37 da Lei nº 4.320/64)
Os compromissos decorrentes de obrigação de pagamento criada em virtude de lei e reconhecidos após o encerramento do exercício”. (IN/DTN nº 10/91)
O reconhecimento da dívida a ser paga a conta de despesas de exercícios anteriores cabe à autoridade competente para empenhá-la, devendo o processo conter, no mínimo, os seguintes elementos:
- importância a pagar;
- nome, CPF ou CGC e endereço do credor;
- data do vencimento do compromisso;
- causa da inobservância do empenho, se for o caso.
A autorização de pagamento de despesas de exercícios anteriores deverá ser dada no próprio processo de reconhecimento de dívida”. (IN/DTN nº 10/91)
Regulamentando o art. 37 da Lei nº 4320, dispõe o art. 22 do Decreto Federal nº 93.872/1986: 
Art . 22. As despesas de exercícios encerrados, para as quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio com saldo suficiente para atendê-las, que não se tenham processado na época própria, bem como os Restos a Pagar com prescrição interrompida, e os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente, poderão ser pagos à conta de dotação destinada a atender despesas de exercícios anteriores, respeitada a categoria econômica própria (Lei nº 4.320/64, art. 37). 
§ 1º O reconhecimento da obrigação de pagamento, de que trata este artigo, cabe à autoridade competente para empenhar a despesa.
§ 2º Para os efeitos deste artigo, considera-se:
a) despesas que não se tenham processado na época própria, aquelas cujo empenho tenha sido considerado insubsistente e anulado no encerramento do exercício correspondente, mas que, dentro do prazo estabelecido, o credor tenha cumprido sua obrigação;
b) restos a pagar com prescrição interrompida, a despesa cuja inscrição como restos a pagar tenha sido cancelada, mas ainda vigente o direito do credor;
c) compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício, a obrigação de pagamento criada em virtude de lei, mas somente reconhecido o direito do reclamante após o encerramento do exercício correspondente. - destaque não do original 
Na redação do art. 22, §2º, letra “c”, do Decreto Federal nº 93.872/1986, o termo de reconhecimento de dívida abarcaria os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício, mas decorrentes de obrigação criada em virtude de lei. Como se pode perceber, o leque de opções para se manejar o instituto de reconhecimento de dívida é bem restrito. Em situações específicas tem-se observado sua utilização quando há, por exemplo, a aplicação do previsto no Parágrafo único do art. 59 da Lei Federal nº 8.666/1993, ou seja, na hipótese em que a nulidade do contrato não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contando que não lhe seja imputável, ou seja, desde que haja boa-fé da parte do contratado. Ou ainda, no caso de fornecimento de serviços de água e esgoto à revelia de contrato. À evidência, se o direito do requerente devidamente reconhecido, e se o pagamento na prática não se efetivou, não cabe a Administração enriquecer-se indevidamente. Nesse sentido, cabível o pagamento por termo de reconhecimento de dívida, decorrendo a obrigação do previsto no art. 884 do Código Civil de 2002A via estreita de situações que justificam o pagamento por reconhecimento de dívida decorre do fato de a Lei Federal nº 4.320/1964 ter um rito processual ordinário para a realização da despesa, a envolver as fases de empenho, liquidação e pagamento (artigos 58 a 64 da referida Lei). Neste sentido, inclusive, vem se posicionando o E. TCU. Confirme-se: 
RECONHECIMENTO DE DÍVIDA. DOU de 08/02/2007, S. 1, p. 369. Ementa: o TCU determinou à ANA que se abstivesse de realizar “reconhecimento de dívidas”, uma vez que tal prática configura despesa sem prévio empenho, bem assim descumprimento à ordem das etapas de realização da despesa pública, com violação aos arts. 60 a 64 da Lei nº 4.320/64, mantendo-se devidamente formalizadas todas as suas relações contratuais; bem como que realizasse a correta classificação contábil da despesa realizada sob a forma de “reconhecimento de dívida”, de modo a identificar sua natureza, em observância ao princípio da evidenciação contábil, consignado nos arts. 14 e 15 da Lei nº 10.180/2001 (itens 1.2 e 1.4, TC-009.951/2005-0, Acórdão nº 32/2007-TCU – 2ª Câmara).
(...)
Pois bem. À luz destas ponderações normativas e doutrinárias, há de se verificar se é possível o enquadramento do presente caso no instituto de reconhecimento de dívida. Logo, ao que nos parece, o direito ao pagamento devidamente reconhecido no bojo deste feito pela autoridade assessorada, exsurge, de disposição legal encartada nos arts. 215 a 219 da Lei nº 8112/90 em consonância com o art. 884 do Código Civil de 2002, o qual prevê:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Observa-se, portanto, que a obrigação de pagamento passa ter por substrato primeiro uma disposição legal, o que por si só já autoriza o manejo do instituto do reconhecimento de dívida, lastreado no art. 37 da Lei Federal nº 4.320/1964 c/c o art. 22, §2º, letra “c”, do Decreto Federal nº 93.872/1986.
Portanto, em conclusão a este tópico, com os adendos jurisprudenciais acima referidos, pontuamos que além dos pagamentos atrasados observarem o lapso prescricional, o que foi mencionado na Nota Técnica (fls. 70), devem ser procedimentalizados através do instituto de reconhecimento de dívida.

