ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
PROCURADORIA-GERAL FEDERAL
PROCURADORIA FEDERAL ESPECIALIZADA JUNTO AO INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE
GABINETE DO PROCURADOR-CHEFE
DESPACHO n. 00668/2021/GABINETE/PFE-ICMBIO/PGF/AGU
NUP: 02070.020820/2016-95
INTERESSADOS: INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICMBIO
ASSUNTOS: MEIO AMBIENTE
Acompanho o PARECER n. 00115/2021/COMAF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU, por seus próprios fundamentos.
Ao ler o Parecer que ora aprovo a única frase que me vem à mente é um trecho cantado pela madrinha do samba, Beth Carvalho, "o meu olhar em festa se fez feliz". O parecer cita, ainda, Torto Arado, livro que me foi indicado pelo Procurador Fideles e por Felipe: recomendo a leitura da obra.
A escolha do Procurador Fideles para a elaboração do Parecer tem um caráter simbólico: foi chefe da Procuradoria do Incra e conhece o assunto pelas duas vertentes; ouso dizer que seja a pessoa na AGU mais habilitada a falar sobre o assunto tendo em conta a perspectiva dupla (visão do ICMBio e visão do INCRA) e porque não conhece o assunto de ouvir dizer; já foi na Rebio e sabe os dramas vividos pelos quilombolas. Como diria meu poeta preferido, ele sabe que "qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa".
Quanto ao mérito do Parecer, preciso fazer um registro: equivoca-se quem pensa que o conflito quilombola apenas será resolvido com justiça se houver exclusão da ingerência do ICMBio. Essa visão é radical e certamente é perfilhada por aqueles que negam o uso direto das demais populações tradicionais nas unidades de proteção integral. Em um e em outro caso nega-se a compatibilização como medida possível. É uma lógica de tudo ou nada. Ou é quilombola ou é UC: não dá para ser os dois. E a razão do equívoco é simples: a proteção do espaços protegidos (artigo 225, parágrafo 1º) e a proteção aos quilombolas (artigo 68 do ADCT) possuem fundamento na Constituição e, quando direitos previstos na Constituição colidem, a solução NÃO SE DÁ PELA EXCLUSÃO DE UM EM DETRIMENTO DO OUTRO E SIM PELA PONDERAÇÃO. Aliás, foi exatamente na linha de compatibilização que o STF decidiu o caso Raposa do Sol.
A técnica de ponderação é largamente utilizada pelo STF[1] e não vou entrar no assunto com profundidade porque desnecessário. O que preciso afirmar é que não encontra assento na técnica de resolução de conflitos constitucionais fazer prevalecer um direito excluindo o outro de forma absoluta. A titularidade quilombola dissociada de maneira absoluta da proteção ambiental especial das unidades de conservação é optar apenas por um dos lados. A análise não pode ser emotiva. É nesse sentido que, embora pareça justa a interpretação de que a solução correta seria outorgar as terras aos quilombolas sem qualquer interferência do ICMBio, o fato é que essa solução não encontra lastro na intepretação constitucional. Não se pode, portanto, dizer ter sido essa a intenção do Constituinte.
Veja-se, contudo, que não se está excluindo que os quilombolas façam pleito de desafetação porque o acesso ao judiciário e ao legislativo é livre; o que se está afirmando é que a visão do ICMBio, em interpretação administrativa, é no sentido de que, em se tratando de áreas sobrepostas, a solução do conflito, de forma definitiva, ocorre por meio da outorga CCDRU, seja em unidades de usos susnteável, seja em unidades de proteção integral. Isto será aceito pelas comunidades quilombolas? Aqui, eu preciso me reportar ao poeta Zeca Pagodinho: "ninguém pode imaginar o que não viveu". Não sei responder porque ainda não vivi. Só se saberá vivendo e conversando.
