ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA DA UNIÃO ESPECIALIZADA VIRTUAL DE PATRIMÔNIO
NÚCLEO JURÍDICO


 

PARECER n. 00361/2022/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU

 

NUP: 10154.129388/2022-43.

INTERESSADOS: UNIÃO (MINISTÉRIO DA ECONOMIA/SECRETARIA ESPECIAL DE DESESTATIZAÇÃO, DESINVESTIMENTO E MERCADOS/SECRETARIA DE COORDENAÇÃO E GOVERNANÇA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO/SUPERINTENDÊNCIA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL - ME/SEDDM/SCGPU/SPU-MS) E PASCOALA VARGAS CACERES.

ASSUNTOS: PROCESSO ADMINISTRATIVO. BENS PÚBLICOS. BEM IMÓVEL DE DOMÍNIO DA UNIÃO. BEM IMÓVEL NÃO OPERACIONAL ORIUNDO DA CARTEIRA IMOBILIÁRIA DA EXTINTA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL (RFFSA). CONSULTA FORMULADA. ASSESSORAMENTO JURÍDICO. ORIENTAÇÃO JURÍDICA.

 

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE
DIREITO PÚBLICO. BENS PÚBLICOS. GESTÃO E GOVERNANÇA DO PATRIMÔNIO IMOBILIÁRIO DA UNIÃO. PROCEDIMENTOS OPERACIONAIS PARA A GESTÃO E REGULARIZAÇÃO DE BEM IMÓVEL NÃO OPERACIONAL INTEGRANTE DA CARTEIRA IMOBILIÁRIA DA EXTINTA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S/A (RFFSA).  ASSESSORAMENTO JURÍDICO. CONSULTA FORMULADA. ORIENTAÇÃO JURÍDICA.
I. Consulta. Imóvel não operacional integrante da carteira imobiliária da extinta Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA).
II. Alternativa/medida de regularização. Celebração de Contrato de Compra e Venda definitivo em nome do adquirente original, herdeiro ou sucessor autorizado, após a incorporação do imóvel ao patrimônio da União. Anexo I da Instrução Normativa SPU 01, de 13 de maio de 2010.
III. A Administração Pública somente pode fazer o que a lei lhe ordena, não lhe cabendo conceder direitos em situações diversas das previstas em lei. Princípio da legalidade. Artigo 37, caput, da Constituição Federal, c/c o artigo 2º, caput, da Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
IV. Alternativa/medida de regularização não concluída/finalizada. Necessidade da celebração de Contrato de Compra e Venda definitivo em nome do adquirente originário, herdeiro ou sucessor autorizado. A permanência no imóvel do(s) terceiro(s) ocupante(s) pode caracterizar abstratamente a prática de infração administração contra o patrimônio da União passível de lavratura de Auto de Infração.
V. Propositura de Ação Judicial. Competência da Procuradoria da União no Estado de Mato Grosso do Sul (PU-MS), órgão de execução da Procuradoria-Geral da União (PGU. Responsabilidade pela representação judicial da União perante a 1ª instância da Justiça Federal em Mato Grosso do Sul. Atribuição para avaliar a conveniência e oportunidade do ajuizamento de demanda judicial.
VI. À Consultoria Jurídica da União Especializada Virtual de Patrimônio (e-CJU/PATRIMÔNIO) incumbe orientar os órgãos e autoridades assessorados, quando for o caso, quanto à forma pela qual devem ser cumpridas decisões judiciais que as unidades da Procuradoria-Geral da União (PGU) entendam prontamente exequíveis. Artigo 2º, inciso V (parte final), do seu regimento interno, aprovado pela Portaria E-CJU/PATRIMÔNIO/AGU 1, de 20 de julho de 2020, publicada no Suplementos "B" do Boletim de Serviço Eletrônico (BSE) nº 30, de 30 de julho de 2020.
VII. Necessidade de exaurimento, no âmbito administrativo, da questão referente à transferência do imóvel quitado e vendido pela RFFSA.
VIII. Adoção das providências administrativas necessárias para a localização da contratante originária ou identificação de herdeiro ou sucessor autorizado. Publicação de EDITAL DE NOTIFICAÇÃO para interessado certo não localizado.
IX. Contrato de Promessa de Compra e Venda quitado. Inviabilidade jurídica da rescisão contratual face a ausência de previsão normativa.
X. Observação da(s) recomendação(ões) sugerida (s) nesta manifestação jurídica.

