ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
DEPARTAMENTO DE COORDENAÇÃO E ORIENTAÇÃO DE ÓRGÃOS JURÍDICOS
DESPACHO n. 00616/2021/DECOR/CGU/AGU
NUP: 59000.021950/2021-53
INTERESSADOS: Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Desenvolvimento Regional
ASSUNTOS: Art. 84, § 2º, da LDO 2021
Exmo. Senhor Consultor-Geral da União,
Aprovo o Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU da Câmara Nacional de Convênios e Instrumentos Congêneres da Consultoria-Geral da União, com fundamento no regular exercício das incumbências de que cuida o art. 28, inciso I, e parágrafo único do art. 30, ambos da Portaria Normativa AGU nº 24, de 2021[1].
Com efeito, extrai-se da instrução destes autos que resta caracterizada uma divergência de ordem jurídica a respeito da incidência, ou da abrangência, do que dispõe o art. 84, § 2º, da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 – Lei nº 14.116, de 2020, com a redação conferida pela Lei nº 14.143, de 2021, segundo o qual: “A emissão de nota de empenho, a realização das transferências de recursos e a assinatura dos instrumentos a que se refere o caput, bem como a doação de bens, materiais e insumos, não dependerão da situação de adimplência do Município de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes, identificada em cadastros ou sistemas de informações financeiras, contábeis e fiscais”.
A celeuma se refere, em síntese e essencialmente, à identificação da natureza da espécie legislativa que deve disciplinar os requisitos e as hipóteses de dispensa de adimplência de condições para repasse de transferências voluntárias, uma vez que, após definido se a temática é ou não objeto reservado à lei complementar, é possível delimitar com precisão a incidência ou abrangência das exceções de adimplência que são previstas no patamar da legislação ordinária.
Na espécie, como já consignado, o § 2º do art. 84 da LDO 2021 dispensa que os municípios que tenham até cinquenta mil habitantes demonstrem a adimplência de requisitos previstos “em cadastros ou sistemas de informações financeiras, contábeis e fiscais” para fins de repasse de transferências voluntárias, assim, cabe uniformizar se esta exceção prevista em sede de legislação ordinária pode dispensar o cumprimento de requisitos que estão dispostos em lei complementar e na Constituição Federal.
Em reforço às robustas e bem lançadas razões do Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU, ora acolhido em sua integralidade, cumpre, de logo, concluir que a Constituição Federal não reservou explicitamente à lei complementar o estabelecimento de requisitos, e das correspondentes exceções, para fins de formalização de transferências voluntárias.
Desta maneira as leis ordinárias, além de disciplinarem requisitos, também podem excepcionar o cumprimento de condições previstas genuinamente em sede de lei complementar e de outras leis de patamar ordinário, uma vez que (a) neste específico campo temático não há estrita reserva constitucional para lei complementar; e (b) não há hierarquia entre leis ordinárias e leis complementares, de forma que ambas extraem seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal.
Prevalece na doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que as leis complementares se distinguem das leis ordinárias em razão do quórum exigido para sua aprovação (maioria absoluta do Parlamento – art. 69 da CF/1988), e em razão do campo temático de incidência, já que são reservados à lei complementar apenas os assuntos que a Constituição explicitamente determina. Ou seja, no silêncio da Constituição, incluindo as hipóteses em que a Carta comanda a disciplina do tema “nos termos da lei”, “na forma da lei”, ou expressões homólogas, a matéria pode ser tratada em sede de leis ordinárias.
Desta compreensão se extrai necessariamente que não há hierarquia entre leis ordinárias e leis complementares, mas apenas campo de incidência material que são distintos, uma vez que para determinados assuntos a Constituição foi expressa ao determinar que a sua disciplina deve se efetivar mediante edição de lei complementar, que demanda quórum qualificado para aprovação. Desta premissa relacionada à ausência de hierarquia entre as leis ordinárias e complementares também se extrai que o fundamento de validade das leis ordinárias não decorre de uma lei complementar, mas diretamente da Constituição Federal.
Em igual sentido, observa-se que estas premissas basilares de distinção entre as leis ordinárias e as leis complementares revelam que uma lei ordinária será inconstitucional, por vício formal, caso discipline assunto reservado pela Constituição para a lei complementar.
Por outro lado, uma lei complementar que discipline matéria que está fora do campo temático que lhe foi reservado pela Constituição, a despeito de não ser considerada inconstitucional, possui natureza material de lei ordinária, e assim por outras leis formalmente ordinárias pode ser alterada. Esta lei complementar que porventura discipline tema estranho àqueles que lhe foram expressamente reservados pela Constituição também não revogará lei ordinária que lhe seja anterior e especial, na forma da teoria da resolução das aparentes antinomias entre as normas que compõem o ordenamento jurídico (art. 2º, § 2º, da LINDB[2]).
Para melhor compreensão destes pilares conceituais que particularizam as leis ordinárias e as leis complementares, segue doutrina constitucionalista de escol, extraída da obra “Curso de Direito Constitucional”, de autoria de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (Editora Saraiva. 15ª Edição. São Paulo 2020, p. 1020/1021), segundo a qual estão reservadas à lei complementar apenas as matérias em que a Constituição “de modo expresso e inequívoco” determinou, em tudo o mais corroborando o entendimento ora exposto:
“A lei complementar se peculiariza e se define por dois elementos básicos. Ela exige quórum de maioria absoluta para ser aprovada (art. 69 da CF) e o seu domínio normativo ‘apenas se estende àquelas situações para as quais a própria Constituição exigiu – de modo expresso e inequívoco – a edição dessa qualificada espécie de caráter legislativo’.
