ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CNU - PLENÁRIO


 

Parecer-Plenário nº 002/2016/CNU-Decor/CGU/AGU (28/06/2016)

 

NUP: 59000.000294/2014-26

INTERESSADOS: CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO E OUTROS

ASSUNTO: DESTINAÇÃO DE BENS DA UNIÃO EM ANO ELEITORAL

 

 
Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016
A vedação prevista no art. 73, §10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, dirige-se à distribuição gratuita e discricionária diretamente a particulares, incluídas as doações com encargo e cessões, não alcançando os atos vinculados em razão de direito subjetivo do beneficiário e as transferências realizadas entre órgãos públicos do mesmo ente federativo ou as que envolvam entes federativos distintos, observando-se neste último caso o disposto no inciso VI, alínea "a", do mesmo artigo, que veda transferências nos três meses anteriores ao pleito eleitoral. Em qualquer caso, recomenda-se a não realização de solenidades, cerimônias, atos, eventos ou reuniões públicas de divulgação, ou qualquer outra forma de exaltação do ato administrativo de transferência capaz de afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais.
Referências: Art. 73, inciso VI, alínea "a", e § 10, da Lei nº 9.507, de 30 de setembro de 1997.
 
EMENTA:
DIREITO ELEITORAL. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE BENS PÚBLICOS FEDERAIS EM ANO ELEITORAL. INTERPRETAÇÃO DO ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97.
1. A disposição do art. 73, §10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, dirige-se à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública diretamente a particulares, não afetando as transferências realizadas entre entes públicos. A estes casos aplica-se o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, vedando-se a destinação de bens a outros entes públicos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral. Tal vedação, porém, não impede as doações realizadas entre entidades que integram a mesma esfera de governo, como por exemplo a doação de bem da União a uma autarquia ou fundação pública federal.
2. Não se admite, porém, que a única função do ente público recebedor do bem seja transferi-lo à população diretamente beneficiada, configurando mera intermediação. Por outro lado, isso não obsta a transferência do bem ao ente público para a prática de atos preparatórios que antecederão a efetiva destinação aos beneficiários finais, que só poderá ocorrer fora do período vedado.
3. Não são afetadas pelas vedações da legislação eleitoral as transferências que constituem direito subjetivo do beneficiário, nas quais o agente público não dispõe de margem de discricionariedade.
4. O entendimento aqui exposto alcança doações e cessões, sendo que o encargo ou finalidade da outorga não desnatura, por si só, seu caráter gratuito.
5. Deve-se orientar o gestor a observar o princípio básico de vedação de condutas dos agentes públicos, de forma a não afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais, sugerindo-se que a divulgação do ato seja a mínima necessária ao atendimento do princípio da publicidade formal – divulgação na Imprensa Oficial -, não sendo recomendada a realização de qualquer solenidade, tais como celebração de cerimônias simbólicas, atos públicos, eventos, reunião de pessoas para fins de divulgação, enfim, qualquer forma de exaltação do ato administrativo, sob pena de responsabilização do agente público que assim proceder.
 
 

I - RELATÓRIO

 

A Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Integração Nacional - CONJUR/MIN, por meio do Parecer nº 00063/2014/CGMA/CONJURMIN/AGU (Seq. 1), solicitou à Consultoria-Geral da União - CGU que uniformizasse o entendimento jurídico sobre a viabilidade de doação de bens públicos sem encargo em ano eleitoral.

 

Aponta que a vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97 tem sido interpretada pelo Tribunal Superior Eleitoral - TSE de forma rigorosa, abrangendo inclusive as doações de bens realizadas pela Administração Pública a outras entidades e órgãos públicos. Observa que, respondendo a consulta formulada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, o TSE entendeu que aquela vedação legal se aplica à doação de bens apreendidos pela autarquia, ainda que perecíveis, obstando-a no ano em que houver eleições. Foram ressalvadas apenas as exceções contidas na parte final do art. 73, §10, da Lei 9.504/97, quais sejam: calamidade pública, estado de emergência e programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

 

Em seu parecer, a CONJUR/MIN ponderou que, segundo o entendimento vigente no TSE, a aplicação de penalidades pela infringência ao disposto no art. 73, §10, da Lei 9.504/97 não depende da comprovação de ter a conduta interferido no pleito eleitoral. Sustentou, porém, que a doação com encargo, por configurar negócio jurídico oneroso, não seria vedada pelo art. 73, §10, da Lei 9.504/97, que trata da distribuição gratuita de bens.

 

Em seguida, aquele órgão jurídico passou a discorrer sobre o entendimento então vigente no âmbito da CGU. O Parecer nº 3/2012/CGU/AGU concluiu que a restrição do art. 73, §10, da Lei 9.504/97 se aplicaria à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública diretamente para a população, e não à doação realizada entre entes públicos. Para esses casos, incidiria o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, que veda a transferência voluntária de recursos nos 3 meses que antecedem o pleito. Portanto, aquele parecer equiparou a doação de bens da União a estados e municípios à transferência voluntária de recursos àqueles entes. Ademais, considerou-se que a existência de encargo torna a doação onerosa, de modo a afastar a incidência do art. 73, §10, da Lei 9.504/97.

 

Já no Parecer nº 084/2012/DECOR/CGU/AGU, elaborado após provocação da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - CONJUR/MP, a CGU reafirmou que a vedação contida no art. 73, §10, da Lei 9.504/97 diz respeito à distribuição gratuita de bens diretamente à população e que a doação de bens da União a outros entes da Federação só é vedada nos 3 meses que antecedem o pleito, por se equiparar à transferência voluntária de recursos.

 

Contudo, a CONJUR/MIN entende que a interpretação dada pela CGU destoa do entendimento mais rigoroso adotado pela TSE, razão pela qual pugnou pela sua revisão. Informou que diversos órgãos de assessoramento jurídico têm se manifestado pela impossibilidade de doação de bens da União a estados e municípios no ano eleitoral, o que gera grande insegurança jurídica.

 

Em resposta a essa provocação, a CGU elaborou o Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU (Seq. 9). Nesse opinativo, ponderou que o Parecer nº 3/2012/CGU/AGU não fixou de modo geral o entendimento de que a doação de bens entre entes públicos em ano eleitoral deveria ser equiparada à transferência voluntária de recursos. Em verdade, aquele parecer, após avaliar as características do caso em análise, concluiu pela viabilidade da doação com encargo naquele momento, sendo apontado no despacho do Consultor-Geral da União que a hipótese também se enquadrava na exceção à vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97 referente a programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

 

Entendeu-se no Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU que a questão específica do alcance da vedação prevista no art. 73, §10, da Lei 9.504/97 não chegou a ser enfrentada pelo Parecer nº 3/2012/CGU/AGU, aparecendo no despacho do Consultor-Geral da União como argumento secundário. Observou-se, ademais, que o TSE não tem afastado a aplicação daquela vedação legal quando a distribuição de bens, valores ou benefícios se dá entre entes públicos.