 

 

I - RELATÓRIO

 

O Superintendente da Superintendência do Patrimônio da União no Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio do OFÍCIO SEI  159637/2022/ME, de 26 de maio de 2022, assinado eletronicamente ena mesma data (SEI nº 25146625), disponibilizado a e-CJU/PATRIMÔNIO o link de acesso ao Sistema Eletrônico de informações (SEI) com abertura de tarefa no SAPIENS em 27 de maio de 2022, encaminha o processo para análise e manifestação, nos termos do artigo 11, inciso VI, alínea “b”, da Lei Complementar Federal nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, que instituiu a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União e do artigo 19, incisos I e II, do Ato Regimental AGU nº 5, de 27 de setembro de 2007.

 

Trata-se de solicitação de assessoramento jurídico (orientação jurídica) referente a consulta sobre imóvel não operacional integrante da carteira imobiliária da extinta Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), correspondente ao lote de terreno com área de 474,91 (Quatrocentos e setenta e quatro metros e noventa e um decímetros quadrados), localizado na Rua Euclides da Cunha, lote nº 55, Vila Juquita, Município de Maracaju, Estado do Mato Grosso do Sul, CEP nº 79.150-000, registrado sob a matrícula 8.232, Livro nº 2-RT, do Cartório de Registro de Imóveis do Município de Maracaju-MS  transferido à União nos termos da Lei Federal nº 11.483, de 31 de maio de 2007, objeto de Instrumento Particular de Compromisso (Promessa) de Compra e Venda devidamente quitado (SEI nº 25087393) celebrado, à época, entre a REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S/A - EM LIQUIDAÇÃO, por meio do Escritório Regional de Bauru (ERBAU), na qualidade de promitente vendedora, e a Srª PASCOALA VARGAS CACERES, na qualidade promitente compradora, em razão de leilão realizado pela extinta RFFSA por intermédio do EDITAL Nº 006/ERBAU/99, sendo necessário a celebração de Contrato de Compra e Venda definitivo em nome do adquirente original, herdeiro ou sucessor autorizado para concluir a sua regularização.

 

O processo está instruído com os seguintes documentos:

 

  PROCESSO/DOCUMENTO TIPO  
  25087393 Anexo Instrumento particular de compromisso de compra e    
  25087414 Histórico SARP    
  25087417 Documento inventariança    
  25087421 Planta e matrícula do lote    
  25143290 Matrícula 8232    
  25144078 Despacho    
  25146625 Ofício 159637    
  25148231 E-mail    
  25173608 Ofício n. 00642/2022/CJU-MS/CGU/AGU    
  25174763 Comprovante de encaminhamento à CJU

 

 

II– PRELIMINARMENTE FINALIDADE E ABRANGÊNCIA DO PARECER

 

A presente manifestação jurídica tem o escopo de assessorar a autoridade competente para a prática do ato, para que dele não decorra nenhuma responsabilidade pessoal a ela, e também para que seja observado o princípio da legalidade e os demais que norteiam a atuação da Administração.

 

Desta forma, cercando-se a autoridade de todas as cautelas para a prática do ato, e documentando-as nos autos, a princípio cessa a sua responsabilidade pessoal por eventuais decorrências não satisfatórias.

 

A atribuição da e-CJU/PATRIMÔNIO é justamente apontar possíveis riscos do ponto de vista jurídico e recomendar alguma providência para salvaguardar a autoridade assessorada, a quem, em seu juízo discricionário, compete avaliar a real dimensão do risco e a necessidade de se adotar ou não a cautela recomendada.

