ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CÂMARA NACIONAL DE DIREITO ELEITORAL - CNDE/DECOR/CGU
PARECER n. 00015/2022/CNDE/CGU/AGU
NUP: 08664.008522/2022-71
INTERESSADOS: UNIÃO - SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - SRPRF/RN
ASSUNTOS: DOAÇÃO
EMENTA: CONDUTAS VEDADAS AOS AGENTES PÚBLICOS EM CAMPANHAS ELEITORAIS. SUPERVENIÊNCIA DE LEI NOVA, EXCEPCIONALIZANDO UMA PROIBIÇÃO. ANUALIDADE ELEITORAL. CARÁTER PROVISÓRIO DA LDO.
1. O art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, introduziu importantes exceções outrora inexistentes, autorizando a realização de alguns tipos de doações e cessões que, antes, eram proibidas. Ausência de natureza meramente interpretativa.
2. A regra da anualidade eleitoral se aplica às alterações legislativas e também às mudanças na jurisprudência eleitoral
3. O art. 16 da Constituição busca "impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas, aptas a romperem a igualdade da participação dos que nele atuem como protagonistas principais" (ADIN 3.345, relatada pelo Ministro Celso de Melo).
4. Incidência do art. 16 da Constituição ao art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, pois esse último relativiza regra direcionada ao combate do desvio de poder e que resguarda a igualdade de oportunidades entre os candidatos.
5. O art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, não tem eficácia antes de finda a eleição do ano em curso, dado incidir sobre ele a regra da anualidade eleitoral (art. 16 da Constituição), nem poderá ser aplicado às eleições futuras, dado o caráter provisório da Lei nº 14.194/2021 (Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2022).
Senhor Diretor do DECOR,
- I -
Trata-se da análise conjunta das NUPs 08664.008522/2022-71, 19739.147636/2021-51 e 25004.001514/2022-97. Em todos esses processos, se discute os efeitos do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022.
Na NUP 08664.008522/2022-71, o Superintendente da Polícia Rodoviária Federal no Rio Grande do Norte, por meio do OFÍCIO Nº 773/2022/SPRF-RN (seq. 01 da NUP 08664.008522/2022-71), noticia o pedido formulado pelo Prefeito de Natal, de doação de 9 (nove) carabinas TAURUS - SMT calibre .40 à respectiva Guarda Municipal (seq. 04 da NUP 08664.008522/2022-71, fl. 01 do documento eletrônico). Estes equipamentos seriam considerados ociosos e inservíveis para a administração pública federal (seq. 04 da NUP 08664.008522/2022-71, fls. 30 a 31 do documento eletrônico).
Dada a iminência das eleições, a autoridade policial veiculou dois questionamentos:
I - A alteração legislativa promovida pela lei nº 14.435 de 4 de agosto de 2022 no art. 81-A da lei nº 14.194 de 20 de agosto de 20211 retira o óbice da doação de bens públicos a entes públicos de outra esfera durante o período defeso eleitoral?
II - Podemos considerar o tópico "OBRIGAÇÕES DO DONATÁRIO", constante da minuta de termo de doação, bem assim o emprego na segurança pública do armamento que se pretende doar como a imposição de uma incumbência de interesse geral ao donatário, apto a se configurar como o encargo descrito na novel dicção do art. 81-A da lei nº 14.194/21, que tem a capacidade de afastar a proibição estampada no § 10, do art. 73, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997? (grifos no original)
A Consultoria Jurídica da União Especializada Virtual Residual, por meio da NOTA n. 00255/2022/VRD/ADVS/E-CJU/RESIDUAL/CGU/AGU (seq. 06 da NUP 08664.008522/2022-71), cotejou o art. 73, inciso VI, letra "a" e § 10 da Lei nº 9.504/1997 com o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, cuja redação foi dada pela Lei nº 14.435/2022.
Rememorou, primeiramente, o entendimento constante da Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016, fruto do raciocínio construído pelo Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU (seq. 33 da NUP 59000.000294/2014-26) e reiterado pelo Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU (seq. 141 da NUP: 59000.000294/2014-26). Segundo essas manifestações, "A disposição do art. 73, §10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, dirige-se à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública diretamente a particulares, não afetando as transferências realizadas entre entes públicos. A estes casos aplica-se o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, vedando-se a destinação de bens a outros entes públicos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral".
Após expor a literalidade da nova redação do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, dada pela Lei nº 14.435/2022, a Consultoria Jurídica da União Especializada Virtual Residual afirmou que o aludido dispositivo tem efeitos retroativos, abarcando todo o ano de 2022, tendo alterado, também, a uniformização de entendimentos constante do Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU e do Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU. Agora, a doação poderia ser feita a entidades privadas e públicas, desde que se trate de doação com encargo. Ressalvou a incolumidade da hipótese constante inciso VI, letra "a", do art. 73 da Lei nº 9.504/997, estando proibida a destinação de bens a outros entes públicos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral.