Onde, portanto, o constituinte não cobrou a regulação de matéria por meio de lei complementar, há assunto para lei ordinária.
Conquanto cientistas de nomeada entendam haver hierarquia entre lei ordinária e lei complementar, melhores razões parecem assistir a Michel Temer, quando aponta que ‘não há hierarquia alguma entre lei complementar e lei ordinária. O que há são âmbitos materiais diversos atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas’.
A lei ordinária que destoa da lei complementar é inconstitucional por invadir âmbito legislativo que lhe é alheio, e não por ferir o princípio da hierarquia das leis. Por outro lado, não será inconstitucional a lei ordinária que dispuser em sentido diverso do que estatui um dispositivo de lei complementar que não trata de assunto próprio de lei complementar. O dispositivo da lei complementar, no caso, vale como lei ordinária e pode-se ver revogado por regra inserida em lei ordinária. Nesse sentido é a jurisprudência do STF.”
Em sede de jurisprudência, seguem dois elucidativos precedentes do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria:
E M E N T A - ADIN - LEI N. 8.443/92 - MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO AO TCU - INSTITUIÇÃO QUE NÃO INTEGRA O MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO - TAXATIVIDADE DO ROL INSCRITO NO ART. 128, I, DA CONSTITUIÇÃO - VINCULAÇÃO ADMINISTRATIVA A CORTE DE CONTAS - COMPETÊNCIA DO TCU PARA FAZER INSTAURAR O PROCESSO LEGISLATIVO CONCERNENTE A ESTRUTURAÇÃO ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE PERANTE ELE ATUA (CF, ART. 73, CAPUT, IN FINE) - MATÉRIA SUJEITA AO DOMÍNIO NORMATIVO DA LEGISLAÇÃO ORDINARIA - ENUMERAÇÃO EXAUSTIVA DAS HIPÓTESES CONSTITUCIONAIS DE REGRAMENTO MEDIANTE LEI COMPLEMENTAR - INTELIGENCIA DA NORMA INSCRITA NO ART. 130 DA CONSTITUIÇÃO - AÇÃO DIRETA IMPROCEDENTE.
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- Só cabe lei complementar, no sistema de direito positivo brasileiro, quando formalmente reclamada a sua edição por norma constitucional explicita. A especificidade do Ministério Público que atua perante o TCU, e cuja existência se projeta num domínio institucional absolutamente diverso daquele em que se insere o Ministério Público da União, faz com que a regulação de sua organização, a discriminação de suas atribuições e a definição de seu estatuto sejam passiveis de veiculação mediante simples lei ordinaria, eis que a edição de lei complementar e reclamada, no que concerne ao Parquet, tão-somente para a disciplinação normativa do Ministério Público comum (CF, art. 128, par. 5.).
...
(ADI 789, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/1994, DJ 19-12-1994 PP-35180 EMENT VOL-01772-02 PP-00236)
EMENTA: I. Recurso extraordinário e recurso especial: interposição simultânea: inocorrência, na espécie, de perda de objeto ou do interesse recursal do recurso extraordinário da entidade sindical: apesar de favorável a decisão do Superior Tribunal de Justiça no recurso especial, não transitou em julgado e é objeto de RE da parte contrária. (...) III. PIS/COFINS: revogação pela L. 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão pela LC 70/91. 1. A norma revogada - embora inserida formalmente em lei complementar - concedia isenção de tributo federal e, portanto, submetia-se à disposição de lei federal ordinária, que outra lei ordinária da União, validamente, poderia revogar, como efetivamente revogou. 2. Não há violação do princípio da hierarquia das leis - rectius, da reserva constitucional de lei complementar - cujo respeito exige seja observado o âmbito material reservado pela Constituição às leis complementares. 3. Nesse sentido, a jurisprudência sedimentada do Tribunal, na trilha da decisão da ADC 1, 01.12.93, Moreira Alves, RTJ 156/721, e também pacificada na doutrina. (RE 419629, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 23/05/2006, DJ 30-06-2006 PP-00016 EMENT VOL-02239-04 PP-00658 RTJ VOL-00201-01 PP-00360 RDDT n. 132, 2006, p. 220-221)
O STF já consolidou, pois, que não há hierarquia entre diplomas de natureza ordinária e complementar, diferenciando-se apenas pela matéria a ser tratada e quórum de aprovação. Já se pacificou, inclusive, que leis complementares materialmente ordinárias podem ser revogadas ou alteradas por lei formalmente ordinária (RE 377.457, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 19/12/2008).
Estas as premissas fundamentais para o escorreito deslinde da divergência e uniformização da jurisprudência administrativa, a quais determinam a adoção das conclusões postas no Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU da Câmara Nacional de Convênios e Instrumentos Congêneres da Consultoria-Geral da União.
Ora, é sabido e inconteste que vigoram atualmente uma série de requisitos ou condições para o repasse de transferências voluntárias que estão fixados em lei de patamar ordinário, e assim, caso prevalecesse a tese de que a disciplina da matéria é exclusiva de lei complementar, implicaria, sob pena de incoerência lógico-sistemática insustentável, o entendimento no sentido de que estas leis ordinárias deveriam ser declaradas inconstitucionais e descumpridas, por invadirem campo temático reservado pela Constituição Federal à lei complementar.