 

Disso se conclui que a parte das observações aqui expendidas não passa de recomendações, com vistas a salvaguardar a autoridade administrativa assessorada, e não vinculá-la. Caso opte por não acatá-las, não haverá ilegalidade no proceder, mas simples assunção do risco. O acatamento ou não das recomendações decorre do exercício da competência discricionária da autoridade assessorada.

 

Já as questões que envolvam a legalidade,[1] de observância obrigatória pela Administração, serão apontadas, ao final deste parecer, como óbices a serem corrigidos ou superados. O prosseguimento do feito, sem a correção de tais apontamentos, será de responsabilidade exclusiva do órgão, por sua conta e risco.

 

Por outro lado, é certo que a análise dos aspectos técnicos da demanda sob análise não está inserido no conjunto de atribuições/competências afetas a e-CJU/PATRIMÔNIO, a qual não possui conhecimento específico nem competência legal para manifestar-se sobre questões que extrapolam o aspecto estritamente jurídico.  

 

 

III - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

Para melhor contextualização e compreensão da consulta submetida a apreciação da e-CJU/PATRIMÔNIO, unidade de execução da Consultoria-Geral da União (CGU), Órgão de Direção Superior da Advocacia-Geral da União (AGU), reputo relevante transcrever a íntegra da(s) indagação(ões) formulada(s) pelo Núcleo de Regularização Fundiária e Habitação da Superintendência do Patrimônio da União no Estado de Mato Grosso do Sul (SPU-MS) no DESPACHO SEI 25144078, no qual há um relato da situação fática e do(s) questionamento(s) formulado(s), verbis:

 

"Senhor Superintendente,

 

1. Em análise aos processos e arquivos da inventariança da RFFSA, encontramos a seguinte situação: imóvel não operacional integrante da Carteira Imobiliária, seja lote ou lote e benfeitoria, transferido à União nos termos da Lei 11.483/2007, devidamente quitado, restando a SPU representar a União e concluir o procedimento contratual da venda do lote, feita mediante leilão pela extinta RFFSA, elaborando contrato definitivo de compra e venda ao titular contratante originário, herdeiro ou sucessor autorizado;

 

2. Ocorre que os imóveis quitados estão, em alguns casos, ocupados por terceiros e quartos ocupantes, ou mesmo pelo titular do contrato SARP transferido a União, mas sem ter efetuado a chamada tradição do negócio jurídico efetuado. Conforme art. 1.245, § 1° do Código Civil, enquanto nãos e registrar o título translativo em cartório competente, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

 

3. A tradição solene possui função constitutiva de direito real. 

 

4. Em regra, a obrigação da SPU é proceder com todos os atos administrativos visando emitir Termo de Quitação e elaborar um Contrato Definitivo de Compra e Venda em substituição aos compromissos de compra e venda assinados pela RFFSA; 

 

5. Como dito em parte do item 2, estamos nos deparando com situações um tanto incomum: terceiros ocupantes, que compraram a posse de forma precária ou que locam o imóvel, vem a esta SPU em busca de regularização fundiária, ou mesmo reconhecimento precário de utilização do bem da União. 

 

6. Destacamos que para os casos de imóveis registrados em nome da ex-RFFSA ou de suas antecessoras, em conformidade com o princípio da continuidade registral, solicitamos a incorporação ao patrimônio da União. 

 

7. A nosso ver, como se trata de imóvel quitado, transferido nos termos da Lei que extinguiu a RFFSA, não caberia a SPU promover qualquer ato de regularização dos ocupantes, pois o Anexo I e II da IN SPU 001/2010, para os casos de Promessas de Compra e Venda, com contrato quitados, e registrados em nome da RFFSA e suas antecessoras, a SPU/União deve utilizar a seguinte alternativa/medida de regularização: 

 

"Celebração de contrato de compra e venda definitivo em nome do adquirente original, herdeiro ou sucessor autorizado, após a incorporação do imóvel ao patrimônio da União."