Por fim, afirmou a incumbência de usar o armamento em segurança pública não poderia ser considerado um encargo à doação.
A NOTA n. 00255/2022/VRD/ADVS/E-CJU/RESIDUAL/CGU/AGU foi aprovada pelo DESPACHO n. 00069/2022/COORD/E-CJU/RESIDUAL/CGU/AGU (seq. 07 da NUP 08664.008522/2022-71), o qual reencaminhou os autos a esta Consultoria-Geral da União, dado que o entendimento firmado revisitava tema abordado pelos pareceres uniformizadores citados alhures.
Na NUP 25004.001514/2022-97, a Superintendência Estadual do Ministério da Saúde em São Paulo solicitou orientações a respeito da aplicabilidade do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, em especial quanto a "possibilidade de se fazer doação nesse exercício de 2022" (seq. 01 da NUP 25004.001514/2022-97).
A Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde lançou o PARECER n. 00726/2022/CONJUR-MS/CGU/AGU (seq. 10 da NUP 25004.001514/2022-97), prontificando-se a verificar a aplicabilidade imediata do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022. Após afirmar a natureza eleitoral do dispositivo (item 13), apontou o entendimento constante do Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU, segundo o qual "a existência de encargos não desnatura o negócio jurídico, que continua sendo gratuito". Por esse motivo, a doação com encargo deveria se submeter ao disposto no §10 do art. 73 da Lei nº 9.507/1997, não possuindo natureza meramente interpretativa. Via de consequência, o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, deveria se submeter à regra da anualidade eleitoral (art. 16 da Constituição).
O PARECER n. 00726/2022/CONJUR-MS/CGU/AGU foi aprovado pelo DESPACHO n. 03665/2022/CONJUR-MS/CGU/AGU (seq. 11 da NUP 25004.001514/2022-97), que acresceu àqueles argumentos o de que "o termo Processo Eleitoral não tem significado apenas formal, relativo aos atos que irão resultar na eleição de um candidato, mas sim material, abrangendo todo o contexto em que se realizará a disputa".
Por último, na NUP 19739.147636/2021-51, a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União do Ministério da Economia solicitou orientação jurídica a respeito dos seguintes pontos (seq. 62 da NUP 19739.147636/2021-51):
a) se, diante da promulgação da Lei nº 14.435, de 4 de agosto de 2022, a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União estaria autorizada a celebrar os atos de destinação que até então estavam sendo considerados como enquadrados nas vedações de que trata § 10, do art. 73, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, nos termos do Parecer -Plenário nº 002/2016-CNU-Decor/CGU/AGU (21182350);
b) se sim, haveria alguma recomendação específica complementar para a celebração de tais atos, além de não promover solenidades; e
c) se a excepcionalidade de que trata o art. 81-A da Lei nº 14.194, de 20 de agosto de 2021 valeria somente para o presente exercício.
A Coordenação-Geral de Patrimônio Imobiliário da União da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional abordou aqueles questionamentos por meio do PARECER n. 00535/2022/PGFN/AGU (seq. 63 da NUP 19739.147636/2021-51). Primeiro, rememorou o conteúdo da Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016 e do Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU. Sustentou que a literalidade do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, afastou a incidência do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997 das doações com encargo.
Tomando por base a interpretação firmada pelo Parecer-Plenário nº 002/2016-CNU-Decor/CGU/AGU, segundo o qual aplicar-se-ia o art. 73, inciso VI, alínea "a", da Lei nº 9.504/1997 às doações da União a outros entes públicos, sustentou que o novo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, seria incompatível com o referido art. 73, inciso VI, alínea "a", da Lei nº 9.504/1997.
O novo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, alcançaria, também, as cessões de uso tratadas pelo art. 18 da Lei nº 9.636/1998, outrora interpretadas como modalidade de transferência gratuita, não fazendo sentido que "a doação com encargo, espécie de transferência gratuita mais favorável aos beneficiários, seja autorizada no período eleitoral, mas as cessões de uso não sejam permitidas", superando a Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016 neste particular. Acrescentou que incide sobre o cessionário obrigação semelhante àquela que recai sobre o beneficiário de doação onerosa.
Arrematou afirmando que, nos casos em que a cessão se der sem a indicação de finalidade ou quando a doação estivesse desacompanhada de encargo, não incidiria o disposto no novo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022. Ao final, afirmou ser certo a vigência do referido dispositivo ao presente ano eleitoral de 2002.
É o suficiente à guisa de relatório. Passo a opinar.
- II -
A questão decorre do novo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022:
Art. 81-A. A doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública a entidades privadas e públicas, durante todo o ano, e desde que com encargo para o donatário, não se configura em descumprimento do § 10, do art. 73, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.
A literalidade do aludido dispositivo aponta a sua pretensão de alterar o espectro de incidência do § 10, do art. 73, da Lei nº 9.504/1997, verbis:
Art. 73 - (...)
§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.