Merece prevalecer, pois, a interpretação que resguarda a presunção de constitucionalidade das leis e a possibilidade jurídica de serem estabelecidos critérios e exigências por meio de legislação ordinária para fins de repasse de transferências voluntárias, como já se faz, por exemplo, por meio do art. 92 da Lei nº 13.303, de 2016; do art. 28 da Lei nº 11.079, de 2004; do art. 1º da Lei nº 6.454, de 1977, com a redação conferida pela Lei nº 12.781, de 2013 (vide art. 22, incisos XIX, XXII e XXVIII da Portaria Interministerial nº 424, de 2016, com a redação conferida pela Portaria Interministerial nº 414, de 2020); do art. 116 da Lei nº 8.666, de 1993; do art. 73, inciso VI, alínea “a”, da Lei nº 9.504, de 1997; e do art. 26-A, § 5º, 6º e 10 da Lei nº 10.522, de 2002 (redação conferida pela Lei nº 12.810, de 2013).
Por corolário lógico peremptório e necessariamente decorrente, também deve ser admitido que a legislação ordinária fixe exceções, ou seja, estabeleça hipóteses em que o repasse de transferências voluntárias pode dispensar a adimplência de requisitos registrados nos cadastros federais, a exemplo do art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002 (ações sociais ou ações em faixa de fronteira); dos §§ 8º e 9º do art. 26-A da Lei nº 10.522, de 2002 (redação conferida pela Lei nº 12.810, de 2013 - vide § 8º do art. 59 da Portaria Interministerial nº 424, de 2016); do art. 13 da Lei nº 13.756, de 2018 (segurança pública, a execução da lei penal e a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio); e do § 2º do art. 84 da LDO 2021.
Não se ignora que a Lei de Responsabilidade Fiscal fixa, no seu art. 4º, inciso I, alínea “f”, e no § 1º do seu art. 25, que a lei de diretrizes orçamentárias disporá sobre “demais condições e exigências” para transferências voluntárias. Não obstante, e respeitosamente, entende-se que referenciadas disposições, na verdade, confirmam e corroboram que o estabelecimento de condições e requisitos para o repasse de transferências voluntárias não é matéria reservada a lei complementar, pois, conforme se extrai das premissas conceituais já postas neste Despacho e no Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU, não há hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, de maneira que a validade destas se extrai diretamente da Constituição, e não de outras leis complementares.
Em outros termos, caso a matéria – requisitos e exceções para transferências voluntárias - fosse reservada pela Constituição Federal à lei complementar (o que se admite apenas para fins de argumentação dialética), o art. 4º, inciso I, alínea “f”, e o § 1º do seu art. 25, da Lei de Responsabilidade Fiscal seriam manifestamente inconstitucionais, pois não seria devido ao legislador complementar subdelegar para o legislador ordinário matéria que o Poder Constituinte lhe reservou expressa e estritamente.
Ademais, caso houvesse reserva de lei complementar para disciplina de requisitos e condições para o repasse de transferências voluntárias, as leis ordinárias que tratam do tema (a exemplo das disposições citadas no parágrafo 16 deste Despacho) seriam inconstitucionais, por vício de ordem formal, por disciplinarem campo temático exclusivo do legislador complementar.
Ora, se a matéria fosse reservada à lei complementar, não se poderia admitir que lei ordinária disciplinasse o tema, independentemente do teor da disposição legal, incluindo a disciplina de requisitos “adicionais”, ou seja, caso as condições para transferências voluntárias fossem campo materialmente reservado à legislação complementar, as leis ordinárias absolutamente nada poderiam dispor a respeito.
Portanto, admitir, concomitantemente, que a matéria em estudo é reservada à lei complementar, mas que a legislação ordinária poderia acrescer condições adicionais, inclusive porque a legislação complementar assim teria autorizado (art. 4º, inciso I, alínea “f”, e no § 1º do seu art. 25 da LRF), destoa dos pilares conceituais doutrinários e jurisprudenciais que bem delimitam e particularizam as leis ordinárias e as leis complementares, e representaria, na verdade, admitir que o legislador complementar poderia subdelegar ao legislador ordinário matéria que a Constituição lhe reservou com exclusividade, e também representaria admitir a existência de hierarquia entre as leis complementares e ordinárias, e que estas não se fundariam diretamente na Constituição, mas na lei complementar que lhe teria dado suporte.
Respeitosamente, pois, não se concebe, sem afronta à organicidade e coerência que devem necessariamente inspirar a exegese da ordem jurídica, que se permita que os requisitos e exceções para as transferências voluntárias sejam matérias reservadas à lei complementar e igualmente se permita que leis ordinárias fixem apenas condições adicionais, mas não possam disciplinar hipóteses de dispensa de adimplência, uma vez que, se houvesse reserva de lei complementar na espécie, a lei ordinária que tratasse do tema, seja para delimitar condições ou estipular exceções, padeceria de manifesto vício constitucional.
Por pertinente, cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal, no recente julgamento da ADI 2238, afastou a inconstitucionalidade do art. 68 da LRF, o qual cria o Fundo do Regime Geral de Previdência Social com a finalidade de prover recursos para o pagamento dos benefícios. Sustentavam os autores da ação que referenciado dispositivo da LRF seria inconstitucional porque, dentre outras razões, a criação de fundos seria matéria própria de lei ordinária. Ao apreciar a questão, reconheceu a Suprema Corte que, de fato, a criação de fundos não é matéria reservada à lei complementar, bem como que o art. 250 da Constituição não exigiu a disciplina da matéria por lei complementar, não obstante o art. 68 da LRF foi declarado constitucional pelo STF, pois não há vício caso um assunto passível de disciplina por lei ordinária seja tratado em sede de lei complementar.