 

Em arremate, o Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU conclui que a regra geral relativa à doação de bens em ano eleitoral "está contida no art. 73, §10, da Lei 9.504/97, bem como as exceções admitidas, dentre as quais não está inserida a distribuição de bens, valores ou benefícios entre entes públicos", não se devendo equiparar tais doações, de forma ampla, às transferências voluntárias de recursos.

 

Embora exarado no ano de 2014, o Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU somente foi amplamente divulgado no início de 2016, com a expedição do Memorando Circular nº 009/2016-CGU/AGU, datado de 11/03/2016 (Seq. 14).

 

Ao tomar conhecimento dessa manifestação, a CONJUR/MP exarou a Nota nº 00323/DPC/CGJPU/2016/CONJUR-MP/CGU/AGU (Seq. 15), na qual solicitou à CGU que fosse retomado o entendimento anterior, consubstanciado no Parecer nº 084/2012/DECOR/CGU/AGU. Na hipótese de manutenção do Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU, questionou se as doações com encargo e as cessões com finalidade específica estariam abrangidas pela vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97.

 

Após traçar um histórico das discussões relativas ao tema, a CONJUR/MP ressalta não haver posicionamento firme do TSE acerca da incidência ou não do disposto no art. 73, §10, da Lei 9.504/97 às destinações gratuitas de bens para entes públicos. Aponta que a teleologia dessa norma é impedir que os atos da Administração interfiram no pleito eleitoral, assegurando assim a igualdade entre os candidatos. Por tal motivo, corrobora com o entendimento anteriormente sufragado pela CGU de que aquele dispositivo legal não se aplica à destinação de bens a entes da Federação, mas sim à própria população.

 

Por outro lado, aponta que, na hipótese de se verificar, em determinado caso concreto, que uma destinação específica de bem público a outro ente estatal pode comprometer a isonomia das eleições, aquela deverá ser sobrestada. Em qualquer caso, recomenda que a divulgação do ato seja restrita, resumindo-se ao atendimento do princípio da publicidade, abstendo-se os órgãos envolvidos de realizar qualquer solenidade, tais como celebração de cerimônias simbólicas, atos públicos, eventos, reunião de pessoas para fins de divulgação, enfim, qualquer forma de exaltação do ato administrativo. Observou que uma interpretação excessivamente ampla da vedação contida no art. 73, §10, da Lei 9.504/97 terminaria por paralisar políticas públicas importantes, que dependem da transferência de bens da União a outros entes públicos.

 

Caso seja mantido o entendimento esposado no Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU, a CONJUR/MP questiona se pode ser aplicado o entendimento da CONJUR/MIN acerca da não submissão das doações com encargo ao disposto no art. 73, §10, da Lei 9.504/97, por não configurarem destinações gratuitas, mas sim onerosas. Nesse ponto, observou que as doações de imóveis da União têm por fundamento legal o art. 31 da Lei 9.636/98, sendo sempre outorgadas com encargo ao donatário, e seu descumprimento enseja a reversão do bem ao patrimônio do doador. Apontou a existência de precedentes do TSE afirmando que a doação com encargo não configura distribuição gratuita.

 

O mesmo ocorreria com as cessões, as quais, embora não tenham um encargo, são sempre outorgadas para determinada finalidade. Se esta não for atendida pelo cessionário do prazo fixado, a cessão tornar-se-á nula, independente de ato especial. Da mesma forma, a outorga do Termo de Autorização de Uso Sustentável - TAUS, regulado pela Portaria SPU 89/2010, também não seria atingido pela vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97, por pressupor o cumprimento, pelo beneficiário, da finalidade para a qual o imóvel lhe foi destinado.

 

Por meio do Despacho nº 00090/2016/DECOR/CGU/AGU (Seq. 18), o Diretor do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos - DECOR submeteu o presente caso à Câmara Nacional de Uniformização de Entendimentos Consultivos - CNU, que foi em seguida distribuído a este subscritor (Seq. 19).

 

Após a distribuição do feito, a Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça - CONJUR/MJ elaborou a Nota nº 00094/2016/CONJUR-MJ/CGU/AGU (Seq. 21). Nessa nota, aquele órgão jurídico informa que, no Parecer nº 01248/2015/CONJUR-MJ/CGU/AGU, lançado no Processo nº 08129.019915/2015-49, manifestou-se contrariamente à doação de bens móveis pelo Fundo Nacional Antidrogas para Secretarias de Saúde de diversos estados e municípios, em virtude do disposto no art. 73, §10, da Lei 9.504/97. Além disso, relata que foi submetido àquela CONJUR o Processo nº 08620.096526/2015-86, que trata da doação de bem da União à Fundação Nacional do Índio - FUNAI.

 

Tendo em vista que a matéria de fundo foi submetida à CNU, a CONJUR/MJ solicita nossa manifestação sobre a possibilidade de doação de bem da União para autarquia ou fundação pública federal, bem como se a doação de um bem com o encargo de sua destinação ou afetação a uma política pública descaracterizaria a gratuidade, afastando, por conseguinte, a aplicação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97.

 

É o relatório.

 

II - VOTO

 

A questão trazida à deliberação da CNU consiste em definir se deve ser retomado o entendimento exposto nos Pareceres nº 3/2012/CGU/AGU e 084/2012/DECOR/CGU/AGU, e em opinativos pontuais posteriores, que fixavam as seguintes diretrizes, muito bem sintetizadas na Nota nº 00323/DPC/CGJPU/2016/CONJUR-MP/CGU/AGU:

 

 

Caso seja mantido o posicionamento adotado pelo Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU, devem ser esclarecidas as seguintes questões, levantadas pela CONJUR/MP e pela CONJUR/MJ:

 

  1. As doações com encargo podem ser consideradas não-gratuitas, afastando-se, assim, a incidência do art. 73, §10, da Lei 9.504/97?
  2. Em caso afirmativo, essa conclusão abrange as doações de imóveis da União realizadas com fundamento no art. 31 da Lei 9.636/98, bem como as cessões de imóveis feitas com base no art. 18 da mesma lei, as outorgas de Termos de Autorização de Uso Sustentável e as doações de bens móveis com o encargo de destinação ou afetação do bem doado a uma política pública?
  3. O art. 73, §10, da Lei 9.504/97 atinge doações realizadas pela União a autarquias e fundações públicas federais?

 

Sintetizada a controvérsia, entende-se que as conclusões do Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU hão de ser revistas, devendo-se retornar ao posicionamento anteriormente vigente no âmbito da Consultoria-Geral da União.

 

No Parecer nº 3/2012/CGU/AGU, a CGU concluiu que o art. 73, §10, da Lei 9.504/97 se destina à distribuição de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública diretamente à população, não atingindo as doações realizadas entre entes públicos. Estas assemelhar-se-iam a transferências voluntárias de recursos, aplicando-se-lhes a vedação prevista na alínea "a", do inciso VI daquele artigo.

