ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA DA UNIÃO ESPECIALIZADA VIRTUAL DE PATRIMÔNIO
NÚCLEO JURÍDICO
PARECER n. 00916/2021/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU
NUP: 10980.006219/98-49
INTERESSADO: SUPERINTENDÊNCIA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO NO PARANÁ E MUNICÍPIO DE GUARATUBA
ASSUNTO: CANCELAMENTO DE AFORAMENTO POR VÍCIO DE ILEGALIDADE
EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO. GESTÃO DO PATRIMÔNIO IMOBILIÁRIO DA UNIÃO. CONSULTA SOBRE A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE CANCELAR OS EFEITOS DECORRENTES DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE DOMÍNIO ÚTIL.
I) Consulta sobre a possibilidade de cancelamento ou anulação do aforamento da área de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo) localizada na Av. Atlântica, s/n - Encosta leste do Morro das Caieiras, Município de Guaratuba, no estado do Paraná.
II) Contrato de Compra e Venda de Domínio Útil firmado entre a União e o Município de Guaratuba celebrado em 19/07/2000, tendo como objeto o imóvel localizado na Av. Atlântica, s/n - Encosta leste do Morro das Caieiras, no Município de Guaratuba, estado do Paraná, com área total de 4.617,40 m² cadastrada sob o RIP nº 7587 0100949-33 e Matrícula nº 42.613, Livro 02, no Registro de Imóveis de Guaratuba - PR.
III) Verificação em ação de fiscalização, posterior ao aforamento, de que o imóvel caracteriza-se como área de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo), evidenciando a violação ao disposto no § 3º do art. 12 da Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, em sua redação anterior à atual redação dada pela Lei nº 13.139, de 2015, pelo qual não serão objeto de aforamento os imóveis que, por sua natureza e em razão de norma especial, são ou venham a ser considerados indisponíveis e inalienáveis.
IV) Decorrência do disposto nos arts. 65 a 67 do Código Civil anterior (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, revogada pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e do Código Florestal de 1965 (Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, revogada pela Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012), ambos, vigentes à época da assinatura do contrato.
V) Possibilidade jurídica de invalidação do ato administrativo, com fundamento no art. 53 da Lei nº 9.784 , de 29 de janeiro de 1999 e enunciado das Súmulas STF 346 e 473, desde que instaurado procedimento administrativo próprio, a garantir a ampla defesa e o contraditório, seguindo-se de decisão motivada, na forma recomendada pelo Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019.
VI) Inaplicabilidade do disposto no inciso V do art. 103 do Decreto-Lei nº 9.760 de 05 de setembro de 1946, por não se cuidar da hipótese de extinção de aforamento, mas sim de invalidação de ato por ilegalidade.
I - RELATÓRIO
1. A Superintendência do Patrimônio da União no Paraná - SPU/PR encaminha o presente processo, para análise e manifestação, nos termos do artigo 11, inciso VI, alínea “b”, da Lei Complementar no 73, de 10 de fevereiro de 1993 , que instituiu a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União e do artigo 19, incisos I e VI, do Ato Regimental n.º 5, de 27 de setembro de 2007, do Advogado-Geral da União, combinados com o art. 38 da Lei nº 8.666,de 1993.
2. Os autos foram instruídos com os seguintes documentos:
18821578 Termo
18821580 Processo Digitalizado RIP 7587.0100949-33
18821581 Despacho
19101874 Planta de localização
19315895 Relatório de Fiscalização Individual - RFI 2760
19318887 Anexo Relatório Fotográfico
19319365 Despacho
19543850 Despacho
19832250 Nota Técnica 51807
20184525 Ofício 299483
20674942 Despacho
20675077 Notificação (numerada) 108
20733953 E-mail
20734248 Despacho
20734405 E-mail
20734474 E-mail
20805304 Anexo AR Notíficação PM Guaratuba
3. Trata-se de "área de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo) localizada na Av. Atlântica, s/n - Encosta leste do Morro das Caieiras, no Município de Guaratuba, estado do Paraná, na qual há estruturas de contenção (pedras e gabião) supostamente realizada pelo município, correspondendo à imóvel sob regime de aforamento, sem aproveitamento atual, com área total de 4.617,40 m² e cadastrada sob o RIP nº 7587 0100949-33. Matrícula nº 42.613, Livro 02, Registro de Imóveis de Guaratuba/PR".