Por pertinente ao exame do presente caso, segue elucidativo trecho do voto do eminente Ministro Relator Alexandre de Moraes, o qual traz fundamentos que ficam incorporados às razões deste Despacho:
No último tópico da ADI 2238, os requerentes investem contra o caput do art. 68 da LRF, que cria o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, sob a justificativa de ser ele conflitante com o art. 250 da CF.
O que se contesta, aqui, são dois pontos: (i) a impossibilidade de que o fundo a que se refere o art. 250 da CF seja integrado por receitas de contribuições sociais ou provenientes do orçamento (LRF, art. 68, § 1º, III), já que esses recursos não representam qualquer adição à arrecadação previdenciária; e (ii) o fato de o art. 250 da CF não ter feito exigência de criação do respectivo fundo por lei complementar, o que impediria a disciplina via lei ordinária. Nas palavras da inicial: “Ao tratar como Lei complementar matéria que não está expressamente destinada a ser tratada assim, o legislador infraconstitucional frauda a vontade do legislador constituinte e vicia a constitucionalidade do dispositivo que trata do tema”.
Nenhum dos fundamentos apresentados é capaz de invalidar o conteúdo da LRF. No que se refere aos recursos constitutivos do fundo em questão, é importante observar que o art. 250 da CF não faz restrição quanto à proveniência deles, apenas mencionando que devem eles se acrescer às fontes já provenientes da arrecadação. E embora o inciso III do § 1º do art. 68 da LRF considere que as contribuições previstas no art. 195, I, “a”, e II, da CF também sejam direcionadas ao fundo, os demais incisos do § 1º do art. 68 elencam diversas fontes que se agregariam às de origem tributária. A junção, num mesmo fundo, das diversas fontes de financiamento, não contraria o preceito constitucional.
A tese seguinte, de impossibilidade de tratamento em lei complementar de tema que não seja expressamente afeto a essa espécie legislativa, não encontra qualquer respaldo na jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pelo contrário, esta CORTE já afirmou, em diversas oportunidades, não haver diferença de hierarquia entre diplomas de natureza ordinária e complementar, diferenciando-se apenas pela matéria a ser tratada. Já se pacificou que leis complementares materialmente ordinárias podem ser, inclusive, revogadas por legislação ordinária (cf., por todos, o RE 377.457, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 19/12/2008).
Não se exige lei complementar para a constituição do fundo em análise, porém seu quorum qualificado de aprovação é mais do que o suficiente para garantir a vigência e eficácia do dispositivo legal impugnado.
Com efeito, colhe-se da doutrina especializada que o fundo público, que é “o conjunto de recursos financeiros, especialmente formado e individualizado, destinado a desenvolver um programa, uma ação ou uma atividade pública específica”, caracteriza-se pela “organização financeira referente à afetação de certas receitas a determinadas despesas públicas previstas em lei” (MARCUS ABRAHAM. Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada . Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 294).
Da Lei Geral sobre Finanças Públicas se extrai que constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços (Lei 4.320/1964, art. 71).
É importante mencionar também que não se exige lei complementar para serem constituídos os fundos previstos no art. 249 da Constituição Federal, que antecede o artigo invocado como parâmetro de controle no presente caso. Tal norma tem o seguinte conteúdo:
(...)
De todo modo, não é inconstitucional a edição de lei formalmente complementar em assunto materialmente de lei ordinária (RTJ 156/721, Rel. Min. MOREIRA ALVES; AI 457.926, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJ de 6/9/2006).
Portanto, a criação desse fundo por lei complementar não desacata qualquer parâmetro constitucional, não devendo ser acolhida a argumentação apresentada contra o art. 68 da LRF.
Diante do exposto, VOTO pela IMPROCEDÊNCIA da ADI 2238, em relação ao art. 68, caput, da LRF.
Referenciado julgamento, portanto, além de confirmar as premissas conceituais das leis ordinárias e das leis complementares expostas no Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU e neste Despacho, bem revela que a Suprema Corte já reconheceu, em decisão de caráter vinculante (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2238), que há na Lei de Responsabilidade Fiscal disposição que, materialmente, possui natureza de lei ordinária, e que esta natureza ordinária em absolutamente nada abala sua constitucionalidade.
Veja-se, ainda, e a título de exemplo, a exigência relacionada à regularidade da prestação de contas de repasses anteriores para fins de novas transferências voluntárias. Referenciado requisito consta no art. 25, inciso IV, alínea “a”, da LRF, e no art. 26-A, § 5º, 6º e 10 da Lei nº 10.522, de 2002, com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 12.810, de 2013.
A disciplina deste requisito, pois, está posta em sede de lei complementar e de lei ordinária (que não é uma lei de diretrizes orçamentárias). Desta maneira, ou a disciplina do art. 26-A e seus parágrafos da Lei nº 10,522, de 2002, é inconstitucional por invadir esfera temática própria do legislador complementar, o que apenas se admite (reitere-se) para fins de argumentação dialética, ou a disciplina das condições, exigências e exceções de adimplência para repasse de transferências voluntárias não é reservada a lei complementar, tese que deve prevalecer, uma vez que: (a) o Poder Constituinte não previu expressa e inequivocamente a disciplina do assunto por lei complementar; e (b) a própria Lei Complementar nº 101, de 2000, é expressa ao determinar que o tema não é materialmente reservado à legislação complementar ao admitir que o legislador ordinário também discipline condições adicionais para a formalização dos repasses.