 

Ao contrário do que restou asseverado no Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU, entende-se que o Parecer nº 3/2012/CGU/AGU de fato equiparou a doação de bens entre entes públicos à transferência voluntária de recursos. Fê-lo após afastar, de modo geral, a incidência do art. 73, §10, da Lei 9.504/97 a esses casos, promovendo tal equiparação com o fim de resguardar o equilíbrio eleitoral, atendendo a um princípio geral de cautela. Vale transcrever aqui o seguinte trecho daquele opinativo:

 

"16.     Assim como no caso do inciso IV, a norma [o art. 73, §10, da Lei 9.504/97] se destina à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública para a população, e não à doação realizada entre entes da Federação. Para uma maior compreensão do que é vedado por essa norma, seguem exemplos: distribuição gratuita de alimentos e cestas básicas, bem como de flores por candidato aos eleitores (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 35590, Relator Ministro Arnaldo Versini Leite Soares, publicado no DJE em 24/05/2010) e programa social que preveja o fornecimento gratuito de CNH a pessoas de baixa renda (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 28433, Relator Ministro Felix Fischer, publicado no DJE em 18/11/2009).
[...]
19.     Por fim, transcreve-se a alínea a do inciso VI do artigo 73:
[transcreve legislação]
20.     Transferências voluntárias são as que não decorrem de expressa determinação legal, como as decorrentes da repartição da receita tributária. O conceito de transferências voluntárias é extraído da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000), nos termos a seguir:
Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
[...]
23.     Como se observa, a alínea a do inciso VI do artigo 73 ostenta clara redação e trata especificamente de entrega de recursos financeiros entre os entes da Federação, vedando a realização de transferências voluntárias de recursos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública. Nâo faz qualquer alusão, portanto, à doação de máquinas ou equipamentos de uma unidade da Federação a outra.
24.     O caso dos autos não se refere a entrega de recursos, mas sim a doação de máquinas e equipamentos, o que, em uma interpretação restritiva da norma, portanto, não seria vedado pelo dispositivo em questão.
25.     Contudo, a conclusão de que a doação de máquinas e equipamentos não equivale a entrega de recursos e, portanto, não encontra vedação na legislação eleitoral pode dar margens a burla da finalidade da lei de vedar qualquer conduta tendente a afetar o equilíbrio eleitoral. Além disso, é certo que a aplicação de qualquer conduta vedada pelo artigo 73 não se limita à análise do ato ou omissão em seus aspectos formais, mas impõe que seja materialmente legal do ponto de vista do equilíbrio eleitoral, ou seja, será legal desde que não afete a igualdade de oportunidade entre candidatos nos pleitos eleitorais. Nas palavras de Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, 'o ato administrativo pode ser formalmente correto, mas moralmente não, caso em que o Direito Eleitoral deve intervir'."

 

Seguindo o mesmo raciocínio, o Parecer nº 084/2012/DECOR/CGU/AGU apontou que a vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97 faz referência à destinação difusa de bens e benefícios, não alcançando a entrega pontual de bens em favor de entes públicos. Nesses casos, deve-se aplicar como regra geral o disposto na alínea "a" do inciso VI desse artigo, equiparando-se essas doações a transferências voluntárias de recursos.

 

Tal abordagem parece correta. Veja-se o disposto no art. 73, VI, "a", e §10, da Lei 9.504/97:

 

"Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[...]

VI - nos três meses que antecedem o pleito:

a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública;

[...]

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa."

 

O §10 desse artigo veda, no ano em que se realizar eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública. Excepcionam-se apenas as distribuições para atender a casos de calamidade pública e de estado de emergência e as realizadas no âmbito de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

 

Já o inciso VI, alínea "a", veda, nos três meses que antecedem o pleito, a transferência voluntária de recursos da União a estados e municípios. Ficam ressalvadas apenas as transferências de recursos para atender a situações de emergência e de calamidade pública e aqueles destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado.

 

A solução da controvérsia trazida à consideração da CNU reside em delimitar o âmbito de aplicação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97, definindo se tal vedação abrange a doação de bens entre entes públicos. Para tanto, devemos primeiramente analisar a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral - TSE.

 

Embora aquela corte não tenha se pronunciado especificamente sobre o objeto da controvérsia ora em análise, os precedentes em que se reconhece a ocorrência da conduta vedada pelo art. 73, §10, da Lei 9.504/97 dizem respeito à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios diretamente à população, como se extrai dos acórdãos a seguir transcritos:

 

"EMBARGOS. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2012. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DO PODER POLÍTICO E CONDUTAS VEDADAS (ART. 73, IV E § 10, DA LEI Nº 9.504/97). PREFEITO, VICE-PREFEITO. OMISSÃO E OBSCURIDADE. AUSÊNCIA.

1. Não há omissão quanto à análise da conduta vedada prevista no § 10 do art. 73 da Lei nº 9.504/97, porquanto esta Corte Superior - no julgamento do recurso especial - levou em conta as premissas consignadas pelo Tribunal de origem, soberano na análise de fatos e provas, que concluiu, na análise dos documentos constantes dos autos, que, em evento do Dia das Mães, houve a distribuição maciça de benesses (1.150 cestas básicas e diversos eletrodomésticos), configurando, portanto, a indigitada infração legal, além da conduta vedada do inciso IV e da prática de abuso de poder.

2. No que se refere ao argumento de que não foi observada a proporcionalidade na aplicação das sanções, constou expressamente do acórdão embargado tópico específico em que foi examinado esse tema, destacando-se que foi reconhecida pela Corte de origem, de forma percuciente, a gravidade das circunstâncias no caso concreto.

Embargos de declaração rejeitados." (ED-REspe 71923, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, Acórdão de 18/12/2015)

 

"RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA AOS AGENTES PÚBLICOS. ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97. PRELIMINARES REJEITADAS. ART. 105-A DA LEI 9.504/97. APLICABILIDADE ÀS AÇÕES ELEITORAIS. MÉRITO. PROGRAMA SOCIAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EM LEI PRÉVIA. MULTA. DESPROVIMENTO.

[...]

4. A doação de manilhas a famílias carentes, sem previsão do respectivo programa social em lei prévia, configura a conduta vedada do art. 73, § 10, da Lei 9.504/97, sendo irrelevante o fato de as doações supostamente atenderem ao comando do art. 23, II e IX, da CF/88. Manutenção da multa imposta ao recorrente.

5. Recurso especial eleitoral a que se nega provimento." (REspe 54588, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Acórdão de 08/09/2015)

 

"ELEIÇÕES 2012. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. REPRESENTAÇÃO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO (LEI DAS ELEIÇÕES, ART. 41-A). CONDUTA VEDADA A AGENTE PÚBLICO (LEI DAS ELEIÇÕES, ART. 73). PREFEITO. VICE-PREFEITO. VEREADOR. REEXAME DE FATOS E PROVAS. ENUNCIADOS DAS SÚMULAS Nº 279/STF E Nº 7/STJ. DESPROVIMENTO.

1. As provas obtidas por intermédio de interceptação telefônica, quando devidamente autorizada pelo juízo competente, não são inquinadas pela pecha de nulidade.