4. A consulta do órgão assessorado tem por fundamento as considerações e indagações da Nota Técnica SEI nº 51807/2021/ME (SEI nº 19832250):
"(...) ANÁLISE
2. Em 1998 foi proposta a alienação do domínio pleno de lote na faixa de marinha e acrescido, situado na encosta leste do Morro das Caieiras, em frente para a Avenida Atlântica, com área total de 4617,40 m², no Município de Guaratuba, Estado do Paraná (SEI nº 18821580, fl. 4). A planta da referida área consta no documento SEI nº 18821580, fl. 6.
3.No mesmo ano, a Prefeitura Municipal de Guaratuba manifestou interesse na aquisição do domínio útil do referido lote, cuja destinação seria a criação de um Centro Comunitário (SEI nº 18821580, fl. 54), inclusive com a edição da lei Municipal nº 857/98, autorizando a aquisição (SEI nº 18821580, fl. 59).
4.Após diversos trâmites do processo administrativo, sem a celebração do contrato, em 2000 a Prefeitura Municipal de Guaratuba reiterou interesse na aquisição do domínio útil do lote (SEI nº 18821580, fls. 118 a 121).
5.Em 19/07/2000, após os devidos trâmites e autorizações necessárias, foi celebrado o Contrato de Compra e Venda entre a União Federal e o Município de Guaratuba, cujo objeto foi o domínio útil do lote situado na encosta leste do Morro das Caieiras, em frente para a Avenida Atlântica, com área total de 4617,40m² (SEI nº 18821580, fls. 172 a 174), registrado em matrícula em 24/08/2000 (SEI nº 18821580, fl. 177).
6.Em 23/03/2001, foi protocolado pelo Município de Guaratuba um pedido de Transferência de Domínio (SEI nº 18821580, fl. 190), informando da doação do domínio útil do lote à Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Sociedade Paranaense de Cultura - CNPJ 76.659.820/0001-51), averbado em matrícula em 17/01/2001 (SEI nº 18821580, fls. 219 a 220).
7.Em 24/04/2001, foi emitida Autorização de Transferência (SEI nº 18821580, fl. 213), certificando o que segue:
(...)
8.Em 08/03/2002, foi protocolado pela Sociedade Paranaense de Cultura um requerimento de averbação de aforamento (SEI nº 18821580, fl. 216)
9.Em 18/03/2002, foi autorizada a transferência do imóvel aforado e determinada a lavratura do Termo de Transferência (SEI nº 18821580, fls. 237 a 241).
10.Em 30/08/2004, foi redigido o Ofício nº 1134/GRPU/PR (SEI nº 18821580, fls. 249 a 251), mencionando questionamentos relativos à legalidade dos atos que ensejaram na transferência do domínio pleno do imóvel ao Município de Guaratuba e da posterior transferência do domínio pleno do mesmo imóvel pelo Município de Guaratuba à Sociedade Paranaense de Cultura.
11.Em 2005, o Ministério Público Federal manifestou no bojo do procedimento MPF/PRM/PA n° 1.25.007.000005/2003-07 (SEI nº 18821580, fls. 257 a 264) não haver "indícios de improbidade administrativa, mal uso do dinheiro público, fraude a licitação ou qualquer outro prejuízo a coletividade nas transferências em questão, ante ao comprovada destinação social da futura ocupação do imóvel", contudo, disse haver irregularidade no modo como foi feita a transferência pelo Município de Guaratuba, que por esse deveria ser sanada, promovendo o procedimento licitatório adequado com posterior comprovação à União.
12.A SPU/PR solicitou à Prefeitura Municipal de Guaratuba, via Ofícios nº 249/2005 - SEONE/GRPU/PR (SEI nº 18821580, fl. 265), 1250/2005 - SEGNE/GRPU/PR (SEI nº 18821580, fl. 266), 797/06 SEGNE/GRPU/PR (SEI nº 18821580, fl. 273) e 798/06 SEGNE/GRPU/PR SEI nº 18821580, fl. 273), manifestação quanto às providências tomadas para a regularização da transferência do imóvel, sem qualquer retorno.