Não se olvide, outrossim, que os §§ 7º, 8º e 9º do art. 26-A da Lei nº 10.522, de 2002, disciplinam hipótese em que o requisito relacionado à regularidade de prestação de contas de convênios e instrumentos congêneres anteriormente pactuados poderá ser dispensado, notadamente nos casos em que o gestor sucessor se encontra impossibilitado de prestar contas, apresenta as devidas justificativas e adota as providências administrativas necessárias para resguardar o erário.
A respeito, diante da jurisprudência consolidada sobre a matéria (Súmula STJ nº 615), a Advocacia-Geral da União possui inclusive súmula (Súmula AGU nº 46 - disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/sumulas-da-advocacia-geral-da-uniao-300416022), a qual, apesar de explicitamente não se referir ao tema objeto desta manifestação, bem revela que o assunto não se encontra reservado constitucionalmente ao legislador complementar, uma vez que a lei ordinária fixou condições que, se devidamente demonstradas, podem dispensar o cumprimento relacionado à adimplência da prestação de contas de convênios anteriores, um requisito posto em sede de lei complementar (formalmente) e em lei ordinária.
Resta, pois, devidamente demonstrado que a disciplina de condições e requisitos para transferências voluntárias não é matéria reservada pela Constituição Federal de modo expresso e inequívoco à lei complementar, não havendo, por conseguinte, impedimento constitucional para que o legislador ordinário fixe condições e estabeleça exceções, ou hipóteses em que a adimplência de determinados requisitos pode ser dispensada.
Acerca das exceções, observa-se que não há apenas o § 3º do art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (saúde, educação e assistência social), pois vigoram atualmente, conforme já consignado no parágrafo 17 deste Despacho, hipóteses em que o legislador ordinário também disciplinou situações em que as condições de adimplência podem ser dispensadas, como, a título de exemplo, reitere-se referência ao art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002 (ações sociais ou ações em faixa de fronteira); aos §§ 7º, 8º e 9º do art. 26-A da Lei nº 10.522, de 2002 (redação conferida pela Lei nº 12.810, de 2013 - vide § 8º do art. 59 da Portaria Interministerial nº 424, de 2016); ao art. 13 da Lei nº 13.756, de 2018 (segurança pública, a execução da lei penal e a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio); e ao § 2º do art. 84 da LDO 2021, em que o repasse de transferências voluntárias pode dispensar o cumprimento de determinadas regularidades cadastrais.
Em tema homólogo, relacionado ao art. 26 da Lei nº 10.522, de 2002, então tratado no art. 26 da Medida Provisória nº 1.973-65, publicada no Diário Oficial de 29 de agosto de 2000, foi lançado o Parecer GM-27, vinculante para toda a Administração porque aprovado pelo Exmo. Senhor Presidente da República e publicado no DOU (disponível em: https://antigo.agu.gov.br/page/atos/detalhe/idato/8418). No caso, a divergência dizia respeito à abrangência e delimitação do termo “ações sociais”, não prevalecendo a tese de que estas "ações sociais" seriam apenas aquelas previstas no art. 25, § 3º, da LRF (saúde, educação, e assistência social), compreendendo os direitos sociais previstos na Constituição:
7. Acham-se, então, redigidos nos seguintes termos os adminículos fornecidos pelo parecerista do Ministério da Previdência e Assistência Social, abaixo transcritos na sua essencialidade:
....
24. A interpretação sistemática, compulsando normas da Lei nº 9.811, de 1999, e da Lei Complementar nº 101, de 2000, no período em que tiverem vigência e eficácia coetâneas à reedição da norma interpretada, opera a consecução dos limites a que se deve submeter o art. 26, da Medida Provisória nº 1973.
Ante o exposto, opinamos no sentido de que a expressão ações sociais a que se refere o art. 26 da Medida Provisória nº 1.973-63, e tão-somente no contexto em que foi redigida, deve ser interpretada de forma a limitar-se a suspensão das restrições, a que se refere, a ações no âmbito da educação, saúde e assistência social."
8. Feito o relatório, é de se oferecer deslinde à questão em tela.
...
16. Tem-se, então, como absolutamente correta a afirmação contida no Parecer Conjur/MI nº 141/00, de 12 de abril deste ano, segundo a qual há duas balizas delimitando o conceito de ações sociais. De um lado, a ação governamental deve objetivar o atendimento de um direito social; de outro, tal atividade deve ter caráter obrigatório para o Poder Público. Este segundo requisito explica a natureza excepcional da norma em comento: a União não poderia deixar de executar as ações em benefício dos cidadãos titulares dos direitos sociais apenas porque o Estado, o Distrito Federal e o Município onde eles residem não cumpriram as obrigações assumidas anteriormente. Isso seria punir os cidadãos pela desídia de administradores, postura que certamente não encontra respaldo constitucional.
17. Não pairam dúvidas, já corroborando com o asserto da afirmação acima expendida, que as ações sociais mencionadas na Medida Provisória em comento são aquelas ínsitas no Título VII, da Constituição da República (arts. 193 usque 217) referente à ordem social , nesta abrigando, principalmente, as questões relativas à seguridade social , à saúde , à previdência social , à assistência social , à educação , à cultura e ao desporto .