2. In casu, o TRE/RS, analisando o arcabouço fático-probatório dos autos, assentou a atribuição de 13 (treze) fatos irregulares aos Agravantes, dentre os quais a cessão, mediante compra do voto, de balão de oxigênio a paciente domiciliar, doações de cascalho, carga de terra, brita e benefícios sem o suporte legal, bem como a utilização de servidores públicos e de telefones móveis de propriedade da Prefeitura na campanha eleitoral, de ordem a caracterizar a captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei nº 9.504/1997), a prática de conduta vedada (art. 73, § 10, da Lei das Eleições), bem como a gravidade suficiente a emoldurar o abuso de poder econômico.

3. A inversão do julgado quanto ao imputado aos ora Agravantes implicaria necessariamente nova incursão no conjunto fáticoprobatório, o que não se coaduna com a via estreita do apelo extremo eleitoral, ex vi dos Enunciados das Súmulas nos 279/STF e 7/STJ.

4. Agravo regimental desprovido." (AgR-AI 88455, Rel. Min. Luiz Fux, Acórdão de 02/06/2015)

 

O precedente citado pela CONJUR/MIN foi a Petição nº 100080, na qual o TSE analisou um pedido de orientação oriundo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, no qual aquela autarquia questionava a possibilidade de doar bens apreendidos, em especial perecíveis, a órgãos e entidades públicos e privados em ano eleitoral. Ao apreciar sucintamente a questão, aquela corte adotou posição restritiva, aplicando a vedação de forma draconiana, o que resultou na edição da Resolução nº 23.291.

 

Em julgado mais recente (Consulta nº 5639), o TSE entendeu que a doação poderia ocorrer nas hipóteses excepcionadas pelo art. 73, §10, da Lei 9.504/97. Assim, a corte admitiu a doação desses bens no âmbito de programas sociais relacionados à coleta de alimentos, não havendo necessidade de que os bens doados façam parte do orçamento desses programas.

 

Em ambos os precedentes, analisou-se a possibilidade de doação de produtos apreendidos por órgãos públicos no exercício de sua competência fiscalizatória. Ou seja, trata-se, em primeiro lugar, de atividade acessória às atribuições institucionais dessas unidades. Além disso, pelo que se pode extrair dos julgados, os bens a serem doados atenderiam, precipuamente, a necessidades da população, como o fornecimento de alimentos a pessoas carentes.

 

Nesse cenário, o TSE tem adotado o posicionamento de que a conduta vedada pelo art. 73, §10, da Lei 9.504/97 decorre de ações assistencialistas, como se vê do seguinte aresto:

 

"RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. CONDUTA VEDADA. ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97. DISTRIBUIÇÃO DE BENS. TABLETS. PROGRAMA ASSISTENCIALISTA. NÃO CONFIGURAÇÃO. CONTINUIDADE DE POLÍTICA PÚBLICA. ABUSO DE PODER POLÍTICO. DESVIO DE FINALIDADE. BENEFÍCIO ELEITORAL. NÃO COMPROVAÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO.

1. Na espécie, a distribuição de tablets aos alunos da rede pública de ensino do Município de Vitória do Xingu/PA, por meio do denominado programa "escola digital", não configurou a conduta vedada do art. 73, § 10, da Lei 9.504/97 pelos seguintes motivos:

a) não se tratou de programa assistencialista, mas de implemento de política pública educacional que já vinha sendo executada desde o ano anterior ao pleito. Precedentes.

b) os gastos com a manutenção dos serviços públicos não se enquadram na vedação do art. 73, § 10, da Lei 9.504/97. Precedentes.

c) como os tablets foram distribuídos em regime de comodato e somente poderiam ser utilizados pelos alunos durante o horário de aula, sendo logo depois restituídos à escola, também fica afastada a tipificação da conduta vedada, pois não houve qualquer benefício econômico direto aos estudantes. Precedentes.

d) a adoção de critérios técnicos previamente estabelecidos, além da exigência de contrapartidas a serem observadas pelos pais e alunos, também descaracterizam a conduta vedada em exame, pois não se configurou o elemento normativo segundo o qual "a distribuição de bens, valores ou benefícios" deve ocorrer de forma "gratuita". Precedentes.

2. O abuso do poder político caracteriza-se quando o agente público, valendo-se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, compromete a igualdade da disputa e a legitimidade do pleito em benefício de sua candidatura ou de terceiros, o que não se verificou no caso. No ponto, a reforma do acórdão recorrido esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.

3. Recurso especial eleitoral desprovido." (REspe 55547, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Acórdão de 04/08/2015)

 

Tal assertiva fica bastante clara no voto do relator, conforme se depreende do seguinte trecho:

 

"O acórdão recorrido não merece retoques, porquanto alinhado com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. De acordo com esta Corte Superior, a conduta vedada pelo art. 73, § 10, da Lei 9.504/97 limita-se aos casos em que a distribuição de bens ocorra mediante os denominados programas de natureza assistencialista. Nesse sentido, cito trecho do voto proferido pelo Min. Marcelo Ribeiro no julgamento do REspe 2826-75/SC, DJe de 22.5.2012:
 
De acordo com a linha exegética adotada por esta Corte, os bens, valores, auxílios ou benefícios objetos da vedação, são aqueles de cunho assistencialista, como a distribuição de animais (RO 149655/AL, DJe 24.2.2012, Rel. Min. Arnaldo Versiani); as isenções tributárias (Cta. 153169/DF, DJe 28.10.2011, Rel. Min. Marco Aurélio); a distribuição de bens de caráter assistencial (AgR-AI 116967/RJ, DJe 17.8.2011, Rel. Min. Nancy Andrighi); a distribuição de cestas básicas (AgR-REspe 997906551/SC, DJe 19.4.2011, Rel. Min. Aldir Passarinho); a doação de bens perecíveis (Pet 100080/DF, DJe 24.8.2010, Rel. Min. Marco Aurélio); e o repasse de valores destinados à assistência social (CTA 95139/DF, DJe 4.8.2010,Rel. Min. Marco Aurélio).
 
De fato, considerando-se que a conduta vedada em exame visa proibir a "distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios", excepcionando-se essa regra geral apenas nos casos em que a distribuição ocorra mediante os denominados "programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior", afigura-se intuitiva a conclusão de que o conteúdo normativo do art. 73, § 10, da Lei 9.504/97 visa garantir "a igualdade de oportunidade entre os candidatos", proibindo a utilização do aparelho estatal de forma a corromper uma parcela do eleitorado em maior situação de vulnerabilidade social, cuja liberdade de consciência para o exercício do sufrágio esteja mais sujeita às interferências externas." (grifos acrescidos)

 

Ou seja, partindo da teleologia da norma, que é garantir a igualdade de oportunidade entre os candidatos, o TSE concluiu que o objeto da vedação trazida pelo art. 73, §10, da Lei 9.504/97 são os programas de natureza assistencialista. Portanto, a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios deve se dar diretamente à população, não podendo ser enquadrada nessa conduta vedada a doação, pela Administração Pública, de bens de sua propriedade a outros entes públicos.

 

O discrímen a ser feito diz respeito à finalidade do bem doado. Caso este vise a atender a uma necessidade direta da população, sendo o ente público mero intermediário, há de se ter uma maior cautela. Assim, é alcançada pela vedação prevista no art. 73, §10, da Lei 9.504/97 a transferência patrimonial entre entes públicos na qual o recebedor tem como única função promover o repasse do bem à população diretamente beneficiada, configurando mera intermediação.