 

II.2.8. Da regularidade fiscal e trabalhista.

 

A Administração Pública tem o poder-dever de exigir a prova de regularidade fiscal e trabalhista por parte da contratada, seja em momento anterior à própria contratação, a exemplo da fase de habilitação em licitação (art. 29, III e IV, da Lei nº 8.666/93), ou mesmo durante o período de execução do contrato, conforme art. 55, XIII, do referido diploma legal. 

 

Disso decorre, via de regra, a necessidade de instrução processual com as certidões relativas a regularidade fiscal federal (art. 193 da Lei nº 5.172/66), com a Seguridade Social (INSS - art. 195, §3º, CF), FGTS (art. 2º, Lei nº 9.012/95), CNDT (art. 29, V, Lei nº 8.666/93), SICAF (art. 1º, §1º, Decreto nº 3.722/01), CEIS (Acórdão TCU nº 1793/2011-Plenário), Lista de inidôneos do TCU e certidão negativa de improbidade do CNJ.

 

Não obstante, salvo situações excepcionais de desvios de conduta por parte da contratada, a jurisprudência vem expressamente excluindo a possibilidade de que a comprovação da regularidade fiscal e trabalhista seja imposta como condição para a realização do pagamento por serviços já prestados em favor do Poder Público. As razões invocadas assentam-se justamente nos já mencionados princípios norteadores da atividade administrativa, notadamente a moralidade e a vedação ao locupletamento sem causa, além da impossibilidade de se impor sanção política (cobrança fiscal indireta). 

 

Senão vejamos: 

 

AGRAVO INTERNO. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE. CONTRATAÇÃO COM A MUNICIPALIDADE. SERVIÇOS JÁ REALIZADOS. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
I - Na origem, a Associação Beneficente Cearense de Reabilitação – ABCR impetrou mandado de segurança contra ato do Secretario de Saúde do Município de Fortaleza, pretendendo receber o repasse financeiro relativo a serviços por ela prestados, decorrente de contrato entabulado entre as partes, sem a necessidade de apresentação de certidão negativa expedida pela Fazenda Pública Nacional.
II - O Tribunal a quo manteve a decisão concessiva da ordem.
III - Ao recurso especial interposto pela municipalidade foi negado provimento, com base na Súmula 568/STJ, em razão da jurisprudência da Corte encontrar-se pacificada no mesmo sentido da decisão recorrida: apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência. Precedentes: REsp n. 1.173.735/RN, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 9/5/2014, RMS n. 53.467/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/06/2017, dentre outros.
IV - Os argumentos trazidos pelo agravante não são suficientes para alterar o entendimento prestigiado pela decisão atacada.
V - Agravo interno improvido
(STJ; AgInt no Recurso Especial nº 1.742.457 - CE; Relator: MINISTRO FRANCISCO FALCÃO; 2ª Turma; 07/06/2019)
 