 

8. Logo, depreende-se  da transcrição acima o não cabimento de outra medida de regularização em favor do ocupante atual, que não seja promover os meios necessários  para transferir a propriedade do imóvel aos
Noutro ponto, para os casos de contratos não quitados e inadimplentes ou mesmo com dívidas prescritas, é permitida a rescisão do contrato originário e aplicação de instrumento de regularização fundiária do ocupante atual.   

 

9. Destaca-se também que conforme previsão da IN SPU 01/2010, não se permite a rescisão para os casos de contratos de compra e venda totalmente quitados. Não é possível atender um pedido de regularização fundiária de terceiro ocupante de imóvel vendido pela RFFSA e quitado, mas ainda em nome da União.

 

10. Em alguns casos específicos, a SPU não tem notícia do contratante originário, como o caso processo em análise. A senhora Pascoala Vargas Caceres, compradora do Lote 55 da Vila Juquita em Maracaju/MS, encontra-se em local incerto e não sabido. Seu imóvel, devidamente quitado, encontra-se ocupado por três famílias, que recentemente buscaram via telefone esta SPU para esclarecimento quanto a possibilidade de regularização fundiária, notadamente por meio do REURB. 

 

11. Enquanto o imóvel estiver em nome da União e ocupado por terceiros, com pedido de regularização fundiária, caberia alguma medida precária para reconhecer a utilização, como por exemplo o Instrumento da Inscrição de Ocupação, previsto na Lei 9636/1998?

 

12. Pelo princípio da continuidade registral, a SPU não tem outra alternativa senão incorporar o imóvel ao patrimônio da União, haja visto também os ditames da IN SPU 001/2010. 

 

13. Como o imóvel quitado e atualmente registrado em nome da União, o terceiro ocupante é considerado irregular e passível de autuação, nos termos da IN SPU 23/2020 (Fiscalização de imóveis da União)?  Consideramos para tal fim o art. 1.245, § 1° do Código Civil.

 

14. A União, sabendo das suas responsabilidades contratuais, pode ingressar no medida judicial com Ação de Obrigação de Fazer, visando transferir compulsoriamente e em definitivo o imóvel quitado e vendido pela RFFSA ao contratante originário, herdeiro ou sucessor autorizado, independente da situação ocupacional do imóvel?

 

15. Haveria meio legal para rescindir o contrato de compra e venda quitado, por inércia ou desconhecimento  do contratante originário? Em alguns casos, seria possível o uso de Edital de Convocação para busca de contrato definitivo de compra e venda e termo de quitação?

 

16. Sendo possível a rescisão contratual, poderia a SPU encaminhar algum procedimento visando a regularização fundiária do ocupante atual?

 

17. Destacamos, por fim, que está SPU permanece respondendo administrativamente e judicialmente por imóveis vendidos pela RFFSA e quitados, em situações de abandono e/ou risco de desabamento por deterioração, mesmo com todo o histórico contado acima."

 

 

Considerando as questões suscitadas, procederei a análise da solicitação de assessoramento jurídico (orientação jurídica) relacionada ao(s) seguinte(s) questionamento(s) formulado(s):

 

 

a) Enquanto o imóvel estiver em nome da União e ocupado por terceiros, com pedido de regularização fundiária, caberia alguma medida precária para reconhecer a utilização, como por exemplo o Instrumento da Inscrição de Ocupação, previsto na Lei 9636/1998?

 

A escolha do instrumento a ser adotado para regularização fundiária de interesse social dos imóveis objeto dos contratos da carteira imobiliária da extinta RFFSA será orientada pela tabela constante do Anexo I da Instrução Normativa SPU nº 01, de 13 de maio de 2010, sem prejuízo da aplicação de outros instrumentos previstos na legislação patrimonial da União, desde que observados os critérios e as diretrizes gerais do Programa de Regularização Fundiária de Imóveis da União e os previstos na Instrução Normativa (art. 5º da IN SPU nº 001/2010).