18. Desse modo, cabe à União , de moto-próprio, não criar óbices a que os demais entes federados desenvolvam seus planos e programas ligados às sobreditas áreas de sua atuação por motivo de inadimplência para com os dois sistemas de registro de dados, nomeados no caput do artigo 26 da Medida Provisória.
19. A ordem social , na qual se abrigam todas as ações sociais , procura estabelecer na vigente Carta Política todas as políticas governamentais concernentes à vida do cidadão em sociedade. Um Estado (lato sensu) que não dispuser de planos ou de programas relacionados com as ações sociais , terá sua existência ameaçada, pois que o equilíbrio social é, indubitavelmente, o fundamento da democracia, cujos objetivos precípuos se situam na promoção do bem estar-social e da justiça social.
20. A Medida Provisória nº 1.973-65 , veio, inequivocamente, na parte alusiva à suspensão da restrição imposta à transferência de recursos federais aos Estados, Distrito Federal e Municípios, destinados á execução de ações sociais e ações em faixa de fronteira , beneficiar de modo especial essas atividades descentralizadas, objetivando, com tal política, assegurar aos cidadãos os direitos que, constitucionalmente, são a eles deferidos.
21. O Estado Social Moderno, em cuja tipificação formal se inclui o Estado brasileiro , deve atender à totalidade dos membros de uma sociedade, quaisquer que sejam suas condições, daí o dispositivo (art. 26) incluído na Medida Provisória em análise.
22. Conclui-se, portanto, que as ações sociais, de que trata a Medida Provisória nº 1.973-65 , de 28 de agosto passado, são aquelas exercidas com o objetivo de se conseguir o bem-estar e a justiça sociais, em especial nas áreas da seguridade social, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, da cultura, e do desporto, e nos seus desdobramentos, podendo, desse modo, iniciarem ou prosseguirem as transferências de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios destinados àquelas ações porventura interrompidas em razão dos entendimentos contrários no que tange à sua conceituação, logicamente, procedendo-se uma análise em cada caso ocorrente.
Especificamente a respeito o § 2º do art. 84 da LDO de 2021, observa-se que a disposição foi vetada em duas oportunidades pelo Exmo. Senhor Presidente da República, seja na redação originária da LDO 2021 – Lei nº 14.116, seja na oportunidade em que se editou a Lei nº 14.143, de 2021, não obstante o Congresso Nacional não acolheu o veto e o texto foi promulgado, na forma aprovada pelo Parlamento.
Na mensagem nº 154, de 21 de abril de 2021 (disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-154.htm), foram expostas as razões para o veto do § 2º do art. 84 da LDO 2021, que foi fundado em motivos de interesse público, relacionados ao estímulo da sadia gestão fiscal dos entes subnacionais, como também por razões de ordem constitucional.
Tais razões, contudo, não foram acolhidas pelo Congresso Nacional. É certo que as razões de veto não necessariamente determinam a exegese da norma, não obstante, observa-se que, no ordenamento jurídico nacional prevalece o preceito da harmonia e independência entre os Poderes, cumprindo ao Poder Executivo, como função institucional típica, aplicar e tornar concretos os preceitos normativos abstratamente postos na legislação, sendo absolutamente subserviente e submisso à lei e à Constituição.
Portanto, especificamente em relação ao § 2º do art. 84 da LDO de 2021, a Advocacia-Geral da União, como Função Essencial à Justiça, e instituição de Estado que se conforma ao sistema de freios e contrapesos, deve zelar pela equilibrada relação institucional entre os Poderes da República, possuindo, assim, a relevantíssima missão de orientar juridicamente a escorreita aplicação da lei pelo Poder Executivo, e nesta missão cabe-lhe zelar para que, na prática, a exegese a ser adotada na aplicação da norma não represente uma afronta às funções que são típicas e próprias dos demais Poderes.
Na espécie, pois, as razões de veto não foram acatadas pelo Congresso Nacional, no regular exercício das competências e prerrogativas constitucionais típicas que lhe são conferidas pelo art. 57, § 3º, inciso IV, e art. 66, §§ 4º a 6º, todos da Constituição. Neste sentido, a Advocacia-Geral da União, como uma das Funções Essenciais à Justiça e, assim, como uma das instituições de Estado responsáveis pela preservação da harmonia e da independência entre os Poderes da República, não deve orientar a aplicação da lei pelo Poder Executivo em sentido que possa representar, na prática, uma ofensa às atribuições constitucionais do Congresso Nacional, ou um desafio às prerrogativas do Parlamento.
Por conseguinte, no regular exercício das competências de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo que lhe foram consagradas pelo art. 131 da Constituição Federal, não pode a AGU, na espécie, ignorar que o Congresso Nacional, no regular exercício das prerrogativas constitucionais típicas que lhe são próprias, e que compõem o sistema de check and balances, fez promulgar o § 2º do art. 84 da LDO 2021. Desta maneira, o § 2º do art. 84 da LDO 2021 possui presunção de constitucionalidade, apenas o Poder Judiciário, caso acionado, poderá declará-lo inconstitucional. Ao Poder Executivo, assessorado pela Advocacia-Geral da União, cumpre atribuir-lhe exegese e aplicação que lhe assegure efetiva concretude, respeitando as prerrogativas institucionais do Congresso Nacional e o sistema de freios e contrapesos, preceito que, de tão caro à Democracia pátria, foi elevado ao patamar de cláusula pétrea constitucional (art. 60, § 4º, inciso III, da CF).