O art. 73, da Lei nº 9.504/1997 direciona-se a garantir a legitimidade das eleições populares. Dentro desse contexto, uma das práticas malquistas é o abuso do poder político e/ou econômico. A ideia é combater o desvirtuamento do interesse público em privado, seja por uso do poder com fulcro a restringir a liberdade do voto, seja violando a impessoalidade administrativa, seja se apropriando de recursos públicos com fins eleitorais. Enfim, busca-se resguardar a igualdade de oportunidade entre os candidatos.
O aludido dispositivo de lei elenca as condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais. O §10º, do art. 73, da Lei nº 9.504/1997 proíbe a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios por parte da Administração Pública durante o ano em que se realizar eleição. Foram veiculadas três exceções, as quais não despertam interesse ao presente estudo, vez que desimportantes ao que pretende o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022.
Este art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022 veiculou uma nova exceção ao conteúdo do §10º, do art. 73, da Lei nº 9.504/1997: se houver encargo ao donatário, não mais incide a proibição de doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública a entidades privadas e públicas, durante o ano em que se realizar a eleição.
Apresentada a amplitude objetiva da nova redação do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, deve-se cotejá-la com as orientações antecedentes no seio da Advocacia-Geral da União. Esta estratégia permitirá verificar se o aludido dispositivo veicula alguma inovação no ordenamento jurídico, ou se apenas consolida orientação preexistente. Alcançada essa conclusão, será possível investigar a eventual incidência da regra da anualidade eleitoral.
- III -
A proibição de se efetuar doações no ano eleitoral foi objeto do Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU e do Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU.
O primeiro reafirmou a inteligência do Parecer nº 3/2012/CGU/AGU segundo o qual a proibição veiculada pelo art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 não proíbe a distribuição de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública entre entes públicos, sob o fundamento de equiparar a doação de bens entre entes públicos à transferência voluntária de recursos. Em reforço a esse entendimento, apresentou a incoerência do seguinte cenário hipotético:
43. Caso se entenda que a doação do terreno da União ao município é alcançada pelo disposto no art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97, essa transferência patrimonial não poderia ocorrer durante todo o ano em que se realizar eleições, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, portanto. Contudo, tendo em vista o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, a União poderia firmar um convênio com a prefeitura até 3 meses antes do pleito, transferindo-lhe recursos financeiros para a aquisição de um terreno similar, possibilitando, assim, a construção da creche.
Por entender que, no exemplo dado, seria mais razoável a doação do imóvel da União que a transferência de recursos para que a prefeitura pudesse adquirir um terreno similar (dado o cumprimento da função social do imóvel da União e otimização da gestão dos recursos públicos), concluiu que o art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 "dirige-se à distribuição gratuita e discricionária diretamente a particulares, incluídas as doações com encargo e cessões, não alcançando os atos vinculados em razão de direito subjetivo do beneficiário e as transferências realizadas entre órgãos públicos do mesmo ente federativo ou as que envolvam entes federativos distintos, observando-se neste último caso o disposto no inciso VI, alínea "a", do mesmo artigo, que veda transferências nos três meses anteriores ao pleito eleitoral".
Em suma, submeteu a doação de bens da União a outros entes públicos à vedação prevista no art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97, ressalvando, ao final, a não incidência dessa proibição à doação entre entidades que integram a mesma esfera federativa, dada a expressa dicção do art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97, e às transferências que decorrem de comando legal e que constituem direito subjetivo do beneficiário.
Ao final, afirmou que "a previsão de encargo nas doações e o fato de as cessões serem realizadas para determinada finalidade não afastam, por si sós, o caráter gratuito da outorga", pois o encargo não é contraprestação, mas apenas garantia de aplicação do bem em consonância ao interesse público.
O Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU reiterou os termos do Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU. Segundo afirma, a intenção do art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 seria proibir a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública diretamente a particulares, não alcançando as "transferências realizadas entre entes públicos, seja mediante doações ou cessões".
Merece destaque o fato de o Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU ter sido confeccionado por provocação da Procuradoria-Geral da União, segundo a qual a doação ou a cessão de bens entre diferentes entes públicos não poderia ser equiparado a uma transferência voluntária de recursos, bem como não poderia ser proibida, se gravada de encargo ou contraprestação. Este fato é importante, pois evidencia ter sido discutido se a natureza da doação com encargo e da cessão com finalidade vinculada desvirtuaria ou não o caráter gratuito dos mesmos.
A conclusão alcançada foi de que "(...) a aposição de obrigação ou estipulação de finalidade da doação não lhe retira a gratuidade, visto que a contraprestação não reveste caráter econômico, ou de preço, o que preserva a sua essência voluntarista e de benefício ao donatário". O argumento utilizado foi de que a doação continua sendo negócio jurídico gratuito, independentemente de estar ou não gravada de encargo.