O que eu penso é que talvez o que foi concedido até hoje pelo ICMBio a estas populações foi muito pouco em termos de usos dentro das UCs de proteção integral: é correto achar que a justa medida para compatibilizar quilombolas na Rebio Trombetas seria apenas autorizar a coleta de castanhas? Formalmente, é isso que eles conseguiram! E eu penso que isso parece muito pouco. E o que foi outorgado aos quilombolas em outras unidades de conservação de proteção integral? Nesse sentido, trocar o termo de compromisso pelo CCDRU e autorizar apenas a coleta de castanhas, certamente, não empolgará ninguém, porque não é medida de justiça; porque não corresponde aos usos diretos históricos que essas populações faziam naquele pedaço de terra. Em suma, será que o CCDRU como solução definitiva é pouco ou o que o ICMBio ofertou a estas comunidades até agora é que foi pouco? Fica o questionamento. A mim, me parece que o que autorizamos foi pouco e é por isso que talvez não tenha havido pacificação.
É possível que, chegando a usos múltiplos, os próprios quilombolas se convençam de que seus interesses encontram-se satisfeitos e encontrem no ICMBio um parceiro na gestão da área em contraponto a outros interesses alheios. Custa-me a crer que um diálogo pautado nessas premissas (vocês não estão aqui de passagem como diz o TC e pensaremos sim em albergar seus interesses) já tenha sido proposto de forma clara e aberta a estas comunidades, por isso é que não posso dizer que o trabalho da PFE seja apenas "mais do mesmo"
Acredito, à luz do quanto defendido no PARECER n. 00115/2021/COMAF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU, que um CCDRU que permita usos múltiplos, ao mesmo tempo que busque o ponto ótimo de proteção ambiental possível, pode sim pacificar o conflito permitindo uma releitura do artigo 68 do ADCT para áreas de sobreposição. Agora, o fato é que isso demandará esforço institucional e uso de técnicas apuradas de mediação de conflitos, ou seja, um trabalho novo, com novos pontos de fundamentação. E é difícil adapatar-se ao novo. Talvez, por isso, os contrapontos já lançados. Quem me conhece mais de perto sabe que sou contrário a soluções gabinete e, portanto, jamais aprovaria uma proposta como essa se não tivesse plena convicção de que ela pode resultar em uma mediação útil. Útil, mas sem dúvidas, trabalhosa.
Mas, afinal, o que é mesmo que muda com esses entendimentos? 1) aumento de segurança jurídica com celebração de CCDRU´s antes inadmissíveis em UCs de proteção integral; 2) necessidade de previsão nos planos de manejo dessa realidade, ou seja, a compatibilização deve ser prevista no plano de manejo; 3) o CCDRU será fixado sem prazo; 4) o CCDRU deve pensar em usos múltiplos tendo em conta o ótimo ambiental possível para a área sobreposta, ou seja, em princípio haverá um avanço nos usos já previstos no termo de compromisso; 5) devem ser autorizadas, pelo gestor local, medidas que viabilizem políticas públicas relativas a direitos fundamentais a essas populações, a exemplo da energia elétrica; 6) a regularização fundiária do ICMBio sai da lógica do pagamento e passa a refletir a ideia de compatibilidade no que tocas aos quilombolas em todas as UCs; 7) passa a ser desnecessária a discussão, por iniciativa do ICMBio, de processos legislativos visando a desafetação de áreas sobrepostas com comunidades quilombolas; 8) o uso público, inclusive o ROVUC, precisa conferir primazia às atividades já reconhecidas a estas populações (turismo de base comunitária com autorização, por exemplo, de construções cabíveis para o atingimento do fim); 9) torna-se descabida a lavratura de autos de infração que tenham como objeto exatamente condutas inseridas no concveito de tradicionalidade. Se isto não for uma mudança de postura, realmente não sei o que seria.
Apoio administrativo encaminhar:
À CGSAN para conhecimento e adoção das providências ulteriores com envio de cópia a todos os Diretores, AUDIT, COREG, CGEUP, COMAN, CGTER, GRS, PONTOS FOCAIS DAS GRS.
Ao GABIN PRESIDÊNCIA para avaliação dos itens contidos no item 10.
Brasília, 23 de novembro de 2021.
DILERMANDO GOMES DE ALENCAR
PROCURADOR-CHEFE NACIONAL
PROCURADORIA FEDERAL ESPECIALIZADA JUNTO AO ICMBio
Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 02070020820201695 e da chave de acesso 2dbed570
Notas