 

Dentre as possibilidades/alternativas para regularização de imóveis da carteira imobiliária enquadrados no Programa de Regularização Fundiária de Interesse Social aplicáveis aos Contratos de Promessa de Compra e Venda quitados cuja situação jurídico-dominial do imóvel corresponda a "registrado em nome da RFFSA ou se suas antecessoras" e esteja atualmente ocupado por terceiro, o Anexo I da Instrução Normativa SPU nº 01, de 13 de maio de 2010, contempla como alternativa/medida de regularização a celebração de Contrato de Compra e Venda definitivo em nome do adquirente original, herdeiro ou sucessor autorizado, após a incorporação do imóvel ao patrimônio da União.

 

É preceito basilar do regime jurídico-administrativo a observância ao princípio da legalidade ao qual está sujeita inexoravelmente a Administração Pública, conforme se depreende do artigo 37, caput, da Carta Magna de 1988.

 

O princípio da legalidade administrativa significa a sujeição do Estado ao império da lei, entendida esta como a “expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição”.[2]

 

A dimensão que se dá a esse princípio também é distinta da aplicável no âmbito das relações privadas. Se no campo do direito privado é lícito aquilo que não é vedado por lei, na área do direito administrativo, somente é lícito aquilo que a lei expressamente determina como tal.

 

O princípio da legalidade implica a subordinação completa do administrador à lei. Todos os agentes públicos, desde o que ocupa o cargo de mais elevado escalão até o mais modesto deles, devem ser instrumentos de fiel realização das finalidades normativas. 

 

Na clássica comparação de Hely Lopes Meirelles, enquanto para indivíduos na esfera privada tudo o que não está juridicamente proibido está juridicamente facultado, nos termos do clássico brocardo cuique facere licet quid jure prohibitur, a Administração Pública somente pode fazer o que a lei lhe ordena, estando adstrita ao cumprimento do preciso fim por ela assinalado, conforme a parêmia prohibita intelliguntur quod non permissumnão lhe cabendo, portanto, conceder direitos em situações diversas das previstas em lei, ex vi o que preceitua o princípio da legalidade insculpido no artigo 2º, caput, da Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal direta e indireta, verbis:

 

(...)

 

CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

 

"Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência." (destacou-se)

 

 

É de extrema importância apreciar o efeito do princípio da legalidade no que tange aos direitos dos indivíduos. Na verdade, o princípio se reflete na consequência de que a própria garantia desses direitos depende de sua existência, autorizando-se então, os indivíduos à verificação do confronto entre a atividade administrativa e a lei. A conclusão é inabalável no sentido de que havendo dissonância entre a conduta e a lei, deverá aquela ser corrigida para eliminar-se a ilicitude.

 

Sendo certo que na Administração Pública não liberdade nem vontade pessoal e as leis e as normas são de ordem pública, não podendo ser descumpridos os seus preceitos, nem mesmo por acordo ou vontade conjunta de seus aplicadores e destinatários.

 

Nesta linha de entendimento, o escólio do eminente Hely Lopes Meirelles,[3] abaixo reproduzido:

 

(...)

 

“A legalidade, como princípio da administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

 

A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei.

 

Na Administração Pública não liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “poder fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.” (grifou-se)

 

 

No mesmo sentido a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:[4]

 

(...)

 

"3.4 PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

 

3.4.1 Legalidade

 

Este princípio, juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.

 

É aqui que melhor se enquadra aquela ideia de que, na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei.

 

Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe. Essa é a ideia expressa de forma lapidar por Hely Lopes Meirelles (2003:86) e corresponde ao que já vinha explícito no artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei”.

 

No direito positivo brasileiro, esse postulado, além de referido no artigo 37, está contido no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal que, repetindo preceito de Constituições anteriores, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

 

Em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei". (os destaques não constam do original).