 

Contudo, mesmo quando o bem venha a ser ao final destinado à população, não se pode obstar a transferência a outro ente público visando à adoção de medidas preparatórias, desde que não ocorra, no ano eleitoral, a efetiva distribuição dos bens aos beneficiários finais.

 

É o que se dá com a doação de imóveis da União a outra entidade pública para o desenvolvimento de programas de regularização fundiária ou de provisão habitacional de interesse social. Os destinatários finais do bem serão as famílias beneficiárias, porém, antes de atendê-las, outorgando-se os respectivos títulos de propriedade, muitas vezes se deve adotar diversas medidas de natureza administrativa para as quais é necessária a transferência patrimonial para o ente responsável pelo programa. Ressalte-se, a propósito, que o TSE já sufragou o entendimento de que a distribuição gratuita de bens só se configura com a efetiva tradição, conforme se extrai do seguinte julgado:

 

"AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. CANDIDATOS A PREFEITO E VICE-PREFEITO. ELEIÇÕES DE 2012. CONDUTA VEDADA. OFENSA AO ART. 275 DO CÓDIGO ELEITORAL. NÃO CONFIGURADA. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE RECURSAL E CERCEAMENTO DE DEFESA. REJEITADAS. ART. 73, INCISO IV E §§ 4º, 5º E 10, DA LEI Nº 9.504/97. DOAÇÃO GRATUITA DE BENS DURANTE O ANO ELEITORAL. INEXISTÊNCIA. CONDUTA NÃO CARACTERIZADA. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO.

1. O acórdão hostilizado solucionou a quaestio juris de maneira clara e coerente, apresentando todas as razões que firmaram o seu convencimento.

2. O partido político tem legitimidade para prosseguir, isoladamente, em feito que ajuizou antes de se coligar.

3. O magistrado deferirá a produção de prova quando entender que os elementos necessários à solução da controvérsia não estão presentes nos autos.

4. O cerceamento de defesa, por ter o Tribunal a quo solucionado a lide com base no inciso IV do art. 73 da Lei nº 9.504/97, que não constou da inicial ou da sentença, não foi prequestionado. Súmulas 282 e 356 do STF.

5. Estando adequadamente demarcadas as premissas fático-probatórias no acórdão recorrido, é possível promover o reenquadramento jurídico dos fatos e provas.

6. No ano eleitoral, é possível a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios, desde que no bojo de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

7. As condutas do art. 73 da Lei nº 9.504/97 se configuram com a mera prática dos atos, os quais, por presunção legal, são tendentes a afetar a isonomia entre os candidatos, sendo desnecessário comprovar a potencialidade lesiva.

8. In casu, para concluir se foram perpetradas as condutas vedadas, é imprescindível verificar a ocorrência, ou não, de efetiva doação dos lotes no período vedado.

9. A norma local apenas autorizou a distribuição dos lotes, mas a tradição não foi formalizada de imediato, pois, para tanto, necessário cumprir diversos requisitos, não havendo notícia de que houve efetiva distribuição gratuita de bens durante o ano eleitoral.

10. Não é possível avaliar a gravidade das condutas tendo por esteio a mera presunção de que determinado pronunciamento incutiu "no íntimo de cada eleitor" a certeza de que receberia um dos imóveis.

11. Recursos especiais parcialmente conhecidos e, nessa extensão, providos." (REspe 1429. Rel. Min. Laurita Vaz, Acórdão de 05/08/2014, grifos acrescidos)

 

Já na hipótese de a doação destinar-se a beneficiar uma atividade institucional do ente público donatário, não há dúvida de que essa será possível. É o que se dá com a doação de veículos para órgãos públicos ou de imóveis para a instalação de repartições públicas ou para a execução de uma atividade institucional do donatário. O fato de o bem doado vir a atender indiretamente a população não afasta esse raciocínio. Afinal, toda atividade do Poder Público deve ter por objetivo imediato ou mediato fazer frente a uma necessidade coletiva.

 

Entender o contrário seria um contrassenso. Tomemos um caso hipotético. Vamos supor que a União pretenda auxiliar determinado município a construir uma creche. Imaginemos que a municipalidade dispõe dos recursos para a construção, porém não possui um terreno que atenda às necessidades do empreendimento. Por sua vez, a União é proprietária de terreno naquela localidade que poderia ser utilizado para a construção da creche.

 

Como já visto, o art. 73, VI, "a", da Lei 9.504/97 veda a transferência voluntária de recursos pela União a estados e municípios apenas nos três meses que antecedem o pleito eleitoral, ao passo que o §10 desse artigo proíbe a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios durante todo o ano em que se realizarem eleições.

 

Caso se entenda que a doação do terreno da União ao município é alcançada pelo disposto no art. 73, §10, da Lei 9.504/97, essa transferência patrimonial não poderia ocorrer durante todo o ano em que se realizar eleições, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, portanto. Contudo, tendo em vista o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, a União poderia firmar um convênio com a prefeitura até 3 meses antes do pleito, transferindo-lhe recursos financeiros para a aquisição de um terreno similar, possibilitando, assim, a construção da creche.

 

No caso hipotético em exame, parece estreme de dúvidas que a doação de imóvel da União ao município para a construção da creche é uma medida muito mais adequada que a transferência de recursos financeiros à municipalidade para que esta adquira um terreno similar. Afinal, a transferência do bem, além de garantir o cumprimento da função social do patrimônio imobiliário da União, atende ao princípio da eficiência, pois otimiza a gestão dos recursos públicos, que são limitados, permitindo a utilização de um capital já imobilizado e liberando os recursos financeiros correspondentes para outros fins de interesse público.

 

Ademais, a simples transferência patrimonial não tem o condão de, por si só, afetar a igualdade dos candidatos no pleito eleitoral. No exemplo aqui explorado, embora o bem imóvel doado viesse a ser destinado ao uso da população, o beneficiário direto da doação não seria esta, mas sim o município. Dessa forma, se afastaria, ao menos em tese, a possibilidade de uso da máquina pública federal em detrimento da lisura do pleito eleitoral, mediante distribuição de benefícios diretamente à população, conforme entendimento do TSE.

 

No exercício de suas atribuições como órgão gestor dos bens imóveis da União, a Secretaria do Patrimônio da União - SPU destina áreas federais a outros entes públicos. Para tanto, vale-se de diversos instrumentos previstos na legislação de regência, dentre os quais a cessão e a doação, previstas, respectivamente, nos arts. 18 e 31 da Lei 9.636/98:

 

"Art. 18. A critério do Poder Executivo poderão ser cedidos, gratuitamente ou em condições especiais, sob qualquer dos regimes previstos no Decreto-Lei no 9.760, de 1946, imóveis da União a:

I - Estados, Distrito Federal, Municípios e entidades sem fins lucrativos das áreas de educação, cultura, assistência social ou saúde;

II - pessoas físicas ou jurídicas, em se tratando de interesse público ou social ou de aproveitamento econômico de interesse nacional.