O sistema de freios e contrapesos que rege a relação institucional entre os Poderes, portanto, limita e conforma a atuação do Poder Executivo, e determina que, no exercício de suas funções administrativas típicas, aplique o orçamento em absoluta submissão à lei e à Constituição.
A respeito das condições para o repasse de transferências voluntárias de que cuida a Constituição Federal, a exemplo do art. 167, inciso XIII (organização do regime próprio de previdência social), do art. 169, § 2º (limites de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista) e do art. 97, § 10, do ADCT (regularidade no pagamento de precatórios judiciais), é certo que, pelo preceito da hierarquia das normas, apenas o Poder Constituinte poderá fixar hipóteses de exceção, em que a demonstração do cumprimento dos referenciados requisitos podem ser dispensados para fins de repasse de transferências voluntárias.
Não obstante, é certo que há determinadas obrigações e regras de gestão fiscal que estão postas na CF/1988, mas a própria Carta per si não condiciona seu cumprimento ao repasse de transferências voluntárias, e assim tais requisitos foram alçados à condição para o repasse de recursos por norma de patamar infraconstitucional. Nestes específicos casos, a legislação infraconstitucional que estipula exceções de adimplência para o repasse de transferência voluntária alcança tais hipóteses, e não ofende a autoridade constitucional, uma vez que foi outra lei infraconstitucional, e não a Constituição per si, que qualificou o cumprimento do dever constitucional como condição (de patamar legal) para a realização de transferências voluntárias.
Cite-se, por exemplo, o cumprimento do dever constitucional de aplicação mínima em saúde e educação, de que cuida, respectivamente os arts. 198 e 212 da Constituição, e o art. 110 do ADCT, os quais não foram postos como condição para o repasse de transferências voluntárias pela Constituição Federal.
Ora, consoante já exposto no Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU, nas hipóteses em que o Constituinte entendeu pertinente condicionar o repasse de recursos ao cumprimento de determinadas normas de gestão fiscal o fez de forma inequívoca, clara, explícita, como se deu, por exemplo, no do art. 167, inciso XIII, art. 169, § 2º, e no art. 97, § 10, do ADCT, já referenciados neste Despacho.
Desta maneira, considerando que pode o legislador infraconstitucional disciplinar as condições, os requisitos, bem como as hipóteses de exceção ou dispensa de adimplência, não há afronta a Constituição caso o legislador infraconstitucional condicione o repasse de transferências ao cumprimento de determinadas obrigações previstas na Constituição, no entanto, nas estritas hipóteses em que o Constituinte per si não estabeleceu a demonstração do cumprimento de determinada norma como requisito para o repasse, verifica-se que, para os estritos fins de liberação de transferências voluntárias, a condição possui, na verdade, patamar infraconstitucional, e desta maneira, por norma de igual envergadura e hierarquia (formal ou materialmente) poderá ser excepcionalizada.
Destaque-se que eventual aplicação das exceções às condições para repasse de transferências voluntárias não enseja o descompromisso em relação ao dever de gestão fiscal atribuído aos entes subnacionais. As hipóteses em que a lei dispensa a comprovação da adimplência de requisitos para fins de repasse se prestam, pois, apenas e tão somente para admitir a transferência voluntária no caso concreto, e em absolutamente nada comprometem a vigência e exigibilidade das obrigações em si, relacionadas à responsável gestão fiscal do Estado.
O entendimento ora consolidado, portanto, não representa qualquer tolerância, consentimento, condescendência nem tampouco remissão da Administração Pública Federal com relação a pendências registradas nos cadastros federais, as quais continuam a surtir os efeitos constitucionais e legais que lhe são próprios e demandam providências para a devida regularização em prol da responsável gestão fiscal dos entes subnacionais.
Desta maneira, o que se faz na proposta de uniformização ora acolhida e elevada às superiores instâncias desta Advocacia-Geral da União é única e exclusivamente conferir exegese sistemática e pragmática ao art. 84, § 2º da LDO 2021, o qual dispensa a demonstração da adimplência apenas para fins de transferências voluntárias, tudo, evidentemente, sem desmerecer a estrita relevância das normas inerentes à sadia gestão fiscal, as quais seguem vigentes, cogentes e devem necessariamente constituir primado fundamental da Administração Pública.