 
CONTRATO ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. DECISÃO AGRAVADA QUE NEGOU PROVIMENTO AO APELO, DADA A EXISTÊNCIA DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL CONSOLIDADO PELA IMPOSSIBILIDADE DE RETENÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO PAGAMENTO PELOS SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS, APENAS POR CAUSA DA NÃO COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL. HIPÓTESE QUE O RECURSO INTERNO VEICULA A INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 83/STJ, FUNDADO EM JULGADOS ANTIGOS E JÁ SUPERADOS. AGRAVO REGIMENTAL DE COMPANHIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO OBRAS E SERVIÇOS DE CONTAGEM-CONTERRA (EM LIQUIDAÇÃO) A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. Este STJ possui entendimento consolidado de que não pode a Administração reter pagamento de contrato administrativo por serviços efetivamente prestados forte na ausência de regularidade fiscal. Precedentes: AgInt no AREsp. 503.038/RJ, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, DJe 31.5.2017 e AgRg no REsp. 1.313.659/RR, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 6.11.2012, dentre muitos outros.
2. Devem prevalecer os postulados da vedação ao enriquecimento sem causa e da impossibilidade de cobrança fiscal indireta.
3. Agravo Regimental de COMPANHIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO OBRAS E SERVIÇOS DE CONTAGEM-CONTERRA (EM LIQUIDAÇÃO) a que se nega provimento.
(STJ; AgRg no Recurso Especial n° 1169052 - MG; Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho; Primeira Turma)

 

Nesse mesmo sentido, vide: STJ, AgInt no AREsp 1.161.478/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 06/12/2018; AgInt no AREsp 503.038/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 31/05/2017; AgRg no AREsp 277.049/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 19/03/2013; AgRg no REsp 1.313.659/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 06/11/2012. 

 

Registre-se, inclusive, que a retenção do pagamento por descumprimento da cláusula de regularidade fiscal, por não constar do rol do art. 87 da Lei nº 8.666/93, ofende o princípio da legalidade (REsp n. 1.173.735/RN; RMS n. 24.953/CE).

 

Convém repisar que o que se discute aqui é tão somente a realização de um pagamento por serviço já prestado, o qual, frise-se, está destituído de suporte contratual formal. Caso houvesse contrato regular, a exigência de comprovação de regularidade fiscal e trabalhista poderia eventualmente ensejar sua rescisão em razão de descumprimento de uma de suas cláusulas, ou mesmo implicar na imputação de penalidade ao contratado que não adotasse providências de saneamento.

 

No presente caso, a hipótese é mesmo de ausência de qualquer utilidade para a exigência de certidões de regularidade. Ora, o que se enfrenta aqui é tão somente o pagamento por serviço prestado sem amparo contratual, o qual, como se viu, não pode ser objeto de retenção. Não se trata de procedimento para contratação futura com o Poder Público. Do mesmo modo, não se trata de dar continuidade a contrato existente​, e, por conseguinte, não há que se falar em exigência de certidões de regularidade para fins de adoção de medidas para eventual rescisão contratual e/ou aplicação de penalidade contratual

 

Opinamos, portanto, pela prescindibilidade da exigência de certidões de regularidade fiscal e trabalhista para que o pagamento de despesa sem cobertura contratual, referente a serviço efetiva e devidamente prestado, seja realizado.

 

II.2.9. Do termo de confissão/reconhecimento de dívida.

 

O Termo de Confissão de Dívida (TCD) é o instrumento adequado para que a Administração reconheça, formalmente, a existência de débito oriundo de serviço efetivamente prestado e não pago por ausência de cobertura contratual. Trata-se, portanto, de declaração que formaliza o reconhecimento de um débito e a responsabilidade por seu pagamento.

 

Recomenda-se que a  minuta do referido Termo contenha as seguintes informações, conforme o caso:

 

a) identificação completa do favorecido;
b) identificação completa do órgão devedor;
c) indicação, origem e valor do débito, discriminando todas as eventuais parcelas do serviço em atraso e o período a que se referem;
d) data do vencimento do compromisso; 
e) justificativa sobre os motivos do reconhecimento;
f) fundamento legal;
g) cláusula que defina que o pagamento gera quitação plena, geral e irrevogável do débito reconhecido;
h) indicação dos recursos financeiros e rubricas orçamentárias para fazer face à despesa;
i) autorização/assinatura da autoridade competente;

 

O Manual de Reconhecimento de Dívida - SECOM - da Presidência da República ainda orienta:

 

O gestor do contrato abrirá processo de liquidação e pagamento no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) específico para o caso em questão e juntará toda a documentação prevista nos Manuais de Procedimento de cada tipo de contrato, exceto o Memorando I. Tal Memorando deverá conter obrigatoriamente as seguintes informações:
- Nome do favorecido
- Descrição resumida do produto ou serviço;
- Importância a pagar;
- Dados da Nota Fiscal
- Causa da inobservância do empenho (anexando, se possível, documentos que originaram tal situação).
(SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – SECOM/PR. Manual de Reconhecimento de Dívidas: Procedimentos para reconhecimento de dívidas de exercícios anteriores. Brasília, 03/04/2017).
 