§ 1o  A cessão de que trata este artigo poderá ser realizada, ainda, sob o regime de concessão de direito real de uso resolúvel, previsto no art. 7º do Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, aplicando-se, inclusive, em terrenos de marinha e acrescidos, dispensando-se o procedimento licitatório para associações e cooperativas que se enquadrem no inciso II do caputdeste artigo.

§ 2o O espaço aéreo sobre bens públicos, o espaço físico em águas públicas, as áreas de álveo de lagos, rios e quaisquer correntes d’água, de vazantes, da plataforma continental e de outros bens de domínio da União, insusceptíveis de transferência de direitos reais a terceiros, poderão ser objeto de cessão de uso, nos termos deste artigo, observadas as prescrições legais vigentes.

§ 3o A cessão será autorizada em ato do Presidente da República e se formalizará mediante termo ou contrato, do qual constarão expressamente as condições estabelecidas, entre as quais a finalidade da sua realização e o prazo para seu cumprimento, e tornar-se-á nula, independentemente de ato especial, se ao imóvel, no todo ou em parte, vier a ser dada aplicação diversa da prevista no ato autorizativo e conseqüente termo ou contrato.

§ 4o A competência para autorizar a cessão de que trata este artigo poderá ser delegada ao Ministro de Estado da Fazenda, permitida a subdelegação.

§ 5o A cessão, quando destinada à execução de empreendimento de fim lucrativo, será onerosa e, sempre que houver condições de competitividade, deverão ser observados os procedimentos licitatórios previstos em lei.

§ 6o  Fica dispensada de licitação a cessão prevista no caput deste artigo relativa a:

I - bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas de provisão habitacional ou de regularização fundiária de interesse  social  desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública;

II - bens imóveis de uso comercial de âmbito local com área de até 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), inseridos no âmbito de programas de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública e cuja ocupação se tenha consolidado até 27 de abril de 2006.

§ 7o  Além das hipóteses previstas nos incisos I e II do caput e no § 2o deste artigo, o espaço aéreo sobre bens públicos, o espaço físico em águas públicas, as áreas de álveo de lagos, rios e quaisquer correntes d’água, de vazantes e de outros bens do domínio da União, contíguos a imóveis da União afetados ao regime de aforamento ou ocupação, poderão ser objeto de cessão de uso."

 

"Art. 31.  Mediante ato do Poder Executivo e a seu critério, poderá ser autorizada a doação de bens imóveis de domínio da União, observado o disposto no art. 23 desta Lei, a:

I - Estados, Distrito Federal, Municípios, fundações públicas e autarquias públicas federais, estaduais e municipais;

II - empresas públicas federais, estaduais e municipais;

III – fundos públicos e fundos privados dos quais a União seja cotista, nas transferências destinadas à realização de programas de provisão habitacional ou de regularização fundiária de interesse social;

IV - sociedades de economia mista voltadas à execução de programas de provisão habitacional ou de regularização fundiária de interesse social; ou

V - beneficiários, pessoas físicas ou jurídicas, de programas de provisão habitacional ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública, para cuja execução seja efetivada a doação.

§ 1o No ato autorizativo e no respectivo termo constarão a finalidade da doação e o prazo para seu cumprimento.

§ 2o O encargo de que trata o parágrafo anterior será permanente e resolutivo, revertendo automaticamente o imóvel à propriedade da União, independentemente de qualquer indenização por benfeitorias realizadas, se:

I - não for cumprida, dentro do prazo, a finalidade da doação;

II - cessarem as razões que justificaram a doação; ou

III - ao imóvel, no todo ou em parte, vier a ser dada aplicação diversa da prevista.

§ 3o  Nas hipóteses de que tratam os incisos I a IV do caput deste artigo, é vedada ao beneficiário a possibilidade de alienar o imóvel recebido em doação, exceto quando a finalidade for a execução, por parte do donatário, de projeto de assentamento de famílias carentes ou de baixa renda, na forma do art. 26 desta Lei, e desde que, no caso de alienação onerosa, o produto da venda seja destinado à instalação de infra-estrutura, equipamentos básicos ou de outras melhorias necessárias ao desenvolvimento do projeto.

§ 4o  Na hipótese de que trata o inciso V do caput deste artigo:

I - não se aplica o disposto no § 2o deste artigo para o beneficiário pessoa física, devendo o contrato dispor sobre eventuais encargos e conter cláusula de inalienabilidade por um período de 5 (cinco) anos; e

II - a pessoa jurídica que receber o imóvel em doação só poderá utilizá-lo no âmbito do respectivo programa habitacional ou de regularização fundiária e deverá observar, nos contratos com os beneficiários finais, o requisito de inalienabilidade previsto no inciso I deste parágrafo.

§ 5o  Nas hipóteses de que tratam os incisos III a V do caput deste artigo, o beneficiário final pessoa física deve atender aos seguintes requisitos:

I - possuir renda familiar mensal não superior a 5 (cinco) salários mínimos;

II - não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural."

 

A destinação de imóveis federais a outros entes públicos não é uma simples benesse, mas antes decorre da execução de uma política pública que visa a garantir o cumprimento da função social do patrimônio imobiliário da União, sendo uma atividade executada corriqueiramente pela SPU. A fim de trazer dados concretos à discussão, solicitou-se à SPU o levantamento do quantitativo das destinações realizadas entre 2012 e 2015, tendo sido fornecidos os seguintes dados:

 

ANO QUANTITATIVO
2012 544
2013 607
2014 194
2015 1950*
* Incluída a outorga de 1561 termos de autorização de uso sustentável (TAUS)

 

O TSE entende que a continuidade da execução de políticas públicas, ainda que deles decorra a distribuição de vantagens de alguma espécie, não configura, por si só, conduta vedada. Contudo, eventuais abusos podem ser punidos, caso se vislumbre desvio de finalidade que afete a igualdade entre candidatos, podendo eventualmente configurar conduta vedada diversa da prevista no art. 73, §10, da Lei 9.504/97. Veja-se, a propósito, o seguinte acórdão:

 

"AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER E CONDUTA VEDADA. PROCEDÊNCIA PARCIAL. DISTRIBUIÇÃO DE CHEQUES PELA PREFEITURA PARA TRATAMENTO FORA DE DOMICÍLIO (TFD). CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE SERVIDORES PÚBLICOS.

Recurso especial dos candidatos majoritários eleitos

[...]

4. O TFD (Tratamento Fora do Domicílio), auxílio prestado pela prefeitura, com base na regulamentação expedida pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria Estadual de Minas Gerais, não se enquadra na hipótese de programa social a que se refere o § 10 do art. 73 da Lei das Eleições.

5. O Tratamento Fora do Domicílio não caracteriza, em si, programa social, pois, na verdade, é modalidade de prestação de saúde que, nos termos do art. 196 da Constituição Federal, "é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

6. Impor ao administrador a necessidade de suspender esse tratamento durante o ano eleitoral, em vez de resguardar a igualdade de chances entre os candidatos, implicaria gravíssima ofensa à Constituição Federal e, principalmente, aos direitos fundamentais do cidadão na crítica área de assistência à saúde, já tão precária.