Estabelecida essa premissa, o Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU reafirmou que a doação de bens da União a outros entes públicos não atinge o bem público protegido pelo art. 73, §10, da Lei nº 9.504/1997, qual seja, a igualdade de condições entre os candidatos. Paralelamente a isso, dada a pretensão do art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97 de evitar o uso político das transferências voluntárias de recursos, o mesmo deveria ser aplicável às doações "sejam onerosas ou não, visto terem o mesmo elemento volitivo e semelhante impacto potencial (ou presumido legalmente) na disputa em sufrágio":
29. Se a doação possui encargo ou se constitui de forma pura, não se verifica razão suficiente para afastá-la desta vedação, já que a mens legis do dispositivo, quando conjugada com todo o art. 73 da Lei nº 9.504, de 1997 é o de evitar qualquer espécie de negócio jurídico que, direta ou indiretamente, possa acarretar vantagem ou fator de promoção pessoal de agentes públicos.
30. Daí que se as transferências voluntárias estão abarcadas nessa espécie de vedação, por lógica interpretativa também devem ser inseridas as doações, sejam onerosas ou não, visto terem o mesmo elemento volitivo e semelhante impacto potencial na corrida eleitoral (o mesmo raciocínio já exposto no Parecer nº 3/2012/CGU/AGU), a fim de se preservar a teleologia da norma em comento, qual seja, estabelecer condições igualitárias, ou presumidamente igualitárias, entre os concorrentes.
Feito esse breve relato, é possível afirmar que, naquilo que interessa aos presentes autos, antes da superveniência do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, a Advocacia-Geral da União consolidou os seguintes entendimentos: A) o art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 dirige-se à distribuição gratuita e discricionária diretamente a particulares, incluídas as doações com encargo e cessões; B) incide sobre as doações com encargo e cessões firmadas entre entes integrantes de diferentes unidades federativas distintos o disposto no art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97, que veda transferências nos três meses anteriores ao pleito eleitoral (equiparou-se a doação de bens entre entes públicos à transferência voluntária de recursos); C) o art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97 seria aplicável às doações e cessões de uso, ainda que gravadas de encargo e com finalidade vinculada.
A equiparação que foi feita entre as doações com encargo e cessões firmadas entre entes integrantes de diferentes unidades federativas distintas com o tipo previsto no art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97 (que veda transferências voluntárias no período de defeso eleitoral) traz, por arrasto, o prazo estabelecido nesse último. Se o art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 proíbe doação de bens, valores ou benefícios durante todo o ano em que se realizar a eleição, o art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97 concentra os seus efeitos aos três meses que antecedem o pleito.
O art. 81-A da Lei nº 14.194/2021 veicula regra nova aplicável a duas situações diferentes.
Quanto à doação de bens, valores ou benefícios da Administração Pública em favor de particulares, o art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 proibia a sua prática durante todo o ano da eleição e a interpretação vigente estendia tal proibição mesmo se a doação fosse gravada de encargo e de cessão com finalidade vinculada. A nova regra (art. 81-A da Lei nº 14.194/2021) passa a autorizar a doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, durante todo o ano eleitoral, desde que a doação se dê gravada de encargo. Alterou-se, portanto, o aspecto material da norma, por meio da introdução de uma regra de exceção (a proibição não incide se a doação for onerosa).
Quanto a doação de bens, valores ou benefícios da Administração Pública em favor de entes integrantes de unidades federativas distintas, a interpretação vigente afirmava a incidência, por equiparação, do art. 73, VI, "a", da Lei 9.504/97, ficando proibida as referidas doações nos três meses que antecedem o pleito, mesmo que tais doações estivessem gravadas de encargo. A nova regra (art. 81-A da Lei nº 14.194/2021) introduziu regra de exceção outrora não existente, autorizando a doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública durante todo o ano eleitoral, desde que com encargo para o donatário.
Obedecendo ao entendimento estabelecido pela Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016, aprovada pelo Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU, que manda aplicar às cessões o mesmo regime aplicável às doações, deve-se compreender que as mesmas exceções veiculadas pelo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, também seriam aplicadas às cessões, desde que acompanhadas de contrapartida. Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde há a mesma razão, há o mesmo direito). Se as cessões haviam sido equiparadas às doações para fins do art. 73, VI, "a" e §10, da Lei nº 9.504/97, dada a potencialidade de atentarem contra a lisura da disputa eleitoral, as exceções agora introduzidas devem ser aplicáveis às cessões onerosas.
- IV -
Conforme se infere das considerações postas na seção anterior, o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, não tem natureza meramente interpretativa. Ela introduziu importantes exceções outrora inexistentes, autorizando a realização de alguns tipos de doações e cessões que, antes, eram proibidas.
A doação é um contrato tipicamente gratuito, ou seja, ela proporciona vantagens a apenas uma das partes, ao tempo em que o outro sujeito do negócio obtém um benefício. A existência de um encargo não lhe desvirtua a natureza, sendo que o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, ao estabelecer uma exceção às doações gravadas de encargo, inova no ordenamento jurídico.