13.Em 18/10/2021, foi emitido o documento Relatório de Fiscalização Individual - RFI 2760 (SEI nº 19315895), mencionando que a área de 4617,40 m², sob regime de aforamento, se constitui de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo), sem aproveitamento atual, contendo estruturas de contenção (pedras e gabião), de obra supostamente realizada pela Prefeitura Municipal de Guaratuba, e que parte da estrutura já sofreu ação das marés, estando danificada e/ou soterrada, com ferros enterrados, causando perigo aos banhistas.
14.O § 3º do art. 12 da Lei nº 9.636/98 diz que não serão objeto de aforamento os imóveis que por sua natureza e em razão de norma especial, são ou venham a ser considerados indisponíveis e inalienáveis, além dos que são considerados de interesse do serviço público, mediante ato do Secretário do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
15.A Instrução Normativa nº 3, de 9 de novembro de 2016, menciona em seu art. 6º que não serão objeto de aforamento os imóveis: que são considerados de interesse do serviço público; que são classificados como áreas de preservação permanente; que estão em áreas cujo parcelamento do solo seja vedado, na forma do art. 3º e do inciso I do caput do art. 13 da Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979; e que são administrados pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Ministério da Defesa ou pelos Comandos da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica.
16.A Instrução Normativa nº 4, de 14 agosto de 2018, menciona em seu art. 12 que são vedadas as inscrições de ocupação que concorram ou comprometam a integridade das áreas de uso comum do povo, e em seu art. 31 cita que são causas para revogação ou cancelamento de inscrição de ocupação o impedimento de acesso às praias, às áreas de uso comum do povo, aos terrenos da União ou de terceiros.
CONCLUSÃO
17.Tendo em vista a ausência de retorno da Prefeitura Municipal de Guaratuba acerca das providências tomadas para a regularização da transferência do imóvel à Sociedade Paranaense de Cultura e o conteúdo do Relatório de Fiscalização Individual - RFI 2760 (SEI nº 19315895), que constatou que a área aforada é constituída de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo), sugere-se o envio desta Nota Técnica à Consultoria Jurídica da União, para que se posicione acerca da possibilidade de cancelamento ou anulação do aforamento, e, caso seja possível, se há necessidade de indenização. (...)" (grifos e destaques)
É o relatório.
II - FINALIDADE E ABRANGÊNCIA DO PARECER
5. Esta manifestação jurídica tem a finalidade de assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa. A função do órgão de consultoria é apontar possíveis riscos do ponto de vista jurídico e recomendar providências para salvaguardar o Gestor Público, a quem compete avaliar a real dimensão do risco e a necessidade de se adotar ou não a precaução recomendada.
6. Importante salientar que o exame dos autos restringe-se aos seus aspectos jurídicos, excluídos, portanto, aqueles de natureza técnica e/ou financeira. Em relação a estes, partiremos da premissa de que a autoridade assessorada municiou-se dos conhecimentos específicos imprescindíveis para a sua adequação às necessidades da Administração, observando os requisitos legalmente impostos.
7. De outro lado, cabe esclarecer que não é papel do órgão de assessoramento jurídico exercer a auditoria quanto à competência de cada agente público para a prática de atos administrativos. Incumbe, isto sim, a cada um destes, observar se os seus atos estão dentro do seu limite de competências.
8. Destaque-se que determinadas observações são feitas sem caráter vinculativo, mas em prol da segurança da própria autoridade assessorada, a quem compete, dentro da margem de discricionariedade que lhe é conferida pela lei, avaliar e acatar, ou não, tais ponderações. Não obstante, as questões relacionadas à legalidade serão apontadas para fins de sua correção. O seguimento do processo sem a observância destes apontamentos será de responsabilidade exclusiva do(s) agente(s) público(s) envolvido(s).
9. Assim, caberá tão somente a esta Consultoria, à luz do art. 131 da Constituição Federal de 1988 e do art. 11 da Lei Complementar nº 73, de 1993, prestar assessoramento sob o enfoque estritamente jurídico, não sendo competência deste órgão consultivo o exame da matéria em razão das motivações técnica e econômica, nem da oportunidade e conveniência, tampouco fazer juízo crítico sobre cálculos e avaliações, ou mesmo invadir o campo relacionado à necessidade material no âmbito do órgão assessorado.