 

 

Considerando a(s) alternativas(s) para regularização fundiária de interesse social dos imóveis objeto dos contratos da carteira imobiliária da extinta RFFSA previstos no Anexo I da Instrução Normativa SPU nº 01, de 13 de maio de 2010, em cotejo com o princípio da legalidade que rege a atividade administrativa, reputo não ser juridicamente viável a aplicação ao caso concreto, data vênia de entendimento divergente, da medida aventada (inscrição de ocupação) no DESPACHO SEI 25144078.

 

 

b) Como o imóvel quitado e atualmente registrado em nome da União, o terceiro ocupante é considerado irregular e passível de autuação, nos termos da IN SPU 23/2020 (Fiscalização de imóveis da União)? 

 

Enquanto não for implementada a alternativa/medida de regularização consistente na celebração de Contrato de Compra e Venda definitivo em nome do adquirente originário, herdeiro ou sucessor autorizado, e caso o imóvel tenha sido incorporado[5] ao patrimônio da União, a permanência do(s) terceiro(s) ocupante(s) do imóvel pode caracterizar abstratamente a prática de infração administração contra o patrimônio da União passível de eventual lavratura de Auto de Infração.

 

Todavia, o artigo 24, caput, inciso I, da Instrução Normativa SPU nº 01, de 13 de maio de 2010, "dispensa a incorporação prévia ao patrimônio da União de imóvel proveniente da extinta RFFSA na formalização dos atos de substituição dos contratos de promessa (compromisso) de compra e venda tendo por objeto imóveis em terrenos alodiais registrados em nome da extinta RFFSA ou de suas antecessoras, por contratos definitivos de compra e venda".

 

 

c) A União, sabendo das suas responsabilidades contratuais, pode ingressar no medida judicial com Ação de Obrigação de Fazer, visando transferir compulsoriamente e em definitivo o imóvel quitado e vendido pela RFFSA ao contratante originário, herdeiro ou sucessor autorizado, independente da situação ocupacional do imóvel?

 

A Advocacia-Geral da União (AGU) nos termos da Lei Complementar Federal nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, possui diversos órgãos de direção e de execução. No Estado do Mato Grosso do Sul, dentre outros, dois órgãos de execução se destacam: a Consultoria Jurídica da União (CJU-MS) e a Procuradoria da União (PU-MS), sendo o primeiro incumbido de prestar assessoramento e consultoria jurídica aos órgãos e autoridades da administração federal direta no Estado, bem como representar a União extrajudicialmente, e o segundo tem a incumbência de representar a União judicialmente na  instância da Justiça Federal da Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul.

 

A propositura de Ação Judicial compete à Procuradoria da União no Estado de Mato Grosso do Sul (PU-MS), órgão de execução da Procuradoria-Geral da União (PGU), responsável pela representação judicial da União, a quem compete avaliar a conveniência e oportunidade do ajuizamento de demanda judicial.

 

À Consultoria Jurídica da União Especializada Virtual de Patrimônio (e-CJU/PATRIMÔNIO) incumbe orientar os órgãos e autoridades assessorados, quando for o caso, quanto à forma pela qual devam ser cumpridas decisões judiciais que as unidades da Procuradoria-Geral da União (PGU) entendam prontamente exequíveis, conforme preceitua o artigo 2º, inciso V (parte final), do seu Regimento Interno, aprovado pela Portaria E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU  1, de 20 de julho de 2020, publicada no Suplemento "B" do Boletim de Serviço Eletrônico (BSE) nº 30, de 30 de julho de 2020.

 

Entretanto, antes de se cogitar do ajuizamento de Ação Judicial, entendo necessário exaurir, no âmbito administrativo, a  questão referente à transferência do imóvel quitado e vendido pela RFFSA.

 

Para alcançar tal desiderato, recomendo a SPU-MS adotar as providências administrativas necessárias para tentar localizar a contratante originária ou identificar herdeiro ou sucessor autorizado, mediante a publicação de EDITAL DE NOTIFICAÇÃO para interessado certo não localizado.

 

 

d) Haveria meio legal para rescindir o contrato de compra e venda quitado, por inércia ou desconhecimento  do contratante originário?