Na doação, não há uma reciprocidade de vantagens e sacrifícios, tal como se observa nos contratos onerosos. O caráter de liberalidade dessa espécie contratual consta, inclusive, do art. 538 do Código Civil, segundo o qual "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra".
O elemento subjetivo do ajuste, portanto, é o animus donandi, ou seja, a vontade de enriquecer o donatário mediante o desprendimento por parte do doador de seu próprio patrimônio:
O elemento subjetivo da doação (animus donandi ou liberalidade) significa a ação desinteressada de ceder a outrem um determinado bem, sem contraprestação. O doador deve estar premido pela vontade de enriquecer o donatário, através de sua própria conduta, sem a obtenção de uma contraprestação. É o que se chamou no Código Civil italiano e no português de espírito de liberalidade (arts. 769 e 940, respectivamente). Com efeito, não basta a gratuidade do ato, sendo necessária a presença da liberalidade, ou seja, da vontade efetiva de doar. Faltando esse propósito, de doação não se tratará[1].
*****
Completa-se com o elemento subjetivo: o animus donandi. Indispensável à caracterização da doação é, com efeito, a intenção de praticar um ato de liberalidade. O doador deve ter a vontade de enriquecer o donatário, a expensas próprias. Se lhe falta esse propósito, o contrato não será de doação. É o animus donandi que o caracteriza. Não basta a gratuidade. Traço decisivo da doação é a liberalidade, a vontade desinteressada de fazer benefício a alguém, empobrecendo-se ao proporcionar à outra parte uma aquisição lucrativa causa. A intenção liberal concretiza-se, em suma, no intuito de enriquecer o beneficiário[2].
O animus donandi assegura o caráter gratuito da doação. Mesmo quando gravada de um encargo, a doação não perde o status de liberalidade. A parte final do art. 540 do Código Civil afirma que a doação gravada não perde o caráter de liberalidade quanto ao excedente ao encargo imposto. O encargo imposto ao donatário representa um pequeno sacrifício, sem desnaturar a natureza do negócio. Por definição, não pode ter valor comparável ao benefício que está sendo concedido ao donatário, sob pena de desvirtuamento do contrato. Encargo que tenha valor expressivo desnatura a liberalidade que predica a doação. Se o animus donandi cede espaço para a noção de sinalágma, há uma transmutação para outra espécie de contrato. Estar-se-ia falando, por exemplo, de uma venda, troca ou de um outro negócio qualquer. Neste sentido, coteje-se as seguintes lições doutrinárias:
O valor do encargo não pode ser superior ao do objeto doado, pois descaracterizaria a liberalidade e o negócio jurídico perderia a natureza de doação. Se o encargo for equivalente à prestação, objeto da doação haverá permuta ou outro contrato, mas não doação.
O encargo implica apenas uma pequena limitação da liberdade de dispor, cuja obrigação ou ônus poderá ser imposto em benefício do próprio doador, de terceiro e até no interesse geral ou coletivo. Mas a liberalidade deve prevalecer quando comparada com o encargo imposto, sob pena de se descaracterizar o contrato[3].
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A doação com encargo é a única modalidade que impõe dever jurídico anexo ou acessório ao donatário, após a tradição do objeto. O encargo, de certa maneira, condiciona a doação, pois o seu descumprimento pode levar à revogação. O encargo não torna oneroso o contrato de doação, até porque pode ser sem valor econômico ou até mesmo em proveito do donatário (exemplo: doa-se para que possa realizar tratamento de saúde)[4].
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Como se vê, trata-se de um contrato típico e nominado, cuja principal característica é a unilateralidade, impondo obrigação apenas para o doador.
E mesmo que se trate de doação onerosa — aquela gravada com um encargo —, ainda assim, em nosso pensamento, a característica da unilateralidade persistiria, uma vez que o ônus que se impõe ao donatário não tem o peso da contraprestação, a ponto de desvirtuar a natureza do contrato.
(...)
É preciso salientar, sempre, que o encargo não é uma contraprestação, sendo proporcionalmente muito menos extenso do que o benefício recebido. Isso porque, se o encargo for muito pesado, pode descaracterizar a doação, transformando-a, por exemplo, em uma compra e venda disfarçada[5].
A "onerosidade" que se atribui ao contrato de doação, portanto, dá-se com a exclusiva finalidade de apontar para a existência do encargo. O seu valor, contudo, não pode rivalizar com o do benefício a ser auferido pelo donatário, de modo a não contaminar o caráter gratuito da doação. O encargo deve ser visto como uma pequena restrição à doação, e não como uma contraprestação contratual. A liberalidade é pressuposto conformador da doação, não podendo estar ausente.