10. Em consequência, esta análise limita-se a prestar orientação jurídica quanto a juridicidade do cancelamento ou anulação do aforamento da área de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo) localizada na Av. Atlântica, s/n - Encosta leste do Morro das Caieiras - Caieiras - Município de Guaratuba - PR, posto que não é atribuição do órgão de consultoria apreciar as questões de interesse e oportunidade do ato que se pretende praticar, visto que são próprias da esfera discricionária do Administrador, bem como aquelas relativas à matéria eminentemente técnica (não jurídica). Nesse sentido, o Enunciado nº 7 do Manual de Boas Práticas Consultivas da Advocacia-Geral da União dispõe que:
"O Órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência e oportunidade, sem prejuízo da possibilidade de emitir opinião ou fazer recomendações sobre tais questões, apontando tratar-se de juízo discricionário, se aplicável. Ademais, caso adentre em questão jurídica que possa ter reflexo significativo em aspecto técnico, deve apontar e esclarecer qual a situação jurídica existente que autoriza sua manifestação naquele ponto".
III - FUNDAMENTAÇÃO
11. Consoante definição contida no inciso I do art. 2º da Instrução Normativa SPU nº 03, de 9 de novembro de 2016 o aforamento ou enfiteuse consiste no
“ato pelo qual a União atribui a terceiros o domínio útil de imóvel de sua propriedade, obrigando-se este último (foreiro ou enfiteuta) ao pagamento de pensão anual, denominada foro, na porcentagem de 0,6% do valor do domínio pleno do terreno".
12. Quanto a sua extinção, estabelece o Decreto-Lei nº 9.760 de 05 de setembro de 1946, que dispõe sobre os bens imóveis da união e dá outras providências
"Art. 103. O aforamento extinguir-se-á: (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)
I - por inadimplemento de cláusula contratual; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
II - por acordo entre as partes; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
III - pela remissão do foro, nas zonas onde não mais subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
IV - pelo abandono do imóvel, caracterizado pela ocupação, por mais de 5 (cinco) anos, sem contestação, de assentamentos informais de baixa renda, retornando o domínio útil à União; ou (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
V - por interesse público, mediante prévia indenização. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
§ 1º Consistindo o inadimplemento de cláusula contratual no não-pagamento do foro durante três anos consecutivos, ou quatro anos intercalados, é facultado ao foreiro, sem prejuízo do disposto no art. 120, revigorar o aforamento mediante as condições que lhe forem impostas. (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)
§ 2º Na consolidação pela União do domínio pleno de terreno que haja concedido em aforamento, deduzir-se-á do valor do mesmo domínio a importância equivalente a 17% (dezessete por cento), correspondente ao valor do domínio direto. (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)"
13. Ao estabelecer os procedimentos administrativos para a inscrição de ocupação em terrenos e imóveis da União, definir procedimentos para a outorga, transferência, revogação e cancelamento, e estabelecer a definição de efetivo aproveitamento a IN 03/2016, quanto a extinção do aforamento, destacou que:
“Art. 108. O aforamento extinguir-se-á:
I - por inadimplemento de cláusula contratual;
II - por acordo entre as partes;
III - pela remição do foro, nas zonas onde não mais subsistamos motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico;
IV - pelo abandono do imóvel, caracterizado pela ocupação de assentamentos informais de baixa renda, por mais de 5 (cinco)anos, sem contestação, retornando o domínio útil à União; ou
V - por interesse público, mediante prévia indenização.
Art. 122. Autorizada, na forma do disposto no art. 103, a remissão do aforamento dos terrenos compreendidos em determinada zona, o S.P.U. notificará os foreiros, na forma do parágrafo único do art. 104, da autorização concedida.”
14. Contudo, a narrativa da SPU/PR, à luz do consignado na documentação constante do processo físico (SEI nº 18821580), parece atrair mais a discussão acerca da invalidação do ato administrativo do que da ocorrência de uma das hipóteses de extinção de aforamento.
15. O Contrato de Compra e Venda de Domínio Útil firmado entre a UNIÃO e o MUNICÍPIO DE GUARATUBA, foi celebrado aos 19/07/2000 (fls. 161/163 do processo físico, SEI nº 18821580), anterior, portanto, à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil .
16. Sob a disciplina do código civil anterior (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), assim eram definidos os bens públicos:
"Art. 65. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, ou aos Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
Art. 66. Os bens públicos são:
I. Os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças.
II. Os de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos aplicados a serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal.
III. Os dominicais, isto é, os que constituem o patrimônio da União, dos Estados, ou Municípios, como objeto de direito pessoal, ou real de cada uma dessas entidades.