 

A Instrução Normativa SPU nº 01, de 13 de maio de 2010, em seu artigo 18, inciso III, prevê a possibilidade, sem prejuízo de eventual indenização, de rescisão de contrato de promessa de compra e venda tendo por objeto imóvel localizado em terrenos marginas, de marinha ou acrescido de marinha.

 

Com fundamento nas informações existentes no processo, aparentemente o imóvel não está localizado em terrenos marginas, de marinha ou acrescido de marinha.

 

Tratando-se de imóvel da carteira imobiliária da RFFSA e registrado em seu nome ou de suas antecessoras, enquadrado no Programa de Regularização Fundiária de Interesse Social e ocupado por terceiro, o Anexo I da Instrução Normativa SPU nº 01, de 13 de maio de 2010, permite a rescisão apenas na hipótese de Contrato de Promessa de Compra e Venda não quitado (inadimplente), e no caso de inexistir interesse pela renegociação admite a utilização do instrumento de regularização fundiária em favor do ocupante atual, após quitação plena do débito existente e a incorporação do imóvel ao patrimônio da União.

 

Partindo da premissa de que no caso concreto versa sobre Contrato de Promessa de Compra e Venda quitado, não seria juridicamente possível a rescisão contratual face a ausência de previsão normativa.

 

 

e) Em alguns casos, seria possível o uso de Edital de Convocação para busca de contrato definitivo de compra e venda e termo de quitação?

 

A recente Instrução Normativa SPU/SEDDM/ME 28, de 26 de abril de 2022, que estabelece os critérios e procedimentos para a demarcação de terrenos de marinha, terrenos marginais e seus respectivos acrescidos, bem como orienta a identificação das áreas de domínio da União dispostas nos incisos III, IV, VI e VII do Artigo 20 da Constituição Federal de 1988, prevê que a Superintendência do Patrimônio da União da unidade federativa, no âmbito de sua competência no processo de demarcação, adotará a(s) seguinte(s) providência(s) em relação aos interessados não localizados e incertos:

 

"CAPÍTULO II
DOS PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS
SEÇÃO I
DA ABERTURA DO PROCESSO

 

Art. 23. A Superintendência, no âmbito de sua competência no processo de demarcação:

 

V - realizará a notificação pessoal dos interessados certos localizados e por edital dos interessados não localizados e incertos;"

 

 

A Instrução Normativa SPU/SEDDM/ME 28 de abril de 2022, em seu artigo 25, preceitua que a publicação do Edital pode ocorrer em jornal de grande circulação nos municípios abrangidos pelo trecho a ser demarcado e no Diário Oficial da União (DOU).

 

A SPU-MS pode e deve utilizar subsidiariamente o MODELO DE MINUTA DE EDITAL DE NOTIFICAÇÃO AO INTERESSADO CERTO NÃO LOCALIZADO previsto no Anexo XI da referida IN.

 

 

f) Sendo possível a rescisão contratual, poderia a SPU encaminhar algum procedimento visando a regularização fundiária do ocupante atual?

 

Conforme razões expostas  na resposta à indagação formulada na letra "d", não é juridicamente possível a utilização da rescisão contratual ao caso concreto.

 

 

Destaco que a análise aqui empreendida circunscreve-se aos aspectos legais envolvidos, não incumbido a esta unidade jurídica imiscuir-se no exame dos aspectos de economicidade, oportunidade, conveniência, assim como os aspectos técnicos envolvidos, conforme diretriz inserta na Boa Prática Consultiva (BPC) 7.[6]

 

Tal entendimento está lastreado no fato de que a prevalência do aspecto técnico ou a presença de juízo discricionário determinam a competência e a responsabilidade da autoridade administrativa pela prática do ato.