Este é o ponto nodal para a demonstração de que o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, ao introduzir um regime jurídico diferenciado para as doações com encargo, promove uma inovação jurídica na medida em que estabelece um distinguishing até então não feito pelo ordenamento jurídico. Como dito, o valor do encargo não pode rivalizar com o daquilo que está sendo doado, sob pena de diluir o caráter gratuito da doação, transformando-o em outro negócio. A expressão "doação onerosa" se presta apenas à identificação de uma liberalidade gravada de encargo, sem, contudo, infirmar o fato de que a doação é sempre um negócio jurídico gratuito.
Por essas razões, o regime jurídico diferenciado para as doações com encargo estabelecido pelo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, traduz uma novidade jurídica, contrapondo-se à generalidade imposta pelo art. 538 e da parte final do art. 540 do Código Civil. A novidade veiculada pelo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, é confirmada pelo seu antagonismo ao entendimento firmado pelo Parecer-Plenário nº 002/2016/CNU-Decor/CGU/AGU:
61. Por fim, é importante ressaltar que a previsão de encargo nas doações e o fato de as cessões serem realizadas para determinada finalidade não afastam, por si sós, o caráter gratuito da outorga. Afinal o encargo e a finalidade dizem respeito, em geral, à aplicação do bem a atividade de interesse público desempenhada pelo donatário ou cessionário. Não se trata, via de regra, de uma efetiva contraprestação, com ganho para o doador ou cedente, mas sim de estabelecer o uso a ser dado ao bem, buscando-se, assim, garantir que ele cumpra sua função social. (grifos no original)
- V -
Reitere-se que esse é o entendimento firmado acerca da matéria, dentro da Advocacia-Geral da União, até o presente momento. O referido Parecer-Plenário nº 002/2016/CNU-Decor/CGU/AGU aprovou, inclusive a Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016, em vigor e com a seguinte redação:
Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016
A vedação prevista no art. 73, §10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, dirige-se à distribuição gratuita e discricionária diretamente a particulares, incluídas as doações com encargo e cessões, não alcançando os atos vinculados em razão de direito subjetivo do beneficiário e as transferências realizadas entre órgãos públicos do mesmo ente federativo ou as que envolvam entes federativos distintos, observando-se neste último caso o disposto no inciso VI, alínea "a", do mesmo artigo, que veda transferências nos três meses anteriores ao pleito eleitoral. Em qualquer caso, recomenda-se a não realização de solenidades, cerimônias, atos, eventos ou reuniões públicas de divulgação, ou qualquer outra forma de exaltação do ato administrativo de transferência capaz de afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais.
Referências: Art. 73, inciso VI, alínea "a", e § 10, da Lei nº 9.507, de 30 de setembro de 1997. (grifamos)
Esta é a norma vigente dentro da Advocacia-Geral da União. Conforme salientado, a Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016 não foi objeto de revisão, assim como não o foi o Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU (que a aprovou) e o Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU (que os reiterou). Qualquer modificação desse entendimento, seja por exegese interpretativa, seja por superveniência de alteração legislativa, consubstanciará alteração do arcabouço normativo vigente.
Diz-se isso pois se identificou a existência de julgado proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, sem efeitos erga omnes e em processo do qual a União não foi parte, que diverge do entendimento firmado pela Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016, pelo Parecer-Plenário nº. 002/2016/CNU-DECOR/CGU/AGU e pelo Parecer-Plenário nº 002/2018/CNU-Decor/CGU/AGU. O Recurso Especial Eleitoral nº 34994, Relator(a) Min. Luciana Lóssio, Data 25/06/2014, concluiu que a "doação com encargo não configura 'distribuição gratuita'" para fins do art. 73, VI, "a", da Lei nº 9.504/97.
Em que pese o cuidado que se deve ter com o teor das decisões prolatadas pelos órgãos jurisdicionais, deve-se ter atenção para o fato de a interpretação definida pela Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016 ser mais rígida em favor da isonomia entre os candidatos; a Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016 veicular o atual entendimento da Advocacia-Geral da União a respeito do tema; não se ter conhecimento de qualquer decisão jurisdicional determinando a reforma da Orientação Normativa CNU/CGU/AGU nº 002/2016 ou veiculando entendimento diverso predicada de efeitos erga omnes.
Reafirma-se, portanto, o teor inovador do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, por veicular uma exceção não admitida pela Advocacia-Geral da União. Esta inovação atrai a regra da anualidade eleitoral constante do art. 16 da Constituição: "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência".
O objetivo da norma é conferir estabilidade ao processo eleitoral, evitando a edição de surpresas legislativas que venham a desestabilizar a disputa. Impõe-se um certo grau de previsibilidade, apta a densificar a normalidade e a legitimidade do pleito. A ofensa a igualdade da disputa entre os concorrentes fere, materialmente, a ideia de eleição justa.