Art. 67. Os bens de que trata o artigo antecedente só perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e forma que a lei prescrever.” (grifos e destaques)
17. Por seu turno, o anterior Código Florestal de 1965 (Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, revogada pela Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012), igualmente vigente à época do contrato de fls. 161/163, assim prescrevia:
"Art. 1° As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.
Parágrafo único. As ações ou omissões contrárias às disposições deste Código na utilização e exploração das florestas são consideradas uso nocivo da propriedade (art. 302, XI b, do Código de Processo Civil).
§ 1º As ações ou omissões contrárias às disposições deste Código na utilização e exploração das florestas e demais formas de vegetação são consideradas uso nocivo da propriedade, aplicando-se, para o caso, o procedimento sumário previsto no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil. (Renumerado do parágrafo único pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
§ 2º Omissis.
Art. 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
(...)
f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;
(...)
Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo. (Incluído pela Lei nº 7.803 de 18.7.1989)"
18. Observa-se da documentação dos autos do processo físico que quando o contrato foi celebrado, em nenhum momento da instrução processual foi mencionado, como agora o órgão de patrimônio registra na Nota Técnica SEI nº 51807/2021/ME, de 29/10-2021 (SEI nº 19832250), que o imóvel objeto do contrato caracterizava-se, nos termos da legislação vigente à época, como "área de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo)", portanto, inalienável.
19. Da cláusula referente ao objeto contratual descreve-se o imóvel com "terreno de marinha e acrescido, sem benfeitoria" (fl. 161), tendo constado do Laudo de Avaliação (fl. 32) produzido à época que a área pública consistia em :
" 2.0-Descricão do Imóvel:
Terreno urbano sem benfeitorias com 4.617,40 m2, matrícula n°. 42.613 do Registro de Imóveis da Cidade de Guaratuba/PR.
2.1-Características gerais do imóvel:
Lote urbano sem benfeitorias situado em acrescido de marinha com arruamento, água, energia elétrica, telefone, comércio, escola"
20. Portanto, mantida pela área técnica da SPU/PR a caracterização do imóvel como "área de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo)", resulta a necessidade de observância ao disposto no § 3º do art. 12 da Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, em sua redação anterior à atual redação dada pela Lei nº 13.139, de 2015:
"§ 3o Não serão objeto de aforamento os imóveis que, por sua natureza e em razão de norma especial, são ou venham a ser considerados indisponíveis e inalienáveis."
21. Como assevera o art. 53 da Lei nº 9.784 , de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, "a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos". No mesmo sentido das Súmulas do STF sobre a matéria:
"Súmula 346: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos."
"Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."
22. Quanto à dúvida acerca da "necessidade de indenização em caso de cancelamento do aforamento", por não se cuidar da hipótese de extinção de aforamento com base no inciso V do art. 103 do Decreto-Lei nº 9.760 de 05 de setembro de 1946, anteriormente transcrito, mas sim de invalidação de ato por ilegalidade, não há que se falar em direito à indenização prévia conforme previsto no DL, principalmente porque foi verificado que a área sob regime de aforamento encontra-se "sem aproveitamento atual", como registrado na Nota Técnica SEI nº 51807/2021/ME (SEI nº 19832250):
"Em 18/10/2021, foi emitido o documento Relatório de Fiscalização Individual - RFI 2760 (SEI nº 19315895), mencionando que a área de 4617,40 m², sob regime de aforamento, se constitui de faixa de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo), sem aproveitamento atual, contendo estruturas de contenção (pedras e gabião), de obra supostamente realizada pela Prefeitura Municipal de Guaratuba, e que parte da estrutura já sofreu ação das marés, estando danificada e/ou soterrada, com ferros enterrados, causando perigo aos banhistas."