A título de auxílio, o órgão assessorado poderá se valer do modelo de Termo de Reconhecimento de Dívida elaborado pela CJU/RS, disponível no endereço eletrônico https://antigo.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/709209, o qual deverá ser adaptado às peculiaridades do caso em concreto.

 

Após o pagamento, o credor deverá firmar recibo ou declaração de plena quitação, com eficácia administrativa e judicial, comprometendo-se a não efetuar qualquer cobrança em face do Ente Público quanto as obrigações ali dadas por satisfeitas.

 

Destaca-se a necessidade de que o termo de reconhecimento de dívida​ seja publicado no Diário Oficial da União, por força do art. 61, parágrafo único, da Lei n. 8.666, de 1993, que impõe como condição para a eficácia de contratos e seus aditamentos a publicação na imprensa oficial.

 

II.2.10. Do dever de apurar responsabilidades.

 

Como já foi registrado anteriormente, é imperioso que todas as contratações feitas pela Administração Pública observem os ritos impostos pela lei. O devido procedimento licitatório, e mesmo suas exceções legalmente reguladas (dispensas e inexigibilidade), servem para que ao final seja escolhida a proposta mais vantajosa para a Administração.

 

Nesse mesmo sentido, é oportuno ressaltar que o art. 60 da Lei nº 4.320, de 1964 veda a realização de despesa sem o prévio empenho. In verbis:

 
Art. 60. É vedada a realização de despesa sem prévio empenho.
§ 1º Em casos especiais previstos na legislação específica será dispensada a emissão da nota de empenho.
§ 2º Será feito por estimativa o empenho da despesa cujo montante não se possa determinar.
§ 3º É permitido o empenho global de despesas contratuais e outras, sujeitas a parcelamento.
(Negritos acrescidos)

 

Ademais, via de regra, a lei impõe o dever de planejamento das contratações por parte das entidades públicas. Por óbvio, haverá situações extraordinárias em que não restará espaço para o adequado planejamento, obrigando a Administração a contratar sem os ritos e instrumentos formais. Mas, como dito, tais circunstâncias são excepcionalíssimas. 

 

Esclarece Helly Lopes Meirelles :

 

“a legalidade, como princípio de administração significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e as exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”  (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 67). (G. N.).

 

Do Tribunal de Contas da União, cabe invocar o seguinte precedente:

 

"Não basta ao Administrador Público alcançar os objetivos fixados para sua gestão; é necessário que os alcance pautado pelas normas disciplinadoras que regem o Serviço Público. Em se tratando de Administração Governamental, é inválida a máxima de que "os fins justificam os meios". Ao contrário, o princípio da legalidade restringe o poder discricionário e exige o cumprimento de formalidades, que passam a ser atributos dos atos administrativos." (trecho de Voto de Relator ref. ao Acórdão 386/1995 - Segunda Câmara, acolhido no Relatório ref. à Decisão 561/1998 - Plenário (G. N.).

 

Logo​, orienta-se não só a regular liquidação da despesa, nos termos dos art. 62 e seguintes da Lei nº 4.320, de 1964, mas também a instauração do devido processo administrativo para apuração das eventuais responsabilidades de quem deu causa à despesa sem cobertura contratual, nos termos do artigo 59, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93, e da Orientação Normativa nº 04/2009 da AGU.

 

A jurisprudência do TCU reforça a necessidade da aludida apuração:

 

"Aplica-se multa por grave infração à norma legal quando evidenciada situação corriqueira de execução de despesas sem cobertura contratual e sem licitação. Nessa situação, constata-se que o gestor age, no mínimo, com culpa in eligendo na escolha de seus subordinados."
(Acórdão n. 1181/2012 – Plenário TCU)
 
"A realização de despesas sem cobertura contratual é irregularidade grave, que justifica a aplicação de multa aos responsáveis, bem como julgamento pela irregularidade de suas contas."
(Acórdão n. 2515/2009 – Plenário TCU)

 

Não custa registrar que a ausência de apuração de responsabilidades não impede o pagamento da indenização em favor do prestador, pois, como alhures arrazoado, representaria enriquecimento ilícito da Fazenda Pública. Porém, acarretará responsabilização administrativa por omissão do dever legal de comunicar a irregularidade à autoridade competente pela apuração, conforme expressa previsão no art. 116 da Lei  8112/91, aplicáveis aos servidores públicos federais.

 

II.3. Atestado de adequação do processo ao Parecer Referencial.