 

Neste sentido, a Boa Prática Consultiva (BPC) 7, cujo enunciado é o que se segue:

 

"Enunciado

 

A manifestação consultiva que adentrar questão jurídica com potencial de significativo reflexo em aspecto técnico deve conter justificativa da necessidade de fazê-lo, evitando-se posicionamentos conclusivos sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, podendo-se, porém, sobre estes emitir opinião ou formular recomendações, desde que enfatizando o caráter discricionário de seu acatamento." (grifou-se)

 

 

IV - CONCLUSÃO

 

Em face do anteriormente exposto, observado a(s) recomendação(ões) sugerida(s) no(s) item(ns) "13.", "23.", "24.", "25.", "30." "34.",  "37." e "39." desta manifestação jurídica, abstraídos os aspectos de conveniência e oportunidade do Administrador, nos limites da lei, e as valorações de cunho econômico–financeiro, ressalvadas, ainda, a manutenção da conformidade documental com as questões de ordem fática, técnica e de cálculo, ínsitas à esfera administrativa, essenciais até mesmo para a devida atuação dos órgãos de controle, o feito está apto para a produção dos seus regulares efeitos, tendo em vista não conter vício insanável com relação à forma legal que pudesse macular o procedimento.

 

Com o advento da Portaria AGU 14, de 23 de janeiro de 2020, publicada no Diário Oficial da União (DOU) nº 17, Seção 1, de 24 de janeiro de 2020 (Sexta-feira), páginas 1/3, que cria as Consultorias Jurídicas da União Especializadas Virtuais (e-CJUs) para atuar no âmbito da competência das Consultorias Jurídicas da União nos Estados, as manifestações jurídicas (pareceres, notas, informações e cotas) não serão objeto de obrigatória aprovação pelo Coordenador da e-CJU, conforme estabelece o parágrafo 1º do artigo 10 do aludido ato normativo.

 

Feito tais registros, ao protocolo da Consultoria Jurídica da União Especializada Virtual de Patrimônio (e-CJU/PATRIMÔNIO) para restituir o processo a Superintendência do Patrimônio da União no Estado de Mato Grosso do Sul (SPU-MS) para ciência desta manifestação jurídica, mediante disponibilização de chave (link) de acesso externo como usuário externo ao Sistema AGU SAPIENS, bem como para adoção da(s) providência(s) pertinente(s).

 

 

Vitória-ES., 10 de junho de 2022.

 

 

(Documento assinado digitalmente)

 Alessandro Lira de Almeida

Advogado da União

Matrícula SIAPE nº 1332670


Atenção, a consulta ao processo eletrônico está disponível em http://sapiens.agu.gov.br mediante o fornecimento do Número Único de Protocolo (NUP) 10154129388202243 e da chave de acesso 6f9f1fff

Notas

  1. ^ "LEGALIDADE - A legalidade é o princípio fundamental da Administração, estando expressamente referido no art. 37 da Constituição Federa. De todos os princípios é o de maior relevância e que mais garantias e direitos assegura aos administrados. Significa que o administrador só pode agir, de modo legítimo, se obedecer aos parâmetros que a lei fixou. Tornou-se clássica a ideia realçada por HELY LOPES MEIRELLES, de rara felicidade, segundo o qual "na Administração Pública não liberdade nem vontade pessoal", concluindo que "enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não autoriza". CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal - Comentários à Lei 9.784, de 29.1.1999. 5ª Ed., revista, ampliada e atualizada até 31.3.2013. São Paulo: Atlas, 2013, p. 47.
  2. ^ DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 367.
  3. ^ MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 82.
  4. ^ DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 34ª Ed., revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 110.
  5. ^ "INSTRUÇÃO NORMATIVA SPU 01, DE 13 DE MAIO DE 2010 (Estabelece os procedimentos operacionais para a gestão e regularização dos bens imóveis não operacionais integrantes da Carteira Imobiliária da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. - RFFSA.CAPÍTULO IDAS DISPOSIÇÕES GERAIS(...)Art. 2º Para os fins do disposto nesta Instrução Normativa, entende-se por:(...)V - incorporação: ato formal pelo qual um bem passa a integrar o patrimônio da União;"
  6. ^ Manual de Boas Práticas Consultivas. 4ª Ed., revista, ampliada e atualizada. Brasília: AGU, 2006.



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