Sabe-se que o Direito pode ser modificado com ou sem alteração do texto legal. A primeira hipótese decorre do processo legislativo, ao tempo em que a segunda decorre de evolução interpretativa. A anualidade eleitoral busca proteger a legitimidade do pleito em ambas as situações. José Jairo Gomes afirma ser intuitivo a incidência do art. 16 da Constituição às "mudanças nas 'regras do jogo' emanadas notadamente dos tribunais superiores[6]". Coteje-se, também nesse sentido, o teor do Recurso Extraordinário 637.485/RJ, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 01/08/2012, no qual o Plenário do Supremo tribunal Federal concluiu que a regra da anualidade eleitoral também se aplica às mudanças na jurisprudência eleitoral[7].
A questão dos autos, nesse aspecto, é ainda mais simples, dado que a modificação na legislação eleitoral decorre de atividade legislativa materializada na forma do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022. Em verdade, o problema maior reside em saber se a referida alteração legislativa se adequa ao conceito de "processo eleitoral", usado como referência pelo art. 16 da Constituição.
O art. 16 da Constituição não faz qualquer distinção quanto às possíveis causas que possam, extemporaneamente, atentar contra a igualdade na disputa. Restringe-se a fazer referência a "processo eleitoral". José Jairo Gomes explica que essa abertura semântica dá-se de forma intencional, pois "(...) o processo eleitoral é um continente que encerra enorme gama de conteúdos e relações, os quais por vezes encontram-se entrelaçados, de modo que alterações de ordem processual podem afetar direitos não processuais (ou materiais) e vice-versa, podendo haver nas duas situações instabilidade e insegurança jurídica[8]".
O Supremo Tribunal Federal apreciou o assunto, de forma aprofundada, no Recurso Extraordinário 633.703/MG, onde se discutiu a incidência ou não do art. 16 da Constituição sobre a Lei Complementar nº 135/2010, apelidada de Lei da Ficha Limpa. Embora aquela lei guarde características diferentes daquela aqui apreciada, interessa pontuar que o Ministro Relator Gilmar Mendes, após extenso relato da jurisprudência da Suprema Corte a respeito da matéria, identificou algumas regras-parâmetro para a incidência do art. 16 da Constituição, dentre as quais se destaca, para os fins do presente estudo, a sua teleologia de "impedir a deformação eleitoral mediante alterações nele inseridas de forma casuística que interfiram na igualdade de participação (sic) partidos políticos e de seus candidatos".
Mais: o apanhado histórico feito pelo Ministro Relator Gilmar Mendes a respeito dos acórdãos que haviam tratado do assunto levou-lhe à conclusão de que, a partir do julgamento da ADI 354, a distinção entre direito eleitoral processual e direito eleitoral material perdeu importância para fins da incidência ou não do art. 16 da Constituição. O Ministro Ayres Brito, em determinado momento dos debates, afirmou a necessidade de se trabalhar com a categoria de devido processo legal substantivo, incorporando à noção de processo uma dimensão substancial do direito[9]. O Ministro Celso de Mello associou o art. 16 da Constituição a um aspecto ético que deve convergir com a política:
Torna-se imperioso reconhecer que a norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas - como aquelas que definem novas hipóteses de inelegibilidade (que provocam a exclusão de candidaturas) -, a garantia básica de igual competitividade que deve, sempre, prevalecer nas disputas eleitorais (grifamos).
Enfim, o Recurso Extraordinário 633.703/MG reforçou a interpretação garantista conferida pela Suprema Corte a respeito do vocábulo "processo eleitoral" constante do referido dispositivo constitucional, desvinculando-o de uma acepção meramente processual.
No mais, o Recurso Extraordinário 633.703/MG apreciou aspectos relacionados ao procedimento eleitoral em si, não como forma de relativizar as suas premissas, mas apenas por conta do objeto recursal: as novas causas de inexigibilidade provenientes da Lei da Ficha Limpa.
Calha, também, apreciar a ADI 3741, dado que a redação da sua ementa sugere que o mero aperfeiçoamento de procedimentos eleitorais não induziria a incidência da regra da anualidade eleitoral. A leitura do seu inteiro teor, contudo, revela um entendimento além dessa assertiva. Naquela oportunidade, apreciava-se a incidência da anualidade sobre a Lei nº 11.300/2006, apelidada de minirreforma eleitoral, que veiculava diversos tipos de normas de conteúdo eleitoral.
O Ministro Relator Ricardo Lewandowski iniciou a sua exposição veiculando o conceito substantivo de democracia, associando-o a regras que "assegurem a máxima autenticidade à manifestação da vontade da maioria", razão pela qual dever-se-ia empenhar esforços direcionados a combater fraude, subornos e constrangimentos, reduzindo a vulnerabilidade do eleitor. Fazendo referência aos candidatos, afirmou, explicitamente, a necessidade de impedir que "qualquer de seus protagonistas obtenha vantagens indevidas".
Rememorou o teor da ADIN 3.345, relatada pelo Ministro Celso de Melo, em que ficou sedimentado de que o art. 16 da Constituição busca "impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas, aptas a romperem a igualdade da participação dos que nele atuem como protagonistas principais".