Conclusões
Isto posto, este Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos da Consultoria-Geral da União aprova o Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU da Câmara Nacional de Convênios e Instrumentos Congêneres, no regular exercício das competências de uniformização da jurisprudência administrativa de que cuida o art. 14, inciso I, do Decreto nº 10.608, de 2021, e do art. 9º, incisos I, II e III, da Portaria Normativa AGU nº 24, de 2021, e eleva à consideração superior as seguintes conclusões:
I) A Constituição Federal não reservou explicitamente à lei complementar o estabelecimento de requisitos e de hipóteses de dispensa de adimplência para fins de repasse de transferências voluntárias, desta maneira as leis ordinárias, além de disciplinarem requisitos, também podem excepcionar o cumprimento de condições previstas originariamente em sede de lei complementar;
II) O art. 4º, inciso I, alínea “f”, e o § 1º do seu art. 25, da Lei de Responsabilidade Fiscal confirmam que o estabelecimento de condições e requisitos para o repasse de transferências voluntárias não é matéria reservada a lei complementar, pois se assim fosse não se poderia admitir, sem afronta à organicidade e coerência que devem necessariamente inspirar a exegese da ordem jurídica, que lei ordinária disciplinasse o tema, inclusive para fins de instituição de requisitos adicionais, ou, em outros termos, caso as condições para transferências voluntárias fossem campo materialmente reservado à legislação complementar, as leis ordinárias absolutamente nada poderiam dispor a respeito, inclusive exigências de adimplência complementares, portanto, os pilares conceituais doutrinários e jurisprudenciais que bem delimitam e particularizam as leis ordinárias e as leis complementares não admitem que o legislador complementar subdelegue ao legislador ordinário matéria que a Constituição lhe reservou com exclusividade, não havendo hierarquia entre lei complementar e lei ordinária;
III) A respeito das condições para o repasse de transferências voluntárias de que cuida a Constituição Federal, a exemplo do art. 167, inciso XIII (organização do regime próprio de previdência social), do art. 169, § 2º (limites de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista), e do art. 97, § 10, do ADCT (regularidade no pagamento de precatórios judiciais), é certo que, pelo preceito da hierarquia das normas, apenas o Poder Constituinte poderá fixar hipóteses de exceção à sua adimplência, em que a demonstração do cumprimento dos referenciados requisitos pode ser dispensada para fins de repasse de transferências voluntárias, desta maneira, as hipóteses de dispensa de adimplência previstas no § 2º do art. 84 da LDO não afastam as condições de transferência voluntária de patamar constitucional;
IV) nas hipóteses em que a Constituição entendeu pertinente condicionar o repasse de recursos ao cumprimento de determinadas normas de gestão fiscal o fez de forma inequívoca, clara, e explícita, como se deu, por exemplo, no art. 167, inciso XIII, no art. 169, § 2º, e no art. 97, § 10, do ADCT, assim, considerando que há determinadas regras de gestão fiscal que estão postas na CF/1988, mas a própria Carta per si não condiciona seu cumprimento ao repasse de transferências voluntárias, tais requisitos foram postos como condição para o repasse de recursos por norma de patamar infraconstitucional, desta forma, para os estritos fins de liberação de transferências voluntárias, a exigência possui, na verdade, patamar infraconstitucional, e por norma de igual envergadura e hierarquia (formal ou materialmente) poderá ser excepcionalizada, ou seja, eventual aplicação das exceções às condições para repasse de transferências voluntárias não enseja o descompromisso em relação ao cumprimento do dever de gestão fiscal atribuído aos entes subnacionais cuja demonstração foi dispensada, pois as hipóteses em que a lei dispensa a comprovação da adimplência de requisitos para fins de repasse se prestam apenas e tão somente para admitir a transferência voluntária no caso concreto, e em absolutamente nada comprometem a vigência e exigibilidade das obrigações em si, relacionadas à responsável gestão fiscal do Estado;
V) O entendimento ora consolidado se limita a fixar a melhor exegese do § 2º do art. 84 da LDO 2021, e se presta para os estritos fins de delimitação de sua abrangência no âmbito das transferências voluntárias, não representando, pois, qualquer tolerância, consentimento, condescendência nem tampouco remissão da Administração Pública Federal com relação a pendências registradas nos cadastros federais, as quais continuam a surtir os efeitos constitucionais e legais que lhe são próprios e demandam providências para a devida regularização em prol da responsável gestão fiscal dos entes subnacionais, tudo, portanto, sem desmerecer a relevância das normas inerentes à responsabilidade fiscal, as quais seguem vigentes, cogentes e devem necessariamente constituir primado fundamental da Administração Pública; e
VI) recomenda-se que o Ministério da Economia e a Controladoria-Geral da União considerem, a bem da unidade da atuação estatal[3], e no regular exercício das competências que lhe são conferidas pelo art. 18 do Decreto nº 6.170, de 2007[4], delimitar objetivamente na Portaria Interministerial nº 424, de 2016, quais incisos do seu art. 22 podem ter seu cumprimento dispensado nas hipóteses de que cuida os seus §§ 9º e 16 (ações sociais, faixa de fronteira, saúde, educação e assistência social)[5], acrescendo, se for o caso, também a disciplina dos requisitos que podem ser dispensados nas hipóteses de que cuida o § 2º do art. 84 da LDO 2021.
Caso acolhido, (a) restitua-se o feito à Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Desenvolvimento Regional; (b) junte-se cópia do Parecer nº 8/2021/CNCIC/CGU/AGU e subsequentes Despacho ao NUP 00688.000718/2019-32, em que são registradas as atividades desenvolvidas pela Câmara Nacional de Convênios e Instrumentos Congêneres da Consultoria-Geral da União; (c) confira-se ciência à Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde, à Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Educação, à Consultoria Jurídica junto à Controladoria-Geral da União, à Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, e à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional; (d) cientifique-se o Departamento de Informações Jurídico-Estratégicas para os fins do art. 2º, § 3º, da Portaria CGU/AGU nº 3, de 2019[6]; e (e) confira-se ciência a todas as demais Consultorias Jurídicas junto aos Ministérios e órgãos assemelhados, às Consultorias Jurídicas da União nos Estados e no município de São José dos Campos, ao Departamento de Assuntos Jurídicos Internos da Consultoria-Geral da União, à Procuradoria-Geral Federal e à Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil.
Brasília, 16 de dezembro de 2021.
VICTOR XIMENES NOGUEIRA
ADVOGADO DA UNIÃO
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE COORDENAÇÃO E ORIENTAÇÃO DE ÓRGÃOS JURÍDICOS
Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 59000021950202153 e da chave de acesso beb4fb84
Notas