 

Deverá o órgão assessorado informar, sempre que solicitado, a relação dos processos, com respectivo NUP, em que a presente manifestação jurídica referencial tenha sido adotada.

 

Recomenda-se, ademais, seja juntado aos autos em que aplicável e efetivamente utilizado este Parecer Referencial, a seguinte declaração:

 

REFERENCIAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. REALIZAÇÃO DE DESPESA SEM COBERTURA CONTRATUAL​​. RECONHECIMENTO DE DÍVIDA.

 

ATESTADO DE ADEQUAÇÃO DO PROCESSO AO PARECER REFERENCIAL
 
Processo: __________________________
Objeto: Reconhecimento de dívida
Valor estimado (Valor de referência): R$__________________________
 
Atesto que o presente processo, referindo-se ao objeto acima descrito, adequa-se à manifestação jurídica referencial correspondente ao PARECER REFERENCIAL n. 00003/2021/COORD/E-CJU/SSEM/CGU/AGU, cujas recomendações restaram plenamente atendidas no caso concreto, e a instrução dos autos está regular, de acordo com o que está consignado na lista de verificação juntada aos autos.
 
Fica, assim, dispensada a remessa dos autos para exame individualizado a cargo da Consultoria Jurídica da União Virtual Especializada em Serviços sem Dedicação Exclusiva de Mão-de-Obra (e-CJU/SSEM), conforme autorizado pela Orientação Normativa nº 55, da Advocacia-Geral da União.
 
________________, _____ de _____________________ de
 
_______________________________________________________
                     Identificação (nome e matrícula) e assinatura

 

 

III. CONCLUSÃO

 

Diante do exposto, é juridicamente possível dar prosseguimento ao feito, reconhecendo-se e liquidando-se a despesa realizada sem cobertura contratual, sem necessidade de submissão individualizada dos autos à e-CJU/SSEMdesde que o Órgão assessorado ateste que o assunto do processo é o tratado na presente manifestação jurídica referencial --- consoante Orientação Normativa  55, do Advogado-Geral da União ---, bem como atenda as orientações nela exaradas (ou, se for o caso, justifique seu afastamento de forma motivada, conforme previsão do art. 50, VII, da Lei de Processo Administrativo).

 

Ressalte-se que o presente parecer restringe-se aos aspectos legais do procedimento, não cabendo a este órgão consultivo o exame da matéria em razão do aspecto econômico e técnico, nem da oportunidade e conveniência da decisão adotada.

 

Reiteramos que eventuais dúvidas jurídicas específicas que surgirem a partir da aplicação da presente manifestação referencial aos casos concretos poderão ser submetidas ao órgão consultivo da AGU.

 

Registro que a presente manifestação jurídica tomou por base de sua construção, dentre outros, os seguintes Pareceres exarados no âmbito desta e-CJU/SSEM: Parecer nº 01065/2021, Parecer nº 01537/2021, Parecer nº 01582/2021 e Parecer nº 02030/2021, de lavra do Dr. Jorge Luiz Castilhos Garcia, Dra. Adriana Limoeiro de Oliveira Batista, Dra. Clarice Mendes Lemos e Dr. Márcio Lopes da Costa, respectivamente, a quem atribuímos os devidos créditos.

 

Submeto o presente à apreciação do Exmo. Sr. Coordenador da e-CJU/SSEM, Dr. Anderson Morais Diniz, a fim de que, concordando com os termos deste Parecer Referencial, dê amplo conhecimento do mesmo aos órgãos assessorados, comunicando-lhes a desnecessidade de envio de processos versando sobre o tema para análise individualizada.    

 

Belo Horizonte, 06 de setembro de 2021.

 

(assinado eletronicamente)

DANIEL LIN SANTOS

ADVOGADO DA UNIÃO

Coordenador Substituto da Consultoria Jurídica da União Especializada Virtual 

de serviços sem dedicação exclusiva de mão-de-obra (e-CJU/SSEM)

 

 


Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 00688001068202167 e da chave de acesso eef55971

 




Documento assinado eletronicamente por DANIEL LIN SANTOS, de acordo com os normativos legais aplicáveis. A conferência da autenticidade do documento está disponível com o código 715522838 no endereço eletrônico http://sapiens.agu.gov.br. Informações adicionais: Signatário (a): DANIEL LIN SANTOS. Data e Hora: 06-09-2021 09:49. Número de Série: 17381121. Emissor: Autoridade Certificadora SERPRORFBv5.