Resumiu os critérios identificados pelo Supremo Tribunal Federal, que orientam a verificação de eventual comprometimento da regra da anualidade eleitoral, dentre os quais se destaca: "1) o rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral". O Ministro Relator Ricardo Lewandowski complementou afirmando que o julgamento da ADI 3741 consistia em verificar se as alterações introduzidas pela Lei nº 11.300/2006 correspondiam a algum dos parâmetros citados, dos quais se reproduziu aqui o primeiro (igualdade de participação).
Passou a concatenar cada um dos dispositivos legais impugnados com os critérios por ele elencados. Foi apreciado, naquela oportunidade, o então novo art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 (introduzido pela Lei nº 11.300/2006), concluindo-se pela sua eficácia imediata pelo motivo de apenas "explicita(r) vedações já existentes em nosso ordenamento legal". Perceba-se que não se negou a sua potencialidade de influir na isonomia entre os participantes, tal como feito para indeferir as impugnações direcionadas a outros dispositivos da Lei nº 11.300/2006. Pontuou-se, apenas, que o art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97 não inovava no ordenamento jurídico. A contrario sensu, confirmou a tese aqui sustentada de que a potencialidade de alterar a igualdade entre os candidatos é critério balizador da incidência ou não do art. 16 da Constituição.
O Ministro Marco Aurélio assentiu com o voto do relator (o julgamento deu-se por unanimidade), em especial quanto à preocupação isonômica constante do art. 16 da Constituição, argumentando que o aludido dispositivo, "(...) ao vedar a alteração do processo eleitoral no ano que antecede às eleições, tem como escopo evitar manobras que esta ou daquela maneira possam beneficiar a este ou aquele segmento e prejudicar qualquer dos demais segmentos envolvidos na disputa".
O Ministro Presidente Sepúlveda Pertence também orientou o seu voto por meio da análise de os dispositivos legais impugnados proporcionarem ou não "(...) vantagem deste ou daquela corrente partidária, ao contrário do que se sucedeu nas antigas leis de todo ano eleitoral (...)".
Conforme se observa, há convergência entre o Recurso Extraordinário 633.703/MG, a ADIN 3.345 e a ADI 3741, no ponto em que entendem que o art. 16 da Constituição alcança as regras novas que possam alterar a igualdade entre os candidatos.
Em suma, o que se observa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é uma preocupação ínsita ao art. 16 da Constituição de evitar alterações legislativas e mudanças interpretativas na véspera da eleição e que tragam a potencialidade de alterar o equilíbrio da disputa.
Trata-se, justamente, da hipótese veiculada pelo art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022. Anteriormente à sua edição, estava vedada ao Poder Público qualquer doação gratuita ou onerosa (salvo as exceções legais) a particulares durante todo o ano eleitoral e estava proibida a doação gratuita ou onerosa a entes públicos nos três meses que antecedem o pleito. O escopo de tais proibições, como já exposto, reside em evitar a utilização de recursos públicos com fins eleitorais, resguardando a igualdade de oportunidades entre os candidatos.
O art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022, pretende relativizar aquelas proibições, veiculando novas hipóteses em que tais doações (e cessões) seriam admitidas. À luz da jurisprudência da Suprema Corte, deve-se acautelar o processo eleitoral, aplicando àquelas inovações legislativas a regra da anualidade eleitoral e inibindo, temporariamente, os seus efeitos.
- VI -
A vigência do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022 fica, portanto, protraída no tempo, dado o disposto no art. 16 da Constituição. Não é possível a sua aplicação antes de findo o pleito de 2022.
Há, contudo, outro óbice que precisa ser apontado. A Lei nº 14.194/2021 é a Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2022, sendo, portanto, uma lei provisória. Assim que findo o ano de 2022, a orçamentação da União para o ano de 2023 deverá ser objeto de um novo planejamento legislativo com idêntico fim. Lembre-se que a edição de uma lei de diretrizes orçamentária anualmente é obrigatória, a ponto de impedir o encerramento da sessão legislativa antes da sua aprovação (art. 57, §2º da Constituição).
Em síntese, também não será possível a aplicação do art. 81-A da Lei nº 14.194/2021 às eleições futuras, dado que o referido diploma legislativo já terá esgotado os seus efeitos.
- VII -
Diante de tudo quanto exposto, conclui-se que o art. 81-A da Lei nº 14.194/2021, com a redação dada pela Lei nº 14.435/2022 não tem eficácia antes de finda a eleição do ano em curso, dado incidir sobre ele a regra da anualidade eleitoral (art. 16 da Constituição), nem poderá ser aplicado às eleições futuras, dado o caráter provisório da Lei nº 14.194/2021 (Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2022).
Caso aprovada a presente manifestação, sugere-se conferir ampla ciência do mesmo a todos os órgãos jurídicos federais.
À consideração superior.
Brasília, 28 de setembro de 2022.
DANIEL SILVA PASSOS
Advogado da União
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Notas