7. O não enquadramento do procedimento de Tratamento Fora do Domicílio como conduta vedada não impede que os fatos registrados no acórdão regional sejam examinados sob o ângulo do abuso de poder, especialmente porque esse tipo de irregularidade pode ocorrer em relação a qualquer serviço prestado pelo estado quando a sua finalidade maior é desviada.

8. No caso dos autos, o Tribunal Regional assentou que houve desvirtuamento quanto à entrega dos cheques alusivos ao Tratamento Fora de Domicílio (TFD) a elevado número de eleitores, com descumprimento de exigências relativas à ajuda de custo, o que ocorreu em pleno ano eleitoral (desde março de 2012). A prática, segundo o acórdão regional, teria ocasionado indevida influência no pleito, "haja vista sua natureza pecuniária e a quantidade de cheques emitidos" (fl. 897).

9. Para rever as conclusões do acórdão regional quanto ao liame entre a conduta ilícita e a finalidade eleitoral, seria necessário, neste ponto, reexaminar os fatos e as provas, o que encontra óbice nas Súmulas 7 do STJ e 279 do STF.

[...]

Recurso especial dos candidatos eleitos parcialmente provido, apenas para afastar o reconhecimento da conduta vedada do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/97 e as respectivas penalidades.

Recurso especial do candidato ao cargo de prefeito (segundo colocado) não conhecido.

Recurso especial do partido, autor da AIJE, julgado prejudicado.

Ação cautelar julgada improcedente, com a revogação da liminar, ficando prejudicado o agravo regimental nela interposto." (AC 8385, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, Acórdão de 03/11/2015)

 

Embora o precedente acima citado cuide de caso específico, relativo à prestação de serviço público de saúde, entende-se que ele ilustra o posicionamento do TSE sobre o tema. A mesma questão foi debatida no REspe 55547, já citado anteriormente, que analisou a distribuição de tablets a alunos da rede pública municipal em ano eleitoral. Vejamos o seguinte trecho do voto do relator desse acórdão:

 

"No caso, conforme se infere do acórdão recorrido, a distribuição de tablets não decorreu da execução de programa assistencialista,mas do implemento de política pública educacional, a qual sequer poderia ter sido interrompida pelo simples fato de o prefeito municipal haver se candidatado à reeleição (fI. 735). Conforme ressaltado pelo Tribunal a quo, essa política educacional já vinha sendo executada desde o ano anterior ao pleito mediante as seguintes condutas: 1) fornecimento de notebooks aos professores; 2) entrega de kits escolares, dos quais os tablets faziam parte; 3) fornecimento de coletes salva-vidas para os alunos que necessitavam de transporte fluvial; 4) melhoria na qualidade da merenda escolar; 5) valorização do corpo docente, mediante aumento dos salários e concessão de bolsas para realização de cursos de pós-graduação; e 6) aparelhamento das escolas com mobiliários e livros novos" (fI. 734).
Novamente, o acórdão regional não merece reparos. Segundo a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a execução de políticas públicas de interesse geral da sociedade não pode sofrer solução de continuidade e os atos próprios de governo não devem ser suspensos durante o período eleitoral pelo simples fato de o chefe do Poder Executivo haver se candidato à reeleição. Confira-se:
Não há ilicitude na continuidade de programa de incentivo agrícola iniciado antes do embate eleitoral.Os atos próprios de governo não são vedados ao candidato à reeleição. (RO 2233/RR, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe 10.3.2010)" (grifos originais)

 

Ou seja, a vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97 não tem por finalidade impedir a continuidade da execução de políticas públicas, limitando apenas determinadas ações que, por sua natureza e alcance, possam levar ao desequilíbrio do pleito.

 

Importante observar que a jurisprudência do TSE é pacífica no sentido de não exigir, para a configuração das condutas vedadas pelo art. 73 da Lei 9.504/97, que seja comprovado o impacto direto daquela conduta no resultado da eleição. Os efeitos do ato servem apenas para fins de dosimetria da pena a ser aplicada, mas não para a configuração do ilícito em si. Veja-se, a propósito, o seguinte julgado:

 

"ELEIÇÕES 2010. CONDUTA VEDADA. USO DE BENS E SERVIÇOS. MULTA.

1. O exame das condutas vedadas previstas no art. 73 da Lei das Eleições deve ser feito em dois momentos. Primeiro, verifica-se se o fato se enquadra nas hipóteses previstas, que, por definição legal, são "tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais". Nesse momento, não cabe indagar sobre a potencialidade do fato.

2. Caracterizada a infração às hipóteses do art. 73 da Lei 9.504/97, é necessário verificar, de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, qual a sanção que deve ser aplicada. Nesse exame, cabe ao Judiciário dosar a multa prevista no § 4º do mencionado art. 73, de acordo com a capacidade econômica do infrator, a gravidade da conduta e a repercussão que o fato atingiu. Em caso extremo, a sanção pode alcançar o registro ou o diploma do candidato beneficiado, na forma do § 5º do referido artigo.

3. Representação julgada procedente." (Rp nº 295986, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, Acórdão de 21/10/2010)

 

Isso, porém, não significa que qualquer transferência de bens se amolde à conduta descrita no art. 73, §10, da Lei 9.504/97. A doação de bens pela União a outros entes públicos, em princípio, não atinge o bem jurídico que esse dispositivo legal visa a proteger, que é a igualdade de condições entre os candidatos.

 

De todo modo, é necessário assegurar que o procedimento administrativo não seja maculado por desvio de finalidade, o que poderia configurar a prática de conduta vedada. Para tanto, deve-se orientar o gestor a observar o princípio básico de vedação de condutas dos agentes públicos, de forma a não afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais, sugerindo-se que a divulgação do ato seja a mínima necessária ao atendimento do princípio da publicidade formal. Assim, basta que os atos pertinentes sejam publicados na Imprensa Oficial, conforme orienta a legislação, não sendo recomendada a realização de qualquer solenidade, tais como celebração de cerimônias simbólicas, atos públicos, eventos, reunião de pessoas para fins de divulgação, enfim, qualquer forma de exaltação do ato administrativo, sob pena de responsabilização do agente público que assim proceder.

 

Além disso, o fato de a doação de bens da União a outros entes públicos não se enquadrar na conduta vedada pelo art. 73, §10, da Lei 9.504/97 não afasta a incidência de outras restrições previstas nesse artigo, em especial o disposto na alínea "a" do seu inciso VI, já transcrita acima. Esse dispositivo legal veda a transferência voluntária de recursos da União a estados e municípios nos 3 meses anteriores ao pleito, exceto quando se tratar de recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública.

 

Daí porque, no Parecer nº 3/2012/CGU/AGU, a CGU concluiu, acertadamente, que a doação de bens da União a outros entes públicos deve ser equiparada à transferência voluntária de recursos. Afinal, uma vez afastada a vedação do art. 73, §10, da Lei 9.504/97, a conduta descrita no inciso VI, "a", do mesmo artigo é a que mais se aproxima da transferência de bens entre entes públicos.