23. Não se olvide que, segundo a jurisprudência do STJ, o prazo decadencial para que a administração promova a autotutela, previsto no art. 54 da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, aplica-se tanto aos atos nulos, quanto aos anuláveis. Veja-se:
Julgados:
AgInt no REsp 1749059/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/03/2019, DJe 28/05/2019; AgRg no AgRg no AREsp 676880/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/12/2018, DJe 19/12/2018; AgInt nos EDcl no REsp 1624449/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/03/2018, DJe 27/03/2018; AgInt no REsp 1248807/MS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/09/2016, DJe 07/10/2016; AgRg no REsp 1366119/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/05/2014, DJe 12/08/2014. (Vide Informativo de Jurisprudência N. 648) (Vide Legislação Aplicada Lei 9.784/1999 – Art. 54) [Disponível em: https://www.stj.jus.br/internet_docs/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%20132%20-%20Do%20Processo%20Administrativo.pdf]
24. No entanto, as situações flagrantemente inconstitucionais não se submetem ao prazo decadencial de 5 anos previsto no art. 54 da Lei n. 9.784/1999, não havendo que se falar em convalidação pelo mero decurso do tempo. Veja-se:
Julgados:
REsp 1799759/ES, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/04/2019, DJe 29/05/2019; MS 20033/DF, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/03/2019, DJe 01/04/2019; RMS 51398/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/03/2019, DJe 28/03/2019; REsp 1647347/RO, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/12/2018, DJe 17/12/2018; AgInt no REsp 1538992/ES, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/11/2018, DJe 13/11/2018; RMS 56774/PA, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/05/2018, DJe 29/05/2018. (Vide Jurisprudência em Teses N. 115 – TESE 4) (Vide Legislação Aplicada Lei 9.784/1999 – Art. 54) (Vide Repercussão Geral - TEMA 839) [Disponível em: https://www.stj.jus.br/internet_docs/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%20132%20-%20Do%20Processo%20Administrativo.pdf]
25. Por fim, decidindo a Autoridade assessorada pela invalidação do negócio jurídico, após certificar-se da configuração da ilegalidade consignada na manifestação de sua área técnica, assegurados a ampla defesa e o contraditório aos interessados, deverá observar o que recomenda o DECRETO Nº 9.830, DE 10 DE JUNHO DE 2019, que regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro:
"DA DECISÃO
Motivação e decisão
Art. 2º A decisão será motivada com a contextualização dos fatos, quando cabível, e com a indicação dos fundamentos de mérito e jurídicos.
§ 1º A motivação da decisão conterá os seus fundamentos e apresentará a congruência entre as normas e os fatos que a embasaram, de forma argumentativa.
§ 2º A motivação indicará as normas, a interpretação jurídica, a jurisprudência ou a doutrina que a embasaram.
§ 3º A motivação poderá ser constituída por declaração de concordância com o conteúdo de notas técnicas, pareceres, informações, decisões ou propostas que precederam a decisão.
Motivação e decisão na invalidação
Art. 4º A decisão que decretar invalidação de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos observará o disposto no art. 2º e indicará, de modo expresso, as suas consequências jurídicas e administrativas.
§ 1º A consideração das consequências jurídicas e administrativas é limitada aos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos que se espera do decisor no exercício diligente de sua atuação.
§ 2º A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta, consideradas as possíveis alternativas e observados os critérios de proporcionalidade e de razoabilidade.
§ 3º Quando cabível, a decisão a que se refere o caput indicará, na modulação de seus efeitos, as condições para que a regularização ocorra de forma proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais.
§ 4º Na declaração de invalidade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, o decisor poderá, consideradas as consequências jurídicas e administrativas da decisão para a administração pública e para o administrado:
I - restringir os efeitos da declaração; ou
II - decidir que sua eficácia se iniciará em momento posteriormente definido.
§ 5º A modulação dos efeitos da decisão buscará a mitigação dos ônus ou das perdas dos administrados ou da administração pública que sejam anormais ou excessivos em função das peculiaridades do caso."
IV - CONCLUSÃO
26. Em face do exposto, abstraídos os aspectos técnicos, operacionais, os relativos à disponibilidade orçamentária e execução financeira e os referentes à conveniência e oportunidade, os quais não se sujeitam à competência do órgão de consultoria e assessoramento jurídico, opina-se pela possibilidade jurídica de invalidação do ato de aforamento concedido, desde que comprovado tecnicamente a caracterização do imóvel como "área de restinga e faixa de areia (área de uso comum do povo)", em procedimento administrativo próprio a garantir a ampla defesa e o contraditório, seguindo-se de decisão motivada, na forma recomendada pelo Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019.
Brasília, 4 de dezembro de 2021.
LEANDRA MARIA ROCHA MOULAZ
ADVOGADA DA UNIÃO - OAB / ES 7.792
Mat. 13326678
Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 109800062199849 e da chave de acesso 46bce94e