 

Ao contrário do disposto no §10 daquele artigo, que é voltado a uma conduta dirigida diretamente à população com potencial de desequilibrar o pleito em favor de determinado candidato, o inciso VI, "a", restringe a concessão de um benefício financeiro a um outro ente público, buscando, com isso, evitar que aquela transferência de recursos afete, ainda que indiretamente, a igualdade entre os candidatos. Daí porque o período de vedação (3 meses) é inferior ao do §10 (um ano).

 

É inegável que a doação de um bem com valor econômico se assemelha à transferência voluntária de recursos. Portanto, afigura-se razoável submeter a doação de bens da União a outros entes públicos à vedação prevista no art. 73, VI, "a", da Lei 9.504/97, uma vez que não se aplica a esses casos o disposto no § 10 do mesmo artigo.

 

Por outro lado, como o art. 73, VI, "a", da Lei 9.504/97 faz referência apenas a transferências realizadas por órgão da Administração a um ente público de outra esfera de governo, não são afetadas pela lei eleitoral as destinações de bens entre entidades que integram a mesma unidade da Federação. Assim, respondendo à dúvida levantada pela CONJUR/MJ, a doação de bem pela União a autarquias e fundações públicas federais, como por exemplo a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, não encontra óbice na legislação eleitoral, podendo ser realizada durante todo o ano em que ocorrer eleições.

 

Também não sao abrangidas pelas vedações da lei eleitoral as transferências que decorrem de um comando legal e que constituem direito subjetivo do beneficiário. Tal circunstância, ao retirar qualquer avaliação de conveniência e oportunidade pelo Poder Público, afasta o risco de uso da máquina pública em benefício de determinado candidato, não afetando, portanto, o bem jurídico protegido pela legislação eleitoral. Esse entendimento já foi, inclusive, sufragado pela CGU no Parecer nº 012/2014/DECOR/CGU/AGU:

 

"15.     A vedação constante do §10 do art. 73 da Lei nº 9.504/97 não pode alcançar os atos administrativos vinculados, em que o âmbito de discricionariedade da autoridade pública é reduzido a zero. Tratando-se de direito do administrado, decorrente do preenchimento dos requisitos previstos em lei, não é dado à Administração Pública negar o seu reconhecimento, sob pena, inclusive, de ser acionada judicialmente.
16.     É de se ressaltar, ainda, que, tendo por escopo a vedação do art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 preservar o equilíbrio do certame eleitoral, não se pode cogitar de sua aplicação ao cumprimento dos direitos subjetivos previstos na legislação, em relação aos quais o Poder Executivo não dispõe da prerrogativa de postergar seu reconhecimento e efetivação. Nada obstante, mesmo os referidos atos vinculados devem ser praticados com observância às regras de conduta dos agentes públicos em período eleitoral, conforme bem alertado pela CONJUR/MP na passagem seguinte:
[...]
17.     Nesse sentido, assistindo razão à CONJUR/MP no ponto em análise, faz-se necessária a complementação do Parecer nº 084/2012/DECOR/CGU/AGU para a finalidade de esclarecer que os atos administrativos vinculados, em que o âmbito de discricionariedade da autoridade pública é reduzido a zero, limitando-se a Administração Pública a reconhecer direito subjetivo do administrado, não se enquadram na vedação do art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97."

 

Observe-se, por fim, que, conforme apontado no Parecer nº 084/2012/DECOR/CGU/AGU as restrições da legislação eleitoral à transferência de bens abrangem não apenas as doações, mas também as cessões, especialmente aquelas que outorgam direitos reais aos seus beneficiários.

 

Por fim, é importante ressaltar que a previsão de encargo nas doações e o fato de as cessões serem realizadas para determinada finalidade não afastam, por si sós, o caráter gratuito da outorga. Afinal, o encargo e a finalidade dizem respeito, em geral, à aplicação do bem a atividade de interesse público desempenhada pelo donatário ou cessionário. Não se trata, via de regra, de uma efetiva contraprestação, com ganho para o doador ou cedente, mas sim de estabelecer o uso a ser dado ao bem, buscando-se, assim, garantir que ele cumpra sua função social.

 

Portanto, o entendimento anteriormente esposado pela Consultoria-Geral da União é consentâneo com a legislação de regência e com o entendimento vigente no Tribunal Superior Eleitoral, devendo ser revigorado, afastando-se o posicionamento adotado pelo Parecer nº 66/2014/DECOR/CGU/AGU.

 

III - CONCLUSÃO

 

Ante o exposto, pode-se concluir o seguinte:

 

I - A disposição do art. 73, §10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, dirige-se à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública diretamente a particulares, não afetando as transferências realizadas entre entes públicos. A estes casos aplica-se o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, vedando-se a destinação de bens a outros entes públicos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral. Tal vedação, porém, não impede as doações realizadas entre entidades que integram a mesma esfera de governo, como por exemplo a doação de bem da União a uma autarquia ou fundação pública federal.

 

II - Não se admite, porém, que a única função do ente público recebedor do bem seja transferi-lo à população diretamente beneficiada, configurando mera intermediação. Por outro lado, isso não obsta a transferência do bem ao ente público para a prática de atos preparatórios que antecederão a efetiva destinação aos beneficiários finais, que só poderá ocorrer fora do período vedado.

 

III - Não são afetadas pelas vedações da legislação eleitoral as transferências que constituem direito subjetivo do beneficiário, nas quais o agente público não dispõe de margem de discricionariedade.

 

IV - O entendimento aqui exposto alcança doações e cessões, sendo que o encargo ou finalidade da outorga não desnatura, por si só, seu caráter gratuito.

 

V - Deve-se orientar o gestor a observar o princípio básico de vedação de condutas dos agentes públicos, de forma a não afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais, sugerindo-se que a divulgação do ato seja a mínima necessária ao atendimento do princípio da publicidade formal – divulgação na Imprensa Oficial -, não sendo recomendada a realização de qualquer solenidade, tais como celebração de cerimônias simbólicas, atos públicos, eventos, reunião de pessoas para fins de divulgação, enfim, qualquer forma de exaltação do ato administrativo, sob pena de responsabilização do agente público que assim proceder.

 

 

 

MARCELO AZEVEDO DE ANDRADE

ADVOGADO DA UNIÃO

MEMBRO RELATOR

 

 

ANDRÉ RUFINO DO VALE                                                  BRUNO ANDRADE COSTA

 

DANIEL ROCHA DE FARIAS                                               JOAQUIM MODESTO PINTO JUNIOR

 

LEONARDO RAUPP BOCORNY                                          LUIZ PALUMBO NETO

 

MANOEL PAZ E SILVA JUNIOR                                          MARCELO AUGUSTO CARMO DE VASCONCELLOS

 

RAFAEL FIGUEIREDO FULGENCIO                                   RAFAEL MAGALHÃES FURTADO

 

TERESA VILLAC PINHEIRO BARKI                                   VANESSA CANEDO PINTO

 

VICTOR XIMENES NOGUEIRA

 

 


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